Virtudes externas. Vícios internos?


Isso que conta é o culto externo (não importam as razões internas).
Houve uma época em que eu ia todos os dias a uma igreja, porque uma moça, da qual eu havia me enamorado, aí rezava de joelhos uma meia-hora todo final de tarde – isso me permitia contemplá-la em toda liberdade.
(*) KAFKA, Franz. Oeuvres completes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980.  Description d’un combat (ms. A). P. 24.

Zig-zag

ética – espiritualidade
espiritualidade – vontade
vontade – liberdade
liberdade – energia
energia – ontologia
ontologia – ficção
ficção – modo de ser
modo de ser ­– espiritualidade
espiritualidade – ética

O cerco do poder medical tem uma folga

O poder medical nos espreita continuamente (seu olhar de vigia é constituinte do nosso modo próprio de nos ver).

Por isso, Proust suspira com um certo alívio, quando pode constatar: “a medicina não é uma ciência exata”*.

(*) PROUST, Marcel. Sodome et Gomorrhe I et II. Paris: Le Livre de Poche, 1993 [1922]. P. 107.

Imperium imperiorum

Por que Kafka falava da China? 

Porque a China é o império por excelência. Não, a nossa China, mas a ideia da China...

A ideia de império da maior extensão geográfica, ainda, e já não mais, pensável como unidade.
O império das múltiplas muralhas, império dos impérios (imperium imperiorum).

Átomo

Não se fazem tomos de um átomo, nem gomos de uma laranja agômica (um ágomo).
E se, na natureza toda, só houvesse um átomo, a própria natureza?
(Toda ontologia é uma ficção, ou seja – toda ontologia é uma invenção de um tipo de relação entre aquele que fala e o ser do qual ele fala – um modo de ser).

Duas ontologias, duas ficções

Na semana passada, Agamben falou-nos de duas ontologias, de dois tipos de relação formal entre a linguagem e o ser: a ontologia apofântica, ligada a enunciados, no indicativo, que dizem o verdadeiro e o falso, e a ontologia do comando, ligada a enunciados, no imperativo, que são palavras de ordem.

A apofântica corresponderia aos domínios da ciência e da filosofia; a do comando, aos domínios da religião, do direito e da magia.

Segundo Agamben, a primeira tem cada vez mais cedido espaço, na nossa modernidade que se desilumina, à segunda. Para Agamben, então, há como um obscurecimento na linguagem, nos enunciados que perfazem nosso real. Nossa realidade tem se tornado sempre mais normativa, constrangedora dos nossos modos de ser.

A abertura radical da linguagem acerca do ser em duas ontologias distintas e a ocupação de uma em detrimento da outra, para Agamben, no estado atual de suas pesquisas, talvez seja o elemento do real que mereça ser pensado.

Entretanto, vejo isso de uma maneira diferente. Afinal, na realidade efetiva das coisas, toda ontologia apofântica, todo enunciado com pretensão de verdade não envolve, ele mesmo, em si mesmo, uma normatividade, um comando? As duas ontologias, separadas por Agamben, parecem-me, de fato, uma única.
Isso não quer dizer que Agambem não concorde com Foucault, quando Foucault diz: “...que toda ontologia seja analisada como uma ficção”*.


(*) FOUCAULT, Michel. Le gouvernement de soi et des autres: Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Seuil/Gallimard, 2008 [1983].  P. 285.

Por uma ética da leitura: fusão


Eu tinha lido Debord, como uma simplificação radicalizada de Foucault; e Khayyam, de Spinoza.
Perigo da simplificação: ela densifica até perfurar a plasticidade do real.

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“Leibniz não tinha o costume de dar títulos aos seus múltiplos escritos”*. Como já havia dito: um título é uma mão que se fecha até que as unhas dos seus dedos se encravem na carne do texto. O título fica por cima. A carne encravada de unhas, por dentro.

Mas títulos não têm unhas. 


(*) GAUDEMAR, Martine de. Avertissement. In: LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Réfutation inédite de Spinoza. Trad. Foucher de Careil [1854]. Arles: Actes Sud, 1999 [1706].  P. 7.

Uma imagem da juventude

Uma paisagem de campo atravessada por um adolescente numa bicicleta motorizada; uma mão no guidão, outra mantendo fixo na garupa um aquário de vidro cheio de água com um peixe dourado dentro.

Geometria do real

A geometria do real tem isso de genial, que entre dois pontos (por exemplo, entre dois enunciados ou entre duas pessoas) possam passar infinitas retas (de pessoas, de enunciados).

Por isso, os mal-entendidos e bem entendidos convivem como retas estendidas no mesmo espaço real.

Laicização

Ouvi Giorgio Agamben desconsiderar a questão da laicização. 

Como se a questão da laicização, para ele, pertencesse ao próprio campo da religião. O termo “laico”, afinal, vem do vocabulário da Igreja, surge na Igreja.

Pôr em operação a laicidade, paradoxalemente, é inserir-se já no campo teológico, do qual se trata de sair.

Se o que está em questão é desvencilhar a experiência da realidade (ou de Deus) da apreensão teológica, não se pode falar em laicização.

Uma fita durex

Uma fita durex (para colar imagens nas paredes antes nuas), e a vida toda muda: sutilmente.

A reincidência no mal, em série

A única maneira de justificar, para si mesmo, um mal injustificável é comete-lo novamente. 

Só assim o mal cometido pode deixar de nos parecer um mal, já que o repetimos.

Somente a repetição do mal injustificável pode justificar o mal. Se não é repetido, o mal permanece injustificável. Mas, ao se repetir indefinidamente, ele se justifica, para nós que o repetimos, simplesmente porque o repetimos, com a ideia de que se fosse, para nós, realmente injustificável não o repetiríamos.