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Em sonho, me veio a questão: – o que é isso, o pensamento? E a resposta: – um atributo da Natureza.

Personagens do exagero: o Grande Culpado e a Grande Vítima






Há mais de um ano – desde nosso passeio pelo Boulevard de P.-R. – procuro uma maneira de expressar a ideia de que o sentimento de culpa e o sentimento de ser vítima são como dois lados de uma mesma moeda, podendo, com muita facilidade, serem invertidos um no outro.

Agora, encontrei-a, pela imaginação de dois personagens do exagero. A figura do Grande Culpado – que se acha a causa de tudo o que vai mal no mundo – e a figura da Grande Vítima – que se considera o objeto paciente de todo o mal do mundo.

A Grande Vítima, justamente porque se considera o objeto final de todo o mal, pode se representar como a causa final de todo mal e, assim, num giro, se tornar o Grande Culpado.

O Grande Culpado, por sua vez, dolorido por se reconhecer como a causa de todo o mal do mundo, ao carregar em si esta grande dor, torna-se, num instante, a Grande Vítima.

Mesmo nos casos menos exagerados, essa inversão afetiva contínua da vítima em culpado e do culpado em vítima ocorre, como ocorre, para os nossos olhos, a troca contínua da aparência da face e da coroa numa moeda que gira verticalmente sobre um plano.

A preposição que falta: por + em

Para falar da imanência, nos falta uma preposição, que seria como a fusão (depois da soma) de duas preposições existentes: por + em. Fusão que nos permitiria referir, com uma só preposição, o agente e o paciente, num único ente, de uma ação, de uma razão, de uma causa.

Para evitar qualquer confusão, “por + em” nada tem a ver com a conjunção adversativa “porém”.

Legitimidade x legalidade III: o direito racional


Nós ainda estamos envoltos com a imagem de que o direito (as leis e as penas) é racional. E que, portanto, sob essa imagem, o irremediavelmente irracional está fora do âmbito do direito. Não se julgam animais, julgam-se seres humanos racionais que fraquejam, que cedem conscientemente a tendências irracionais.

O problema é que esta concepção abre, no âmbito do próprio direito, a discussão acerca do que é e não é racional. E dá possibilidade ao réu de tornar-se sutilmente juiz.

Legitimidade x legalidade II: – Juiz e réu

É notável o esforço institucional para marcar e fixar (na hierarquia, na ordem do discurso, na arquitetura, na ergonomia, na indumentária...) as posições relativas do juiz e do réu.

Em situações em que este esforço é reduzido (eventualmente, por se tratar de situações menos institucionais) as posições tendem a se inverter iterativamente; o juiz tornando-se réu; o réu, juiz.

Mundos possíveis


Este não é o melhor dos mundos possíveis. Mas é o único mundo (necessariamente). Não há, ao lado deste, nenhum outro.

Um mundo outro só se faz a partir deste mundo.

Assim, a especulação aponta desdobramentos ou heterotopias, não utopias.



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O racional, em absoluto, não é bom nem mau.

Legitimidade x legalidade

Nós ainda estamos envoltos com a ideia iluminista de que o racional é necessariamente bom.

Por isso, Breivik não quer ser (vere-)dito insano. Não ser julgado louco (diga-se: por um poder extrajurídico) – esta seria a única maneira de que suas opiniões islamofóbicas sejam publicamente discutidas sem separá-las da ideia de bem. Breivik reconhece a ilegalidade de suas ações, mas não a sua ilegitimidade.


Breivik não se defende do asilo, mas defende a sua causa (do rótulo de insanidade) enquanto racional.

Valor pragmático


Sejam A e B duas pessoas diferentes. E “S”, uma sentença afirmada tanto por A como por B.

Ao enunciarem “S”, em geral, não é necessário que digam: – É verdade que S. Basta: – S!, para que se suponha uma pretensão de verdade tanto de A como de B.

Mas da simples afirmação de “S”, não podemos deduzir seu valor ou sentido pragmático. Ao se afirmar “S”, não se supõe que se diga ao mesmo tempo: – É bom que S. Nem tampouco: – É mau que S.

Por exemplo, Spinoza poderia afirmar isso mesmo que Calvino afirmara:

“Eu digo que a natureza humana é tal que cada homem seria [se pudesse] um senhor e um patrão sobre os seus vizinhos, e nenhum homem seria por sua boa vontade um súdito”*.
Mas Calvino diria: – E isso é ruim. Spinoza, pelo contrário: – E isso não é bom nem ruim.

(*) CALVINO apud CURLEY, Edwin. Introduction and notes. In: HOBBES, Thomas. Leviathan. Indianapolis/Cambridge: Hackett, 1994. P. 58, nota 1.

Escolha, se puder


Com admiração, você olha para o grande mundo e diz: – tudo isso foi criado; toda coisa natural é um efeito. [disposição-seta]

Ou você diz: – tudo isso é criador; toda coisa natural é uma causa. 
[disposição-mãozinha]

Haveria uma terceira alternativa? E isso seria uma questão de escolha?

Hipertexto, hiper-real


Quando passo o cursor do mouse sobre regiões “sensíveis” da tela do computador – pontos de desdobramento – a seta se transforma em uma mãozinha...

Na superfície do real, porém, todo ponto é sensível e desdobrável... não há disposição-seta, sempre disposição-mãozinha.

Afinal...

Nada existe [que], a partir de sua natureza, algum efeito não se siga.
(SPINOZA, Ethica, e1p36)

A nobreza do comércio


O comércio, na sua variedade, parece ser a atividade material que dá possibilidades ao desdobramento da vida espiritual.

Talvez, por isso, quando a vida espiritual sucumbe e fracassa, o comércio ressurja como uma atividade alternativa.

O falante e o connaisseur

O falante aprendeu a utilizar – de modo mais ou menos aceitável – palavras que inicialmente não tinham para ele nenhum significado independentemente desse uso um pouco desajeitado. Mas a fala do falante evolui e essas palavras como que se coisificam.

Assim também ocorre com o connaisseur, que fala como se soubesse de tudo. 

No entanto, o connaisseur é um falante experimentado. Conhece o suficiente do uso das palavras para dar a impressão de que conhece as coisas.

Encontre-me na segunda à direita


Com o nosso modo singular de ser (isso que se designa por “privado”) cada vez mais universalmente mapeado (feito “público”), é importante, aqui, ali, dar falsas pistas.

Homo homini lupus


O humano é para o humano um lobo. 


Nisso não se leia: – Os humanos estão uns para os outros como os lobos estão uns para os outros. E, sim: – Os humanos estão em relação uns com os outros como os lobos estão em relação com as ovelhas. / Homo homini pecus.

O humano é, para um outro, o lobo do humano; mas, também, a ovelha do humano

Nesse meio, surge a função do pastor.
Humano para humano é lobo, ovelha e pastor.

Quiasmas: túneis do tempo, instantaneidades do espaço


Isto, em torno da ideia social do celibato, que Kafka havia anotado em seu diário (24/11/1911), aquele aforisma imemorável do Talmud: “Um homem sem mulher não é uma criatura humana”, também passava da pluma de Gide, em 192..., para a boca de um de seus personagens, o médico Marchant, através do diário de Évéline:


[ÉVÉLINE:] ...eu disse simplesmente [e, por estar envergonhada, sem a necessária ênfase] que os casamentos não eram todos felizes. Ao quê, Marchant respondeu, logo de pronto, que, se o casamento não era sempre bom, o celibato, pelo contrário, era sempre ruim... “ao menos, para as mulheres”, ele acrescentou com certo sarcasmo. (16/11/1894)

GIDE, André. L’école des femmes. Collection Folio. Paris: Gallimard, 1984 [1929]. P. 45.

Mecanismos afetivos XVI – afetos sociais


Afetos que são paixões não funcionam sozinhos, mas em aglomerados afetivos. No caso humano, os afetos são propriamente afetos sociais – um afeto em um indivíduo pressupõe, se reforça ou se enfraquece com um outro afeto que lhe corresponde em outros indivíduos.

Por exemplo, a arrogância em um (a soberba, o orgulho inervado) se potencializa com a inveja em outro. Se ninguém inveja o arrogante, sua arrogância despenca.

Teoria e prática

Isso que se segue parece válido ainda hoje.
“[...] a maior parte dos movimentos revolucionários que se desenvolveram no mundo recentemente estiveram mais próximos de Rosa Luxemburgo do que de Lênin: eles deram mais crédito à espontaneidade das massas do que à análise teórica”.
FOUCAULT, Michel. Revenir à l’histoire [1970]. In: Dits et écrits. Vol. I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. P. 1140.

Há pelo menos dois modos de relação entre a teoria política e a transformação da sociedade.

1. De maneira normativa: quando a teoria propõe o modelo sócio-político que deve ser implementado.

2. De maneria desimpeditiva: nesse caso, não se trata de propor um modelo teórico, mas de desconstruir (eventualmente reconstruindo uma outra) a narrativa histórica fatalista que enquadra e encerra, de maneira necessária, a vida nos seus moldes presentes. Assim, a vida como ela é fica desobstruída e se abre aos seus próprios desdobramentos.

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A vida não tem fora, apenas limite.

A vida só não é o alvo


A vida como arqueiro, arco e flecha, mas não como alvo.

Isso não quer dizer que o
alvo esteja fora da vida – pois a vida não tem fora, apenas um limite que recua indefinidamente –, mas que o alvo da vida não existe senão na nossa imaginação.

Vida como lançamento

Potência da vida: – ser ao mesmo tempo o arqueiro (uma potência lançadora), o arco (de que o arqueiro se serve para lançar) e a flecha (aquilo que se lança).


A vida só não é o alvo.