As regras de leitura

A informaçãoBLOG, em certo sentido, se lê de trás para frente.

Uma sintaxe estendida regula a articulação, não só das palavras e das suas posições num sintagma, mas também das proposições e até mesmo dos parágrafos.

Uma inversão pensável da sintaxe usual poderia ter como regra: _ apresentar primeiro a conclusão e só depois as premissas. Numa tal sintaxe, estaríamos mais aptos a compreender que a ação política não é uma decisão que se segue a um processo deliberativo, mas que, inversamente, são as justificativas que se seguem à ação.

Embora apareça, na nossa sintaxe, em primeiro lugar, Deus não é – como disse Nietzsche – uma causa primeira. Não está no início de tudo, mas é algo que a humanidade só alcançou depois de muito tempo e elaboração. Não é uma premissa, mas uma conclusão.

Spinoza também alertou para as nossas inversões freqüentes, que tomamos os efeitos como causas, os fins como princípios.

É regra da sintaxe da informaçãoBLOG: _o que aparece primeiro é o que foi escrito por último.

Libera ingenia

Os espíritos-livres (libera ingenia) não são como poderíamos esperar que fossem. Seu caráter e suas disposições são diferentes daquelas que as circunstâncias parecem induzir, num determinado momento, numa determinada sociedade. Mostram-se como um efeito sem causa.

Sua liberdade fica sinalizada por uma certa excentricidade do sujeito, o que causa um certo desconforto, às vezes neles mesmos, às vezes no meio social envolvente.

De fato, os espíritos-livres não se enxergam. Quer dizer, são incapazes de enxergarem-se com os olhos dos outros. A imagem que têm de si mesmos é sempre diferente, para melhor ou para pior, da imagem que os outros fazem deles. Esse desencontro é um problema de identidade. E esse problema de identidade é a sua liberdade.

Num momento de rebelião consciente, o espírito-livre pode dizer: _ "Eu não sou isso que vocês dizem que eu sou". Mas sua liberdade nem sempre se manifesta como rebeldia.

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A dupla-negação traz de volta o que foi negado (¬¬A=A). Outra coisa é o duplo-engano, não traz de volta nada, só nos leva ainda mais ao indefinido.

Ithar: o passo de Bashar para Ensan

Quando andamos na opacidade da neblina absoluta, um passo à frente pode nos colocar no limiar de um precipício abissal...

Segundo Shari'ati, Ithar tem a mesma raiz que Thar (sangue)*.

A libertação completa das determinações naturais do ser humano só é atingida quando o indivíduo se libera da ipseidade, do seu si próprio, do seu ego. Apenas mediante Ithar, pela religião e pelo amor, o indivíduo alcança o nível supremo de Ensan, e ultrapassa a sua última prisão, que é o Eu.

Segundo Shari'ati, não há outra via para o Ensaniat (a realização da essência humana como perpétuo vir-a-ser na direção da infinitude) do que Ithar.

Ithar, que nos coloca definitivamente acima da bestialidade de Bashar, está além da lógica e da racionalidade. Ithar é o amor religioso pelo outro que culmina no sacrifício de si (e disso vem sua remissão ao sangue). Ithar é a "generosidade excessiva" em vista do outro, mediante o auto-sacrifício – a entrega dos pertences, eventualmente da vida. Ithar é amar o próximo mais do que a si mesmo.

Ithar não é o amor a deus, mas ao próximo. Corresponde só a dimensão política (e não à teológica) do imperativo judaico-católico de amar a deus acima de tudo e o próximo como a si mesmo.

Entretanto, se não me engano, Ithar não é Jihad. Não se trata de Jihad, da guerra justa ao opressor. Mas da guerra contra a opressão do Eu, que nos mantém no estado de Bashar. Ithar, e não Jihad, seria a conseqüência última da espiritualidade shiita. Ou seria isso um abuso de linguagem?

Ithar e Jihad podem estar conectados, mas não estão necessariamente. Talvez Ithar (se Ithar é o amor universal) até mesmo exclua a escolha da Jihad. Mas então talvez já não se trate do Islã shiita.


(*) SHARIATI, Ali. Modern man and his prisons. In: SHARIATI, Ali. Man and Islam. North Halendon: Islamic Publications International, 1981. P.62.

Bashar e Ensan

No Qur’an, há dois termos para designar o ser humano: Bashar e Ensan*. Bashar é o ente humano dado, o animal biológico. Ensan, o que na humanidade remete à poesia, à filosofia, à religião. Bashar é o ente humano biológico que se reproduz indefinidamente, preso à sua própria definição. Ensan é o sendo humano, aquilo que no ser humano é não um ente definido desde sempre e para sempre, mas um vir a ser. Bashar é, no ser humano, o determinado. Ensan, o indeterminado, o aberto, o indefinível.

Se Hannah Arendt aceitasse essa dupla dimensão humana do Qur’an, ela diria que no humano Bashar labora, enquanto Ensan age. Bashar é o econômico, o condicionado, e Ensan, o político, o incondicionado, o livre.

Em Nietzsche, a questão do eterno retorno aplica-se não só a Bashar, o ente que reproduz indefinidamente a si mesmo, preso que é à sua definição auto-reprodutora, mas também a Ensan. De modo que, para Nietzsche, a própria ação volta a se repetir num ciclo contínuo e eterno (como se, num certo momento do disco vinil, um arranhão fizesse com que a agulha desse um salto para trás e repetisse a mesma música novamente).

Segundo Foucault – que diz que o ser humano moderno é o ser biopolítico: “o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”–, para o ser humano, acontece que Ensan interfere politicamente sobre Bashar. O humano moderno é o animal que age sobre si mesmo, e cuja ação é tal que transforma a sua própria determinação biológica. Exemplos dessa ação política de Ensan sobre Bashar seriam a vacinação, a iatrogenia, a eugenia, as políticas de natalidade, a bomba atômica, a genética, a sexualização do corpo, a redução dos mistérios da humanidade à sua vida econômica.

Temos então três possibilidades da relação entre Bashar e Ensan. (1) a corânica, que é, nesses termos, a mesma que a de Arendt – em que a duas dimensões são independentes uma da outra. (2) a de Nietzsche, em que Ensan emula Bashar, e praticamente não se distingue do seu mecanismo. E finalmente (3), a de Foucault, em que Ensan se funda sobre Bashar, e é por ela determinada; o que torna o ser humano unidimensional**.

(*) Conferir:
SHARI’ATI, Ali. Modern man and his prisons. In: SHARI’ATI, Ali. Man and Islam. North Halendon: Islamic Publications International, 1981. Pp. 46-62.
(**) Outras referências:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 [1958].
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1882]. Aforismo 341.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

Encruzilhada

Num mesmo plano, caminhos diferentes, quando retos, acabam sempre se cruzando.

Descartes, todo mundo sabe, diz: – antes de termos certeza, não afirmemos nada. Esse é o grau zero da liberdade humana – o poder imenso de nossa vontade nos permite não dizer sim a nada, a respeito do que ainda não temos uma demonstração absolutamente convincente.

Sobre uma outra reta, Khomeini fala outra coisa. Nada nos obriga a dizer não àquilo cujo erro ainda não foi comprovado. Deveríamos suspender nossa descrença, e considerar as coisas afirmadas como possíveis até que tenhamos uma prova absoluta da sua impossibilidade. Esse é, para Khomeini, o primeiro passo da fé.

O plano comum aos dois é a vontade humana livre. Neste plano, seja com Descartes, seja com Khomeini, por caminhos diferentes, chegamos ao mesmo lugar: essa cruzada em que suspendemos nossas crenças e nossas descrenças. Um lugar de liberdade, onde todo o duvidoso ainda é possível e ainda não é necessário.

O grau zero da liberdade e o primeiro passo da fé são o ponto de cruzamento de Khomeini com Descartes. A partir daí, podemos seguir caminhos diferentes.

17

A verdade ilude e seduz, como um deus que só se mostra sob 70.000 véus de escuridão ou de luz.

16

A verdade é como um deus vitorioso, que só se afirma único quando se impõe acima de todos os outros.

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O que a escola nos ensina? Ensina-nos a temer dizer a verdade. Porque a verdade é sempre outra coisa daquilo que a gente diz.

O evento natural de Spinoza

Na física, quando isolamos um evento, um sistema de partículas, temos a intenção de nos despreocuparmos com aquilo que se passa no seu interior.

Isso é possível, porque o determinismo na física diz que as variações de estado (massa, energia, posição, velocidade) de um sistema de partículas são determinadas apenas pelas interações (afecções) desse sistema com o que está à sua volta. Um sistema isolado persevera em seu ser, em seu estado, apesar de todas as mudanças que possamos perceber no nível de suas parcelas. Como um todo, o sistema isolado não muda, e permaneceria indefinidamente sem mudanças, enquanto permanecesse isolado. Num evento isolado, as variações internas locais são compensadas por variações internas opostas em um outro local do sistema. Trata-se do estado ideal de homeostasia. Um evento isolado das influências do meio envolvente é, em si mesmo, homeostático.

Um indivíduo, para Spinoza, é um evento (ele chama de conatus) que, por sua própria natureza, se esforça em manter-se em seu ser. O ser individual, em Spinoza, é, por assim dizer, um evento natural. Uma certa configuração de parcelas ama a si mesma tal como é, e deseja manter-se em seu estado. Esse desejo é o indivíduo. Quando esse desejo termina, o indivíduo se desagrega.

Spinoza se insere no que foi dito no segundo parágrafo, enquanto afirma que as causas da desagregação de um indivíduo são sempre exteriores a ele. É impossível um desejo que deseje seu próprio fim. Mas o evento em Spinoza jamais é isolável (aliás, na física, esse isolamento é apenas pensável). Ele diz explicitamente: não podemos conceber o evento humano como um imperium in imperio, como um evento isolado do meio envolvente. O evento é uma membrana, não um cortina de ferro.

Por um lado, o indivíduo é um evento natural, sua determinação não é arbitrária. Por outro, porém, seu arranjo interior é inseparável do arranjo das coisas nos seu exterior.

Vejamos algumas proposições da Ética de Spinoza*, a partir das quais podemos reconstituir o que foi dito:

E2P13Pos1: “O corpo humano compõem-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também altamente composto”. Spinoza não diz porém, como parece sugerir Pascal, pelo menos não aqui, que o corpo humano compõe, numa proporção acima da que percebemos, um outro indivíduo.

E3P4: “Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior”.

A famosa E3P6: “Cada coisa esforça-se (conatur), tanto enquanto está em si, por perseverar em seu ser”. E3P8: “O esforço (conatus) pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser não envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido”. E3P7: “O conatus [...] nada mais é do que a sua essência atual”.

E finalmente E3defaff1: “O desejo é a própria essência do homem [...]” ou E3P9S.

(*)SPINOZA, Benedictus de. Ethica-Ética: edição bilingüe latim-português. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 [1675].

O evento em Pascal

Vale a pena, pelo simples prazer, nesse contexto, um pequeno passeio por Pascal. Nos seus Pensamentos*, lá pelas tantas da seção 69, ele vem refletindo nesse evento meio-termo que somos.

“Dois infinitos, meio termo”. Com uma leitura muita apressada nada se entende. Com uma muito lenta, tampouco. Adiante, comentando “in vino veritas”, ele nota que sem vinho não se encontra a verdade, mas também não se encontra com vinho em demasia. (Parênteses: em que medida poderíamos definir uma leitura como um evento?)

Mas o que me parece mais atraente é que Pascal estende, na seção 72, essa mesma reflexão a uma lêndea... (é possível que ele a observe com uma lente de aumento) “que, na pequenez de seu corpo, contém partes incomparavelmente menores, pernas com articulações, veias nessas pernas, sangue nessas veias [...]; dividindo-se estas últimas coisas esgotar-se-ão as capacidades de concepção do homem, e estaremos, portanto, ante o último objeto a que possa chegar o nosso discurso”. Isto que seria o átomo, o indivisível. Mas o indivisível é apenas uma concepção humana. “Quero mostrar-lhe, porém, dentro dela [da menor coisa da natureza] um novo abismo. [...] Aí existe uma infinidade de universos, cada qual com seu firmamento, seus planetas, sua terra em iguais proporções às do mundo visível; e nessa terra há animais e neles essas lêndeas, em que voltará a encontrar o que nas primeiras observou”.

O ser humano está suspenso entre dois infinitos, um envolvente, o do enorme, outro envolvido, o do ínfimo. Não há um patamar inferior indivisível que pare o processo para o ínfimo aquém. Assim como não há um inadicionável que suspenda o processo para o enorme além.

O evento do indivíduo humano é uma faixa nesse continuum sem termos. No limite (se isso de alguma forma não constituir uma blasfêmia), reencontraríamos indivíduos humanos, como reencontramos as lêndeas, noutras faixas para baixo e para cima na escala das proporções. Um homem talvez faça parte de um outro homem muito maior que ele. Mas não necessariamente. Pode ser que um homem faça parte de uma caneta. Essa caneta de uma gigantesca árvore. Essa árvore de uma mulher enorme.

Para Pascal, o evento é uma espécie de sintonia, à qual se ajusta a percepção humana. Nossa percepção está em sintonia como uma faixa de eventos. Dentro dessa faixa, as coisas estão em proporção e são perceptíveis. Isso não impede que a proporção se encontre em outras faixas, para cima ou para baixo do infinito espectro dos eventos.

(*) PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988 [1670].

O evento-membrana

O evento isola um estado de coisas. Como é arbitrário, poderíamos isolar subconjuntos desse evento. E esses subconjuntos também seriam eventos. O evento é uma membrana lógica, não uma entidade.

Dependendo da escolha, um indivíduo humano, num certo intervalo de tempo, é um evento. Seu coração é outro evento. Uma célula do coração, outro. Numa outra direção, o quarto onde esse indivíduo se encontra é um evento. A família em que vive. Um grupo de amigos. A sociedade. A cidade. O continente. O planeta. A galáxia.

O evento-membrana envolve um recorte espacial e temporal; é uma parcela de história. Qualquer parcela pode ser arbitrariamente isolada, num evento, do infinito que a cerca. Mas o infinito mesmo não pode ser isolado. O infinito não pode ser um evento, pois não é uma parcela de si mesmo.

Nosso mundo vivido e natural nos parece feito de eventos, de parcelas recortadas do infinito, em complexas relações umas com as outras. Então, uma questão surge: – se os eventos são lógicos e arbitrários, o recorte do mundo em eventos depende de um sujeito? Somos nós, individualmente, enquanto somos um eu, que recortamos o mundo? Esse não seria um atributo divino, o poder eventualizar o mundo infinito? Ou será a linguagem que efetua, em nosso lugar, essa eventualização do mundo?

É preciso cuidado com as questões, se elas nos interrompem em armadilhas e labirintos. As questões surgem de uma fonte em si mesma questionável: a vontade de verdade – e aqui (isso é uma informaçãoBLOG) não nos comprometemos com ela.

Determinismo

Na verdade, abri o livro de Hawking por outro motivo. Interessam-me as suas exposições sobre o determinismo (um avatar moderno de Ananke, a deusa grega da necessidade).
Pareceu-me que Hawking confunde 2 coisas:
  1. A possibilidade teórica de conhecermos o passado e o futuro.
  2. E o determinismo.
O que chamo de determinismo é a idéia de que todo evento do mundo é determinado a ser assim tal como é porque todo evento (um estado de coisas isolado no espaço e no tempo, formado por um sistema de partículas em movimento) é ligado de modo unívoco a tudo o que lhe afetou, seu passado próprio.

Mesmo admitindo o determinismo (e que conheçamos as equações que descrevem os movimentos de tudo), isso não implica que possamos conhecer o passado ou o futuro. (Pois como Hawking afirma uma parte da informação passada é engolida por buracos negros, e parte da futura será engolida.)

Sobre o determinismo geográfico, ver aqui.

Encobrimentos

Continuamos sobre o tema da Fortuna. O que se segue é apenas um desvio, uma voltinha, para nos familiarizarmos com a paisagem antes de retornarmos à estrada principal.

Stephen Hawking começa assim seu livro de divulgação científica: “Albert Einstein, o descobridor das duas teorias da relatividade...”*.

Não sei dizer se é um problema de tradução – e isso aqui não tem importância –, mas me chamou a atenção o uso da palavra ‘descobridor’. Descobrir é retirar a coberta que encobre alguma coisa, que por esse ato de descobrimento se revela tal como é de verdade. Descobrir é desvelar, retirar o véu que encobria e turvava a visão.

Por isso, há aqueles que reclamam que não houve propriamente um Descobrimento do Brasil. Porque o Brasil não jazia sob a travessia do Atlântico. De fato, o Brasil não foi descoberto, mas ‘Brasil’ é o nome dessa viagem secular pela qual os portugueses encobriram o sem-nome. Seria mais adequado falar de Encobrimento do Brasil e mais bonito, de Invenção do Brasil. 500 anos de Invenção do Brasil.

Da mesma forma, eu não diria que Einsten descobriu a teoria da relatividade, mas que a inventou a partir de uma interpretação criativa de fenômenos escolares (isto é, fenômenos ad hoc, que envolvem um longo ciclo histórico fechado sobre si mesmo, e que os lógicos chamam de ‘petição de princípio’). A teoria da relatividade não é uma descoberta, mas uma coberta. Quem sabe, começar assim o livro de Hawking: “Albert Einstein encobriu o sem-nome do mundo com as duas teorias da relatividade...”?

*HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. Trad. Ivo Korytowski. São Paulo: Mandarim, 2001.

O diabo e a Fortuna

O monoteísmo interpreta os acontecimentos como desdobramentos de uma só força, de um único princípio. O politeísmo, por sua vez, como o confronto no mundo de diferentes forças ou princípios.

Por isso, no monoteísmo puro, o diabo tem que ser necessariamente um desdobramento da própria divindade. Ele não possui uma força própria. Ele não é um princípio independente, mas é como uma figura que torna possível, no cosmos, a deliberação, o diálogo de deus consigo mesmo, a consciência dialógica divina. O diabo está junto à origem da dialética, quando o um se faz dois, ao negar-se a si mesmo.

A deliberação divina implica uma espécie de hesitação, uma suspensão momentânea do juízo de deus. Nada se passa. Ou tudo se passa como se o tempo parasse, como se os eventos não soubessem como acontecer, enquanto deus reflete em sua consciência.

Para manter-se estritamente monista, e não tornar-se maniqueísta, vinculando o devir ao jogo de dois princípios, um bom e outro mau, o monoteísmo precisa entender o deus que se confronta ao diabo como um subdeus. Haveria um deus que se desdobra em dois, em sua consciência dialógica, em subdeus e diabo.

Deus, como vontade, faria acontecer no mundo, conforme sua escolha entre o que lhe dispõem o subdeus e o diabo. Se deus escolhesse sempre e necessariamente conforme o que lhe dispõe o subdeus, então deus e subdeus seriam o mesmo, e o diabo apenas um apêndice.

Contudo, é um absurdo considerar a possibilidade da equivalência entre deus e subdeus. A equivalência do princípio supremo com um princípio subalterno é contraditória com a suma essência do deus único. Se deus é incomparável, não pode guiar sua escolha pelo critério de um ser inferior. Então, para manter sua supremacia absoluta sobre o cosmos, é preciso que, de vez em quando, o sumo e único deus escolha arbitrariamente segundo o lhe dispõe o diabo, que afinal de contas é apenas um aspecto da própria divindade.

Assim, do mesmo modo que a cosmologia politeísta, que submete o devir ao resultado incerto do conflito das forças primárias, a cosmologia monoteísta do diálogo entre deus e o diabo resulta num cosmos que se abre para a contingência (que no politeísmo grego é uma deusa: Tyche; e no romano, justamente, é a Fortuna).

No politeísmo, o confronto entre os deuses, entre as forças cósmicas que regem os acontecimentos no devir, terá sempre um resultado incerto, ligado às circunstâncias mesmas desse confronto. O primeiro princípio, na Teogonia de Hesíodo, é Caos (v. 116). Se não é o único primeiro princípio, pelo menos permeia tudo, desde sempre. Caos é o princípio sem princípio do cosmos. O que desarticula e reconfigura perpetuamente os outros princípios-força. Caos estabelece no cosmos o reino da contingência.

Se o resultado do conflito entre os deuses fosse necessário, se houvesse um destino pré-estabelecido de algum modo, o embate de forças seria regido por um princípio transcendente, que estaria acima das forças em jogo, uma força maior, um deus maior. E então estaríamos falando do mais puro monoteísmo. Se existe Ananke, a deusa grega da necessidade (que não aparece na Teogonia de Hesíodo) que torna trágica até mesmo a vida dos deuses do Olimpo submetidos a ela, então estamos falando de um princípio maior e acima de todos os subdeuses.

A Fortuna

A Fortuna é a ingerência arbitrária do divino no curso do mundo. O que seria determinante para que as circunstâncias fossem favoráveis ou desfavoráveis para algum indivíduo em particular. Um mundo sem a Fortuna é um mundo em que os deuses não interferem a favor ou contra ninguém.

Sigamos a trilha do puro monoteísmo. No início de tudo, ou desde sempre, a divindade estabeleceu as leis dos acontecimentos, os princípios eternos segundo os quais tudo no mundo vem a ser.

Isso não significa necessariamente que, depois disso, a humanidade foi abandonada. Não somos forçados a dizer que a divindade, ao criar as leis fixas dos acontecimentos, deixa o mundo e a humanidade entregues ao mecanismo de suas leis. Podemos dizer que os deuses estão presentes, se considerarmos a divindade como sendo a própria lei divina.

Considerada leis do devir, a divindade é ao mesmo tempo causa de tudo que acontece. O mundo não é o mundo do abandono , mas é pleno da presença divina, é imanentemente divino.

Aos bem-sucedidos

Aqueles que acreditam na Fortuna avaliam um indivíduo bem sucedido, dependendo das circunstâncias, seja como uma pessoa “eleita por deus”, seja como alguém que “vendeu sua alma ao diabo”.

Aqueles que não acreditam usam as mesmas expressões, mas apenas como metáforas das qualidades pessoais, virtuosas ou viciosas, que atribuem àquele indivíduo.

Isso nos introduz ao tema da Fortuna.

14

As observações negativas a respeito de uma pessoa de sucesso – mesmo as bem justificadas – são facilmente consideradas reações motivadas pela inveja.

O fogo do inferno

Temos as descrições de Dante. Mas Dante passa por elas fisicamente incólume. Temos as de Joyce*. Ainda mais sensíveis, a meu ver. Tudo sentimos, embora nada vejamos, pois o inferno são trevas. “Colocai o vosso dedo por um momento na chama de uma vela e sentireis a dor do fogo. Mas o nosso fogo terreno foi criado por Deus para benefício do homem, para manter nele a centelha de vida e para ajudá-lo nas artes úteis, ao passo que o fogo do inferno é de uma outra qualidade e foi criado por Deus para torturar e punir o pecador sem arrependimento”*.

Ou seja, o fogo da vela não é propriamente o fogo inferno, e o fogo do inferno não é propriamente o fogo da vela. O fogo do inferno não é fogo, ou só o é de modo eminente. Sobre o modo eminente de ser, há um belo áudio de Deleuze.

Para o “ImamKhomeini, é a fé no inferno (e, então, não a fé em Deus) que nos faz buscar o caminho de Deus, sem pecado. “É possível que alguém considere verossímil a existência do fogo do inferno e a eventualidade de nele queimar eternamente, e ainda assim ofender a Deus?”**.

Spinoza lida com o inferno de uma outra maneira. Spinoza reconhece que, sem a crença em um Deus onividente, onipresente e onipotente, não há por que o vulgo não tomar o caminho do pecado. “III. {é um dogma da fé} Ele estar presente em todo lugar, ou tudo Lhe estar exposto: {pois} se acreditassem esconder-Lhe as coisas, ou fosse ignorado Ele tudo ver, {então} da eqüidade da Sua justiça, que tudo governa, seria duvidado ou ignorado” ***.

Mas aquele que evita o pecado tendo em vista o mal, que sobre si incidiria caso pecasse, não está livre. Aquele que age bem de modo a evitar o mal, a punição, o fogo do inferno, permanece escravo, porque age negativamente. Só aquele que age bem pelo amor do bem {ou pela fé em Deus} é livre ****. Um modo de dizer que a liberdade negativa (de agir enquanto não há uma interdição) não é uma verdadeira liberdade. Ou a liberdade é agir para evitar o mal, mas apenas de modo eminente. A verdadeira liberdade é agir por amor ao bem, embora isso, praticamente, nos seja inacessível, inapreensível, incognoscível.

Aliás, e talvez tenha alguma coisa a ver com tudo isso, Ch. Dickens fala de uma centelha de vida: "Ninguém tem a mínima consideração pelo homem {o canalha Riderhood}: com todos eles, ele tem sido objeto de repúdio, suspeita e aversão {ninguém se importaria se fosse queimar no inferno}; mas a centelha de vida dentro dele é curiosamente separável dele mesmo, e eles têm profundo interesse nisso, provavelmente porque aquilo é vida, e eles {como Riderhood} estão vivos e devem morrer" (citado por Agambem, que cita Deleuze, que cita Dickens...).

Para resumir, eu diria: o fogo do inferno é eminentemente, e de modo inverso, o que a centelha da vida é propriamente.

Agora, para compreendermos Spinoza, é preciso captar, se for possível, o modo de ser EMINENTE como IMANENTE. O modo eminente de Deus, para Spinoza, não é transcendente. Deus e o modo eminente de ser não estão além-mundo. Assim como o fogo do inferno não está, ou não estaria.

(*) JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Trad. José Geraldo vieira. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 [1914]. Cap. III, pp. 134 ss.
(**) KHOMEINI, Ruhullah. Islam and Revolution: Writings and Declarations of Imam Khomeini (1941-1980). Trad. Hamid Algar. North Haledon: Mizan Press, 1981. P. 354.
(***) SPINOZA, Benedictus de. Tractatus theologico-politicus. Hamburgi: apud Henricum Künraht, 1670. Cap. XIV, p. 163.
(****) Ibid. Cap. IV, p. 52.

Antes e depois



Fonte: site BBC.

Olho aberto e, logo, fechado, com a cabeça um pouco inclinada para o lado. Somos mortais.

O fotógrafo talvez fale em antes e depois. Se tudo permanece como está, não há propriamente um depois.

Alguém morreu

Quando aprendo que alguém morreu, uma pergunta logo aparece na ponta da minha língua, como um reflexo. – Mas morreu de quê?

Muitas vezes, por pudor, que é um pouco de vergonha e de respeito misturados, seguro a pergunta ali onde a percebo, e a engulo, para que passe por onde tem que passar, até sair do meu corpo. Afinal, que relevância tem a pergunta? Pensando bem, o móbil da pergunta talvez seja o desejo de saber o que devo absolutamente fazer para evitar ter um destino semelhante ao daquele que morreu. Não é curiosidade. É um comportamento atávico. É insistência.

Então, eu digo para esse bicho que sou. – Não é a vida que importa, mas o que ela escreve.