Seu tema era a liberdade

Numa homenagem, Foucault disse o seguinte a respeito de um amigo seu: “Como todo verdadeiro filósofo, isso do que ele tratava era a liberdade”*.

Para Foucault, a filosofia não é uma tentativa de aprisionar o pensamento em conceitos – isso seria a falsa filosofia. Pois a liberdade não é um vazio, um campo vazio. É um campo cheio de coisas, e no caso do pensamento filosófico, um campo cheio de conceitos. Criá-los e lidar com eles é praticar a liberdade do pensamento.


(*) FOUCAULT, Michel. Vivre autrement le temps. Texte 268 [1979]. In: Dits et écrits. Vol. II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001 [1994]. P. 789.

Solidão e política III

Se não podemos inteligir, ao menos podemos observar que tendemos a sentir os mesmos sentimentos que imaginamos sentir os nossos próximos. Sofremos, ou tendemos ao sofrimento, quando vemos o outro sofrer, entusiasmamo-nos quando acreditamos que alguém que consideramos ser como nós se entusiasma etc.*

O desejo de solidão tem a ver também com essa tendência à imitação afetiva. Quando não desejamos mais ser afetados pelas mesmas alegrias e tristezas, amores e ódios, esperanças e medos que afetam nossos semelhantes (talvez porque consideremos seus afetos por demais vulgares... e gostaríamos de nos elevar acima deles), a solidão, o isolamento, a retirada da política é uma tática disponível.

Uma outra tática (mas essa está menos imediatamente disponível e requer uma formação), para não sermos afetados dos mesmos afetos (desejos, alegrias, tristezas etc.) que afetam os que nos rodeiam, é não mais considerá-los como nossos semelhantes. Assim, mesmo permanecendo entre eles, porque nos consideramos diferentes deles, não imitaremos seus afetos.

As duas táticas envolvem isolamento. Na primeira, trata-se de um isolamento corporal, um afastamento físico. Na segunda, o isolamento é caracteristicamente espiritual, uma consideração imaginária de superioridade, de inferioridade, de diferença.

Na primeira tática, a solidão rompe com a política. Na segunda, a solidão é justamente a condição de possibilidade da forma imperialista da política (e da relação imperador-imperados). Pois, aquilo que menos podemos suportar é receber comandos da parte de alguém que consideramos nosso semelhante, de alguém que estimamos ser igual a nós (nesse caso, todos desejam imperar, uns sobre os outros).

(*) Cf. SPINOZA, Benedictus de. Ethica-Ética: edição bilingue latim-português. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 [1675]. Parte III, proposição 27.

Historiografia do acontecimento

Uma explicação histórica convincente deve mostrar o acontecimento passado como a única alternativa possível para uma determinada situação, na qual ele tem sua origem. Isso quer dizer que o acontecimento tem que se mostrar, para nós também, inteiramente determinado pela situação, ou seja, que suas causas sejam inteiramente conhecidas na sua determinação para produzir o acontecimento.

Isso faria do acontecimento um evento e mostraria a impossibilidade de uma ciência do acontecimento enquanto tal?

Ou devemos inteligir a historiografia do acontecimento como uma crítica do evento e mostrar que somos, enquanto seres humanos, incapazes de apreender de modo total a causalidade na história?

Solidão e política II

A única forma de amizade aceitável na política é a de amigos que governem a si mesmos, a de amigos rivais (se isso ainda pode ser chamado de amizade).

O personalismo na política baseia-se em relações de amizade dependente (se isso ainda pode ser chamado de amizade).

Porém, um mecanismo, um formalismo político que impeça relações de amizade, também neutralizaria a política.

Solidão e política I

Compreendo que, em certos momentos, certos seres humanos se voltem para a solidão, deixando a política, como em outros, ao contrário, se voltem para a política, deixando a solidão.

Internet política

Internet: uma maravilhosa fonte (ou melhor: um maravilhoso campo) de informação e desinformação – campo ideal para a informaçãoBLOG. Atenção, porém, esse campo não é totalmente abstrato e livre (como a extensão cartesiana, ali disposta para acolher qualquer corpo). Ele já é um campo-corpo, já é constituído sob tensão.

Uma inscrição na internet não é portanto um traço no vazio, mas uma superposição, um traço efetuado sobre outros traçados. Na internet também, trata-se de palimpsesto.

Spinoza, por exemplo, negava a abstração da extensão cartesiana. Para Spinoza, não há vazio, não há espaço sem corpo, assim como não há pensamento vazio, pensamento sem ideia.

A música popular do vizinho

O termo genérico “música popular” encobre pelo menos duas formas distintas: a música de vizinhança (feita por e para vizinhos) e a música feita para a massa social indistinta com a intermediação dos canais espetaculares de comunicação (num contexto em que a vizinhança perde seu sentido e aplicação).

É terrível quando, ocasionalmente, essas duas formas se misturam: quando os vizinhos, eles mesmos, se expõem como intrusivos veículos da forma espetacular da música popular.

O dever do artista de viver para si mesmo

Proust sobre a amizade:
E porém eu não me enganava ao sacrificar os prazeres não somente da mundanidade, mas da amizade, àquele de passar o dia todo neste jardim [de rosas, ou seja, entre as jovens moças, como o vento, como o jardineiro entre as rosas. A metáfora do jardim é construída duas páginas atrás]. Os seres que têm a possibilidade disso [refere-se aqui à possibilidade do sacrifício da amizade e não à possibilidade de viver no jardim] – é verdade, estes são os artistas [e Proust estava convencido de que não se tornaria um deles, mas mesmo assim...] – têm também o dever de viver para si mesmos; ora a amizade é para eles uma dispensa deste dever, uma abdicação de si.
Mais adiante, na mesma página, Proust põe em analogia o dever (o dever-ser) do artista e o devir (o vir-a-ser) de uma árvore:
[Os artistas são] como árvores que retiram de sua própria seiva o nó seguinte do seu ramo, o andar superior de sua compleição*.
Os artistas são e devem ser como as árvores. É preciso, então, primeiramente, inteligir que o ‘dever de viver para si mesmo’ do tipo humano artista, de alguma forma, corresponde ao processo natural, não deontológico de crescimento de uma árvore, que retira de si mesma o alimento, a seiva que a faz ir mais alto.

Ora, o devir-árvore não é um dever da árvore. A árvore não possui deveres (no sentido de um dever de ser o que ela eventualmente não é na sua existência). Mas também o artista não é uma árvore, não se imagina preso como ela à sua essência natural em estreita vinculação com as suas circunstâncias existenciais.

O artista (devido à sua complexidade totalmente humana e ainda assim singular e diferente dos outros tipos humanos) tem a possibilidade de exercer sua liberdade (mesmo que isso seja apenas possível na sua imaginação) e sacrificar os prazeres da amizade a coisas mais relevantes.

A essência do artista é complexa e ele pode (novamente, ao menos imaginariamente) determiná-la num sentido ou em outro, e por isso se pode falar de um dever do artista. O artista pode pensar seu devir como um dever (imaginação também é pensamento).

Assim, de fato, o ‘dever de viver para si mesmo’ do artista não é exatamente um puro dever (em pura oposição à existência), mas um dever-devir.

O artista se conduz – imaginariamente, ele pode e deve se conduzir – segundo um princípio de existir que conjuga dever e devir, que não se pensa apenas em oposição à existência, às coisas tais como elas existem, como o dever-ser, mas também que afirma o seu vir-a-ser, como o devir.

A analogia do dever do artista com o devir da árvore nos revela ainda uma segunda faceta do dever do artista de viver para si mesmo. O devir da árvore não é para si, ele se guia por algo que extrapola o si da árvore e a eleva acima de si mesma. O elevar-se da árvore é mais urgente, premente que o si da árvore. O elevar-se é indissociável do si da árvore, mas não é o si árvore. Assim também, análogo ao devir da árvore, o dever-devir do artista não tem como complemento um objeto indireto pessoal reflexivo, isto é, não é um dever que encontra seu fundamento num objeto indireto pessoal – o si do para si – que lhe é como um fim.

O ‘para si mesmo’ na expressão do dever do artista pode ser suprimido (isso não implica, muito pelo contrário, o sacrifício de si): o ‘dever de viver para si mesmo’ é simplesmente o ‘dever de viver’. Este dever de viver, porém, não é o de simplesmente viver uma vida, viver a todo custo, o dever de perseverar na existência, mas é o dever de viver a vida de artista – este é o dever da altura.

A amizade para Proust não é o bem supremo. O bem supremo do artista é o elevar-se, é a altura. E a altura é um bem em si mesma e para si mesma – não para alguém que usufrua dela. A altura é o dever-devir da vida do artista-árvore.


(*) PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 468.

O açougue do 0rientalismo

Até que ponto eu e você somos orientais por nossa incapacidade constitutiva, fundamental, inata, biológica para a objetividade racional, para o raciocínio objetivo? Até que ponto somos orientais à medida que não podemos evitar a mistura de nossa imaginação com nossas intuições intelectuais? Até que ponto somos orientais à medida que não alcançamos o objeto na sua pureza, sem vesti-lo com nossa própria subjetividade?

Um tipo

O que você diria daquele tipo de indivíduo que nunca tem a força para afirmar explicitamente a si mesmo diante dos outros – isso seria pôr em risco toda a sua fraqueza –, mas que secretamente espera (e consideraria isso o mais justo) ser afirmado ou aclamado pelo outros como seu guia e líder por direito?

Orientalismo brasileiro

Aparentemente, as únicas linhas de pensamento que dispomos para refletir sobre nós mesmos são as linhas desenhadas pelo Ocidente. Isso nos faz ocidentais?

A insustentável leveza das ideias

Spinoza pensa indubitavelmente que a ordem das ideias é idêntica à ordem das coisas. Costumo fazer a experiência exatamente inversa: lidar com as coisas parece-me tão distinto de lidar com as ideias, sinto as coisas tão pesadas, ásperas, desencaixadas, sangrentas. Porém, devido àquela ausência de dúvida, o que costumo experimenciar não pode ser diferente do que Spinoza pensa.

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O açougue cria a carne.

Desejo de...

Francis Bacon

Dito de outro modo: não há um desejo de carne prêt-à-porter, mas do que a abre, recorta, expõe, anuncia. Há desejo de açougue.

Exemplos: Francis Bacon e o açougue do orientalismo.

O inimigo infiltrado

O tipo do inimigo infiltrado (aparentemente normal, assimilado, e por isso invisível, imperceptível, mas essencialmente estranho, bizarro, outro) atemoriza o tirano que o vislumbra em potência em cada um dos seus aduladores mais próximos.

Este tipo é recorrente na desconfiança (espontânea ou induzida) que vige nos mais diversos dispositivos de poder (em relação ao judeu, na Alemanha de antes da Segunda Guerra, ao comunista, durante a Guerra Fria, ou ainda atualmente ao terrorista islâmico nacional, ao nosso “paquistanês”).

Outro exemplo de inimigo inflitradoLane no Egito (na perspectiva de Said*): “O seu poder era ter vivido entre eles como um falante nativo, por assim dizer, e também como um escritor secreto”.

(*) SAID, Edward W.. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [1978]. P. 224.