O darwinismo e a técnica

No final do século XIX, já estão assentadas pelo menos duas leituras sociológicas (isto é, pertinentes ao estudo da lógica das sociedades) da teoria de Darwin.

Além daquela que resulta no evolucionismo social – que diz que, para que haja evolução, é forçoso que as raças humanas mais fracas sejam eliminadas pelas mais fortes – existe uma outra, que oferece uma melhor base científica para uma teoria mais antiga, a do determinismo geográfico.

Segundo esta última, o mecanismo da seleção natural seria responsável pela triagem de raças cada vez mais adaptadas ao meio ambiente, às condições de relevo e clima. Dessa forma, haveria uma aproximação, uma identificação, uma fusão progressiva do ser humano com o meio natural. A seleção natural tenderia para sistemas ecológicos herméticos, em que a humanidade estaria cada vez mais próxima à natureza. E isso, segundo um certo juízo, pode ser considerado uma regressão, uma degenerescência, uma animalização progressiva do elemento humano, ao invés de propriamente uma evolução – a humanidade sendo dominada pela natureza, e não a dominando como meio e instrumento para seus fins.

Um exemplo digno dessa segunda leitura é o clássico brasileiro, Os sertões, de Euclides da Cunha. Onde, além das influências do evolucionismo social de Gumplowicz, aparecem as do Hegel das lições sobre a filosofia da história(*).

Seguindo as relações entre essas duas leituras, que não são incompatíveis entre si, para que os fatores sociais evolutivos, deslindados na primeira leitura, possam atuar sem obstáculos, é preciso bloquear os mecanismos degenerativos postos em evidência pela segunda leitura. É preciso romper, ou enfraquecer ao máximo, as determinações naturais externas sobre a sociedade, para que, libertos desses laços, os processos internos à sociedade, que dizem respeito propriamente ao progresso da humanidade, possam se destacar e se tornar influentes na evolução.

O domínio humano sobre a natureza não só eleva a humanidade acima das determinações do meio ambiente natural, como também permite enfim que a humanidade vá além disso, e passe a eliminar do seu próprio seio, os seus elementos mais degenerados, mais animalizados.

Por isso, Euclides da Cunha vai reclamar para o Brasil a necessidade de inversão do curso normal da história: “A nossa evolução biológica [a melhoria da nossa raça] reclama a garantia da evolução social [a independência em relação à natureza]. Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos”(**). – O curso normal sendo outro: é a evolução biológica prévia (o estágio alcançado de uma raça superior) que normalmente garante a evolução social (o domínio da natureza).

Tendo em mente as duas leituras acima expostas, fica claro como o domínio humano sobre a natureza, a função manifesta e mais propagada da técnica, associa-se à sua função latente – o domínio do ser humano sobre o ser humano, enquanto sub-humano. Fica claro como o triunfo da técnica se associa ao pensar, à metafísica da biopolítica.

Sob essa ótica, talvez possamos entender melhor as relações do futurismo com o nacional-socialismo. E por que o nacional-socialismo, apesar de sua tonalidade tradicionalista e conservadora, não pôde abrir mão da técnica.


(*) Cf. sobretudo o apêndice 1. HEGEL, G. W. F. A razão na história: Introdução à filosofia da história universal. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995 [1822-1830].

(**) CUNHA , Euclides da. Os sertões. Campanha de Canudos [1902]. In: SANTIAGO, Silviano (org.). Intérpretes do Brasil. Vol. 1. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002 [2000]. P. 242.

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