Teologia e estratégia


– As pedras estão todas soltas!

Diante disso, não assumir uma visão apocalíptica (o mundo está ruindo), mas uma atitude estratégica (isto é, contemporânea).


Metafísica e estratégia


O pensamento metafísico (como chamá-lo?) caminha assim: assenta seu passo num solo firme, seguro, absolutamente garantido, antes de dar um próximo passo. Quanto mais tempo dedica, e quanto mais segurança obtém no primeiro fundamento – acredita –, tanto mais rapidamente poderá caminhar na sequência. – Todo seu impulso se encontra, portanto, no fundamento.

O pensamento estratégico não exige (porque não pode exigir) garantia absoluta de nenhum solo. Caminha sempre como que sobre ovos ou pedras soltas. As opções que toma nos seus passos estão sempre condicionadas à consideração das variações que podem ocorrer, a qualquer momento, nas sendas alternativas que se lhe apresentam para ir adiante ou, se preciso, para recuar. O seu impulso não provém da firmeza de nenhum solo, mas do próprio movimento. Quanto menos se assenta nas pedras (afinal, elas estão todas soltas), mais autônomo – para ele – se torna seu caminhar.


A verdade e o múltiplo

– A verdade é uma só. Se conversarmos educadamente, se deixarmos falar o outro, se o ouvirmos, se ponderarmos nossa posição pelas colocações e argumentos do outro, chegaremos necessariamente a um consenso, que, se não é a expressão da própria verdade, pelo menos, será a posição mais próxima à verdade que, numa determinada situação, nós poderemos alcançar.

– Nada disso. Ou melhor, também ainda isso: para vivermos juntos e com a verdade, não precisamos estar necessariamente em consenso, e fazer convergir nossas opiniões em uma só e comum. Existe o que se pode chamar de compromisso. Eu cedo nisso, e o outro naquilo. Compromisso é uma espécie de ponto de equilíbrio dos desejos (não é um contrato). E se alcança por barganha. Não se alcança por argumentos apenas, mas também por um jogo de forças.

– Mas, isso degenera em violência.

– A força não é sempre fisicamente manifesta. Falo de um jogo dos desejos-forças.


A pulsão pelo um – III et sic in infinitum


O que vem em primeiro para o conhecimento: a física (mas esta já ficou um pouco para trás) ou a biologia? A biologia ou a economia?

Para nós (mais para trás ainda, para os retardatários), a briga é esta:

– A ciência primeira é a metafísica ou a política?

Talvez esta briga nossa seja a briga entre duas pulsões: – entre a pulsão pelo um e a pulsão pelo múltiplo  ...entre [o amor/dominação] e [os amores/insurreições].


A pulsão pelo um – II...


Disso, que afirmamos na ideia, com as palavras, é sempre bom dar um exemplo real (aos empiristas): 

– “...a velha insinuação de que todo pensador importante tem essencialmente uma única ideia fundamental”* – da qual todo o resto do seu pensamento é apenas derivado. 

Uma única ideia fundamental? Se você a detém, você detém o pensador em suas mãos.

E podemos ir além. Ora, e essas ideias fundamentais de cada um dos pensadores importantes, não seriam elas todas uma única e mesma ideia? Não se pode reduzir todo o pensamento possível a uma única e mesma condição? – (O que seria, para mim, uma grande infelicidade) –







(*) FREDE, Dorothea. The question of being: Heidegger’s project. In: GUIGNON, Charles B. (Org.). The Cambrigde Companion to Heidegger. 2 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. P. 42.

A pulsão pelo um


Podemos perceber, por todo canto, isso que nos aparece – digamos – como uma enorme pulsão pelo um.

Uma pulsão não é necessariamente um querer, mas uma força-desejo (ou melhor, forças).

Uma enorme força redutora ao apreensível e ao manipulável. Ela reduz a multiplicidade para que a tenhamos em mente e entre as mãos.

Para que se diga: – eu a tenho na palma de minha mão.

Atenção

– A minha atenção é atraída para diferentes objetos saltitantes. Dessa maneira, o meu grande esforço de atenção é focá-la num objeto que mereça atenção.

Até mesmo ser acometido dessa ideia, em sua revelação, é uma distração da atenção.


O Monstruoso

Nosso modo de viver coletivo no mundo, afinal, é um monstro (com seus aspectos ou caretas: a sociedade de consumo, do espetáculo, a sociedade industrialmente avançada, a revolução burguesa, o império, o capitalismo, o biopoder).

Nós criamos um monstro (não no sentido de que ele seja uma criatura nossa, mas no sentido de que nós o cultivamos e cultuamos; como quando dizemos: “criamos um boi”). Um monstro que vive não apenas às nossas custas, mas da nossa carne-no-mundo. Um deus-afeto monstruoso (um Leviatã).

– Não podemos nada contra ele? Num equilíbrio mortífero muito grande, ele assimila tudo o que lançamos contra ele, até mesmo, a nossa subjetivação mais rebelde. Um monstro feito de carne e carnívoro; um monstro-afeto afetado de nossos afetos.

A lança que matará o dragão – pois o Monstruoso é certamente um ser finito, como todas as coisas da natureza – será uma metástase imanente (uma revolução da sua própria patologia) ou um objeto transcendente?


Uma questão

Desejo, prazer, prudência – como estas palavras se articulam umas com as outras? Mas, não me responda com desejo, nem com prazer, nem com prudência.

Sentido da vida

O que eu pensava que aconteceria no fim, acontece durante.

– Com isso, o fim é o nada. O fim deixa de ser um sentido para mim. E, assim, tudo perde sentido, porque o meio já não aponta mais para nada.

Mas, vejamos. Se, o sentido, nós o colocamos no fim, então, é o durante que não tem sentido em si. Há muitos caminhos para se chegar a um fim. E este caminho meu, pode ser substituído por outro. Se o fim é tudo, o nada está no durante.

O sentido tem necessariamente essa forma: (a) –> (z)?
Não poderia ter essa outra: (a), simplesmente (a)?


Essência no fim ou no começo? Potencial ou atual? – III



Pode nos parecer estranho que isso-que-faz-com-que-uma-coisa-seja-realmente-o-que-ela-é esteja no seu fim e não na sua atualidade (não no seu devir, mas no seu acabamento).

Já que, para nós, isso-que-faz é geralmente uma causa fazedora, uma causa eficiente.

Entretanto, é preciso reconhecer que, para nós, essa causa fazedora, nós a concebemos em geral como externa à coisa e, sendo externa, ela não nos parece ligada à natureza própria da coisa.

Aristóteles pensa em meio às nossas próprias colocações.

Aristóteles concilia nossas duas opiniões comuns (a de que isso-que-faz tem que ser uma causa e a de que a causa fazedora é externa à coisa) com a sua ideia de que a natureza da coisa é a sua finalidade, dizendo-nos que essa finalidade é uma causa – uma causa final.

Ora, a força causal de um fim só pode ser atrativa.

O fim só exerce o seu poder (ou o seu princípio de força) sobre a efetuação do real atraindo-a para si.

A causalidade final, em termos físicos, é uma espécie de força gravitacional – dá o movimento do mundo, porém, não exige seu colapso; pelo contrário, mantém tudo em ordem, e girando, e circulando, em torno do fim último como causa primeira.

Essência no fim ou no começo? Potencial ou atual? – II


O que você prefere?  – Pois, talvez, isso seja uma questão para a sua preferência.

Que sua essência – isso que você realmente é – esteja no seu fim ou que esteja atual, aqui e agora?

Uma coisa é realmente isso que ela se tornará, talvez, um dia?
Ou: uma coisa é realmente isso que faz o seu tornar-se?


Essência no fim ou no começo? Potencial ou atual?


Para Aristóteles, a natureza de uma coisa – sua essência, isso que mostra o que ela realmente é – está no seu fim, que é também o seu máximo, a sua excelência, a sua realização plena. Assim, ao longo da duração da coisa, sua essência é apenas potencial.

Para Spinoza, muito pelo contrário, a natureza de uma coisa – sua realidade – está na sua potência atual, que é também o seu princípio, a partir do qual as coisas que lhe dizem respeito acontecem. Já o fim de uma natureza é indefinido – afinal, ninguém sabe o que uma coisa finalmente pode.

Ação III


Há algo ou tudo na ação que se refere à amizade (ou, mais precisamente, à relação humana).

Ou se age em direção a um amigo, ou junto com um amigo, ou contra um inimigo (em “um amigo”, leia-se, não exatamente “um humano”, mas “um outro”).

Por isso, a ação requer significado.

Como o significado é relacional (ele só se fixa, em realidade, por relações), a ação não é de um sujeito: a ação nunca parte do agente sozinho. 

Daí, também, uma possível teoria semântica: “O significado se encontra nas preposições”.


Ação II



Pensar é agir sem se mexer? Mas isso é um paradoxo!

Inventa-se (inventar é sempre, também, descobrir o que já estava lá) a alma – movimento e princípio do movimento. Afinal, o corpo sem alma não se move. E, como disse Platão: o que é, para si mesmo, o princípio do próprio movimento é imortal.

– Não se preocupe (don’t worry!). Você age, mesmo quieto (em latim, quies = repouso que não se mexe) e sempiternamente.

Assim: não é exatamente a alma pensadora que é prisioneira do corpo quieto, mas o corpo falador que é escravo dessa dominação (toda invenção – e toda ação é uma invenção – é uma outra maneira de dominar).


Ação


Há sempre algo que me impede (devem ser algumas cordas, mas eu não as vejo, nem vejo onde cortá-las).


Para falar a verdade...

A verdade é tão elevada que nada abaixo dela pode lhe servir de medida.
Assim, não podemos julgar a verdade por meio da falsidade.
Só a verdade é norma para a verdade (veritas index sui).

E, assim, o velho, o muito velho critério epistemológico do saber só pode ser uma verdade auto-evidente.

Descartes encontrou a sua norma (a sua pedra de toque) na certeza de um saber absoluto.

“Eu penso” é o conteúdo, o objeto de um saber reflexivo (pensamento de pensamento, na forma de “eu sei que eu penso”) cuja certeza inquestionável deve valer como norma para todo outro saber.

Sócrates, por seu lado, encontrou sua verdade em um não-saber.

“Eu não sei de nada”. E assim “só sei que nada sei” – que é o saber de sua ignorância: e também a maior das ciências (como o “eu penso”). Ele se servia dela para “quebrar o pescoço” dos seus interlocutores. E, por isso, foi acusado e condenado por “corromper os jovens da cidade”.

E Nietzsche, no auge do paradoxo e da corrupção, encontrou sua verdade numa não-verdade.
“Não há verdade. Tudo é permitido”.

A arrogância do discípulo


Quando você for à “escola”, pense na inscrição que deveria figurar no arco do seu portal de entrada.

“O ensinamento não pode se inscrever senão em uma alma consciente de sua ignorância”*.

O arco é muito baixo.
Para entrar, é preciso dobrar o pescoço.
Como fazem os súditos.



(*) GOLDSCHMIDT, Victor. La religion de Platon [1949]. In: Platonisme et pensée contemporaine. Paris: Vrin, 2000. P. 30.



 

90


A carne não é fraca; a sua pretendida fraqueza (seu estremecimento) é a prova da sua força.


Arché – ontologia e política

Aliás, quando Heidegger explica a arché da filosofia, ele diz algo assim:

Arché – aquilo de onde algo surge, mas que não é deixado para trás no surgir; arché como aquilo que impera.


Conferir: HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? [1956]. Trad. Ernildo Stein. In: Conferências e escritos filosóficos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989. P. 21-22.

Eu-no-não-mundo



A ideia de que tudo a que tenho acesso são apenas as minhas próprias percepções (e não diretamente o mundo mesmo das coisas) é tão absurda e doentia quanto a ideia de que eu jamais possa pisar a luz (sequer sob o mais radiante sol), mas sempre somente a minha própria sombra, a sombra do meu pé.


Poliarquia



Taylor* nos mostra como, se Aristóteles levasse a fundo as suas próprias definições, o tipo de poder numa comunidade humana ideal seria o poder democrático.

Este poder (exercido entre homens iguais e livres), Aristóteles, é verdade, não o chamava de democracia, porque ele definiu a democracia como a sua perversão. A democracia, para Aristóteles, é o poder da maioria em vista da maioria e não do comum.

Ao poder exercido entre “homens livres e iguais” (com exclusão daqueles que não têm a autoridade – as mulheres –, que não sabem deliberar – os escravos, ou que não sabem falar – os infantes), para o bem comum, Aristóteles dá o nome de politeia.

Isso causa alguma confusão.

Pois, para Aristóteles, politeia é gênero e espécie. É o gênero de todas as formas de governo que visam ao bem comum. E é também uma espécie desse gênero, aquela em que o poder é exercido por todos os homens.

Politeia, como gênero, na tradução latina, é a república. Na tradução latina, fica ressaltada a finalidade da politeia, a res publica, a coisa pública ou o bem comum.

Republica traduz politeia como gênero e não como espécie.

A politeia como gênero, como aquele poder que visa ao bem da comunidade, é qualquer forma de forma de governo verdadeira e não pervertida. Como poder que cuida (que cura, que se preocupa) da coisa pública, a politeia é dita, também, monarquia e aristocracia – formas de governo em que somente um ou alguns poucos exercem o poder.

A tradução latina de politeia como republica nos esconde, então, aquele outro sentido, presente no grego, e que nos remete àquela forma específica do poder de todos, a pólis propriamente dita.

Nesse sentido específico, a pólis é uma comunidade composta de cidadãos (Política, III, 1, 1274b41). E um cidadão é definido como aquele que é capaz de participar nas áreas deliberativas e judiciais do governo (1275b18-20).

Na pólis ideal, todos os seus membros componentes, todos os cidadãos exercem o poder (não apenas a maioria) com vistas ao bem comum (e não ao bem exclusivo da maioria).

Quando Aristóteles fala da pólis e do tipo de poder exercido nela, ele fala de:
δ πολιτικ λευθέρων κα σων ρχή (I, 7, 1256a20)
Aí, aparece o termo politiké arché. Que é traduzido, no inglês, por “constitutional rule”, como “a government of freeman and equals”**. Que, no português, daria algo como “poder ou império constitucional, governo de homens livres e iguais”.

Arché para os primeiros filósofos designava o princípio ontológico que explica o ser das coisas existentes.

Para os primeiros filósofos, a filosofia era investigação da natureza (istoria peri physeus), “explicação da realidade, em seu conjunto e em seu estado presente, a partir da sua origem – a physis como arché – e explicação fazendo intervir apenas processos naturais”***.

E a arché, o princípio ontológico constituinte das coisas, variava: água para Tales, ar para Anaxímenes, fogo para Heráclito, apeiron (infinito ou indeterminado) para Anaximandro.

O termo arché está presente em monarquia (na qual o princípio constituinte da comunidade dos homens é mono, único, um).

Na comunidade ideal, o princípio constituinte é plural, não é um princípio, mas cada um dos membros componentes da comunidade é um princípio constituinte, cada um é uma arché, um poder, uma fonte de comando.

Poderíamos dar o nome de poliarquia a esta comunidade política ideal, constituída por uma multiplicidade de princípios.



(*) TAYLOR, Christopher C. W. Politics. In: BARNES, Johannes (Org.). The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

(**) ARISTÓTELES. Politics. Trad. Benjamin Jowett. In: MCKEON, Richard (Org.). The Basic Works of Aristotle. New York: Random House, 1941.

(***) CONCHE, Marcel. Anaximandre: Fragments et témoignages. Paris: PUF, 1991. P. 79.

Elasticidade afetiva – saudades do presente


Quando uma brisa ligeiramente mais fresca penetrou o ar ambiente de meu escritório, veio-me, de imediato, uma certa nostalgia deste mesmo lugar onde eu estava (ligada certamente à simples percepção da variação da temperatura).

|Os acontecimento nos interpelam – II| ou |O indivíduo pluricorporal – V| ou ainda: {|Os acontecimento nos interpelam| ou |O indivíduo pluricorporal – IV|} – II


Para o indivíduo pluricorporal, não se trata de “tomar partido”, mas de multiplicar, estrategicamente, as suas próprias posições.
O dilema das respostas é que elas nos tranquilizam. 

A velha questão epicureia da “paz na vida” (eggalènizôn tôi biôi). A imagem da vida como um mar calmo. A terapia contra as inquietações da alma pela produção de respostas (Epicuro) ou pela eliminação das questões (Wittgenstein).

Como dizia Ch. S. Peirce: 
“A dúvida é um estado de desconforto e insatisfação do qual lutamos para nos libertar e passar ao estado de crença; enquanto este último é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar, ou alterar por uma crença noutra coisa qualquer. Pelo contrário, agarramo-nos tenazmente, não meramente à crença, mas a acreditar exatamente naquilo em que acreditamos”*.
A resposta é problemática, justamente, porque, diante do acontecimento, não se trata de responder, posicionando-se para se tranquilizar, mas de problematizar.



* PEIRCE, Ch. S. A fixação da crença. In: Popular Science Monthly, Nov. 1877.


|Os acontecimento nos interpelam| ou |O indivíduo pluricorporal – IV|


Certamente, como as obras de arte, os acontecimentos nos interpelam. Nos atraem, nos questionam, nos convocam.

– Como te posicionas frente a isso que acontece?

Mas essa interpelação, essa exigência de “tomar partido” é também uma cilada. Não todas as vezes. Mas tende a uma armadilha, a um aprisionamento, a uma redução, a uma captura, quanto mais o campo da posição se coloca de maneira estreita e estritamente bipolar.

 – Tu estás deste lado ou do outro? Do nosso lado ou do lado dos outros? Tu és amigo ou inimigo? Estás na mira do nosso amor ou do nosso ódio?

– És por Kadafi ou torces pelos rebeldes? Em Florianópolis e São Paulo, és pelos criminosos ou pela polícia? No Oriente Médio, pelos judeus ou pelos palestinos?

A exigência de posicionamento frente ao acontecimento é também uma interpelação subjetivante. De fato, não o acontecimento, mas a interpelação do acontecimento quer ser uma função para o sujeito. O sujeito interpelado que se posiciona, que se posicione em função do acontecimento.

Toda tomada de posição, na unidade do sujeito, exige o alinhamento de todos os outros posicionamentos, genuinamente, coerentemente, seus.

Assim, à medida que respondemos à interpelação do acontecimento, à medida que nos posicionamos, que nos estabelecemos em uma posição fixa diante do acontecimento, vamos constituindo, também como uma exigência, também sob interpelação, uma posição única e unificada, desde a qual olhamos e avaliamos tudo o que acontece.

O pensamento estratégico, quando multiplica os posicionamentos e desunifica os sujeitos, combate a captura da interpelação.

Para o indivíduo pluricorporal, não se trata de “tomar partido”, mas de multiplicar, estrategicamente, as suas próprias posições.


E o que seria pensar o acontecimento?

Pensar o acontecimento seria, entre outras coisas, poder pensar o acontecimento como bom ou mau, certo ou errado. E, a partir disso, condená-lo e agir para impedir sua efetuação, ou concordar com ele e favorecê-lo.

Mas, como se trata, aqui, de mal ou bem, para pensar o acontecimento, não deveríamos “tomar o partido” divino, isto é, assumir uma perspectiva afastada, separada ou transcendente, que teorize o mundo desde fora e como sua criatura.

Deveríamos, enquanto humanos que somos, pensar o acontecimento estrategicamente, isto é, a partir do que realmente é bom ou mau para nós enquanto criadores.

Indivíduo pluricorporal III

A respeito de arte, Jean Luc Chalumeau disse o seguinte:

“Perante qualquer obra que se afirme arte, se deve adotar um ponto de vista e tomar partido, sob pena de renunciarmos a uma parte essencial da nossa humanidade”*.

“Tomar partido” quer dizer: colocar-se de um lado ou de outro, e concordar ou não com a afirmação: – isto, de fato, é arte!

Talvez pudéssemos dizer o mesmo, e ainda com mais urgência, acerca do presente:

“Perante o acontecimento, se deve adotar um ponto de vista e tomar partido, sob pena de renunciarmos a uma parte essencial da nossa humanidade”.

Com certeza, nós (eu falo por você também...) nos engasgamos com a palavra “partido”. O indivíduo não precisa ser um “partido”, para ser pluricorporal. “Tomar partido”, sem justificar a decisão tomada, é, para nós, a corrupção não só da humanidade como do pensamento.

Por outro lado, ao nos transpormos da arte para o presente, “tomar partido” não seria, para nós, emitir um juízo do tipo “isto é ou não é um acontecimento”. Mas “tomar partido” seria um juízo sobre a relevância do acontecimento para o presente: “isto merece ou não merece ser pensado”.

E o que seria pensar o acontecimento?


* CHALUMEAU, Jean Luc. As Teorias da Arte: Filosofia, crítica e história da arte de Platão aos nossos dias. Trad. Paula Taipas. Lisboa: Instituto Piaget, 2005. P. 12.

Indivíduo pluricorporal II

Cada um conta por cem ou mil.
E cem ou mil contam por um.

Quer dizer, a unidade não é mais o corpo, mas os cem ou mil corpos humanos agregados. As estratégias racionais então modificam-se. A estratégia do indivíduo pluricorporal é uma, a do indivíduo unicorporal é outra.

O número de indivíduos humanos sobre a Terra, a população mundial, seria, por exemplo, cem ou mil vezes menor. O que representa uma vantagem estratégica.

– Sim, talvez, mas em que isso nos importa, de fato? Há acontecimentos no mundo, agora, urgentes, sobre os quais você silencia, por quê? Por que você não toma partido, não se soma a um grupo? Por que não ousa expor a lógica, a sua lógica e interpretação para o acontecimento urgente? Afinal, a filosofia não é a “totalidade do saber”, não é “apreender seu tempo em pensamentos”?

– Talvez. Porém, parece-me, a filosofia não apenas é capenga (faltam-lhe as pernas) para dizer como deve ser o mundo no futuro, mas também para dizer a lógica do presente (na sua disparada). Se a filosofia é apreender o presente em conceitos, parece-me, então, que a filosofia é ou tornou-se uma atividade impossível. O presente é pensável em estratégias, e como tal, lugar de ação, mas inapreensível, ao menos, como verdade.

– Então, o acontecimento presente e urgente, pense-o sem apreendê-lo, posicione-se. Seu blá-blá-blá é preguiça e covardia. Ou você despreza o presente?


O indivíduo pluricorporal


A fórmula “um indivíduo = um corpo humano” (ou: “cada um conta por um e não mais do que um”) tem perdido a sua racionalidade, isto é, a sua eficacidade. O indivíduo humano unicorporal vem se tornando um impossível (na atualidade, já quase não cai sob o intelecto da natureza das coisas). O indivíduo pluricorporal será, talvez, a alternativa humana viável.

Cada um contará por cem ou mil corpos.


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Entre a busca pela independência e o egoísmo a fronteira não se desenha com um traço.

Sempre elogiar o acontecimento III – amor fati



Epicuro: – “O sábio se posta diante da Fortuna como um combatente”*.

Não há Providência divina. É preciso saber tirar proveito de tudo que acontece. Mejor! – como disse aquele sábio espanhol, na travessia do deserto sul-americano, ao ver morrer de sede seu cavalo.

Mejor! E repelir a melancolia.

Tudo vale a pena, aumenta a experiência, se a alma não é pequena.
E a alma (a própria experiência) não é finita por natureza, mas indefinida.
A morte não está inscrita na própria alma. É a duração indefinida que é conatural à alma.



(*) LAÊRTIOS, Diôgenes. Vie et doctrines des philosophes illustres. Trad. diversos. Paris: Le livre de poche, 1999 [250]. Livro X (Epicuro), §120. P. 1307. Mas a partir da tradução de M. Conche: “Le sage se dresse en face de la Tychè comme un combattant”.

Progresso da humanidade


O nosso progresso pode se medir pela quantidade de corpos humanos vivos (nunca fomos tantos) ou, inversamente, pela nossa ingente capacidade de matar-nos (nunca pudemos ser tão poucos).

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[Relativamente ao morto:]
A morte é como picada de mosquito-maruim, só dói na hora.

Thor, thar

O corpo ensanguentado do mártir, salpicado de areia e terra, não precisa ser lavado para purificar-se, nada é mais purificador – diz-se – que o sangue.

Thor, amado, companheiro


O princípio constituinte (αρχη) da vida e da filosofia – do aproximar-se distanciando-se.

– Isso de que há, para os seres, geração, é disso também que há destruição, conforme o devir; pois eles se fazem justiça e reparação uns aos outros de sua mútua injustiça, conforme a ordenação do tempo.

– A arché (αρχη) dos seres é o infinito, pois dele nascem todas as coisas, e nele todas as coisas se resolvem.

Anaximandro  (séc. VI, A.C.)



Thor, querido, maravilhoso


*
A honra de um grande caçador é morrer caçado.

*
Tudo passa.

*
Tudo que é deixa de ser, e assim é sempre.

*
Uma ausência. Um buraco no ser.

*
A respeito das coisas mais intensas silenciamos.

*
A alma é uma maneira de ter o corpo mais por perto.

*
Acostumada também ao silêncio, a terra dessa terra é macia, abre-se suavemente no parir, abre-se novamente com suavidade para recolher no derradeiro abraço.

*
Suprimir da língua os pronomes possessivos talvez empobrecesse a expressividade do presente, mas diminuiria a possessividade do devir.


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São dois aspectos de uma mesma regra de vida: aumentar a experiência e combater a melancolia.

Aumentar a experiência


“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.” *

Ou seja: tudo isso que aumenta a nossa experiência (a nossa alma) – e portanto nos alegra – vale a pena**.

Assim, a questão da ética não é mais a da escolha. Não se trata mais de escolher, mas de experimentar.

Isso não quer dizer que não seja preciso escolher – a duração é decisão – mas que o escolher (e o saber escolher) não é mais o que nos guia.

O que nos guia é o experimentar. E ao escolhermos, estarmos atentos para o que diminui, ou apequena, em razão da nossa escolha, a nossa experiência.





(*) PESSOA, Fernando. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. Mensagem; II parte; X. P. 82.

(**) Tudo o que aumenta a alma nos alegra, e “a alegria não é diretamente má, mas boa; a tristeza, por outro lado, é diretamente má”. SPINOZA, Benedictus de. Ethica-Ética: edição bilingüe latim-português. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 [1675]. e4p41. P. 315.

Pensamento portátil


Num mundo de bens, que é também de deslocamentos, a portabilidade se mostra crucial (assim, o sucesso do relógio portátil, da calculadora portátil, da cafeteira, do rádio portáteis etc.).

Para a utilidade do corpo, porém, mais crucial ainda é a portabilidade do pensamento.

O pensamento portátil acompanha o corpo, e não necessita de nada além dele, de nenhum intermediário entre ele e o corpo, para funcionar.

Occidens II


Para percebermos a marca material das duas acepções de occidere, só mesmo considerando o que resulta da atividade do particípio presente, o particípio passado.

Quando occidere significa cair morto, o particípio passado é occasus – na nossa língua, “ocaso”; o resultado da atividade reflete uma nova situação do próprio sujeito occidens.

Quando occidere significa matar, o particípio passado é occisus; o resultado da atividade indica uma nova situação do objeto do sujeito occidens, como sujeito “ocisivo”– a situação objetal resultante disso que na nossa língua se diz “ocisão”.

Occidens

Occidens, termo em que se enraíza o nosso “Ocidente”, é o particípio do verbo occidere, que tem duas acepções no latim*.

Na acepção mais presente e manifesta em nosso “Ocidente”, a atividade de occidere é quase uma passividade, é uma atividade intransitiva e quer dizer: cair por terra, tombar, sucumbir, perecer. O sujeito do verbo, o sujeito ocidente, é aquele que por si se põe ou que é posto à terra, que se deita, perecendo. Falando-se de um astro: o astro ocidente é aquele que se põe no horizonte.

A outra acepção de occidere é a atividade transitiva correspondente à atividade-passiva da primeira acepção. Nesse caso, occidere requer um objeto e quer dizer: cortar em pedaços, matar, fazer perecer. O sujeito ocidente é aquele que assassina, reduz a migalhas, faz algo se pôr à terra. Falando-se de um astro: o astro ocidente seria aquele que destrói, que se ergue no horizonte acima da terra toda, submetendo e secando tudo até a morte.







(*) GAFFIOT, Félix. Le Gaffiot de poche. Paris: Hachette, 2001.

A “potência do negativo”


Um ser humano sensato, de tanto achar que o real não deveria ser assim (como ele é), eventualmente, adere à opinião insensata de que isso-que-é (como ele é) não é o real.

Fragmento de Enciclopédia [Página 2567, coluna A, verbete MORRISON]


J.-L. Morrison (1878 – ) foi o primeiro a compor as notas de rodapé com um tamanho de letra maior do que o utilizado para o texto corrente.

[A Enciclopédia não indica, porém, se Morrison era pensador ou tipógrafo]

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É necessário ser prudente, para, quando desejando Caribe, não terminar em Caríbdis.

Gregos e bárbaros II


Racionalmente (quando temos em mente ideias adequadas) ou irracionalmente (quando temos em mente ideias confusas ou inadequadas), todos nós (gregos ou bárbaros) nos esforçamos por buscar isso que nos é útil, que aumenta a nossa potência e expulsa a nossa melancolia. (conferir Spinoza e3p9)

Com isso, já damos um sentido peculiar  ao que é grego e ao que é bárbaro (e nos distinguimos do sentido de M. Conche). E podemos, então, afirmar o seguinte.

Alegramo-nos barbaramente quando atribuímos a causa disso que nos alegra a uma coisa que esteja apenas fora de nós. Alegramo-nos gregamente quando percebemos que a causa disso que nos alegra, na verdade, estando fora, também está em nós mesmos, como numa dobra, pela qual o que está e age por fora também está e age por dentro.

E o interessante, para a nossa salvação, é que toda alegria bárbara pode se tornar grega (cf. e4p59 e e5p3).

O grego e o bárbaro


Os outros povos [os bárbaros] tinham, aos olhos dos gregos, um traço comum: eles eram todos e sempre interessados, visando ao útil. Diferentes deles, os gregos se reconheceram capazes, eles e apenas eles, de um interesse puro pela verdade. [...] O “amor do saber” por si só é a marca particular dos gregos.*

Se esse amor da verdade (de uma verdade que esteja acima da utilidade) fosse verdadeiramente grego, o pensamento de Spinoza seria bárbaro (ou oriental, como chamamos hoje o que está desvinculado do racional ocidental).

Em Spinoza, a verdade não se desvincula disso que nos é útil, ela não está em ruptura com ele; pois, se isso que inteligimos é o verdadeiro, também é isso que é útil para nós, porque nos causa alegria (conferir Ética III prop. 59) e expulsa verdadeiramente a melancolia.



(*) CONCHE, Marcel. Anaximandre: Fragments et témoignages. Paris: PUF, 1991. P. 6.


A pudenda origo da filosofia



Todo historiador da filosofia, num determinado momento da sua carreira (e quando ele já se sente suficientemente abastecido para isso), vê-se obrigado a responder à seguinte pergunta: se é verdade que a filosofia tem origem nos gregos, por que a filosofia nasceu na Grécia e não entre os bárbaros?

Segundo Marcel Conche, os gregos puderam se tornar filósofos por duas razões:

1) porque inventaram o alfabeto, que permitiu expressar textualmente um pensamento claro e distinto;

2) porque puderam estabelecer uma relação reflexiva direta com a natureza, sem o intermediário de nenhum mito de origem.

Deixemos de lado a primeira das razões (se o tipo da relação da linguagem com o pensamento já nos parece indecidível, o da relação entre o alfabeto e o pensamento, ainda mais).

Para Conche, os gregos e não os bárbaros puderam estabelecer essa relação direta com a natureza, porque eles foram esclarecidos por Homero. Se o poeta “fixou para os gregos uma teogonia” (nas palavras de Heródoto), ele, “ao mesmo tempo, ao fazer dos deuses objetos poéticos, nos quais não se crê de verdade, libertou os gregos dos seus deuses” (nas palavras de Conche)*.

Assim sendo, a filosofia deveria a sua origem à poesia. 
Origem que, mais tarde, a filosofia, sabemos, vai veementemente renegar. 
Pudenda origo!



:: para outros :: inversamente :: a poesia é o fim (não a origem) da filosofia



(*) CONCHE, Marcel. Anaximandre: Fragments et témoignages. Paris: PUF, 1991. P. 9.

Duração e decisão II

A duração é um encadeamento de decisões necessárias. Decisões, porque na decisão está envolvido o desejo. Necessárias, porque no desejo se apresenta o devir do universo.

Duração e decisão


Retenhamo-nos na fração de instante em que uma pedra toca a lisa superfície da água. Nesse momento, é decidido: – a pedra vai ser envolvida e submergir.

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Os resultados ou os efeitos de uma instituição, no juízo dos instituídos, são impreterivelmente justificados (se não fossem, as interrogações e os inquéritos se voltariam também sobre eles, pois eles também se sabem resultantes da instituição).

Mito e história X


“Não é empresa fácil a um estranho devassar a intimidade do lar paulistano. [...] Escolhamos para o nosso inquérito um prédio de boa aparência. Pouco nos interessam as pousadas onde pousa a gente somenos: não varia no tempo e no espaço o espetáculo da miséria humana.”*
Considerado o trecho acima recortado, ao lado da afirmação de que a história é o conhecimento do “melhorar e melhorar-se”, fica-se com a impressão de que, para o seu autor, não há história da miséria humana da gente somenos, porque sua condição não varia, não melhora, é sempre a mesma, anistórica.

Se da condição da gente somenos não se faz história, dessa condição, reserva-se-nos, ao menos, fazer a crítica – mostrar como são reproduzidas (junto a qualquer produção de melhorias, pelos próprios modos de produção) as estruturas que mantêm sem variação a condição da miséria. Mas, essa crítica precisaria ser histórica (a história, aqui, deixa de ser simplesmente a reportagem do passado “real”, para se tornar a ficção da realidade do passado).

No pensamento de outros, porém, não há coisas humanas das quais os historiadores diriam “pouco nos interessam”. Walter Benjamin, por exemplo, nos diz que para a “humanidade redimida [...] seu passado se torna integralmente citável”**, em cada um dos seus instantes e detalhes.

(*) MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante [1929]. In: SANTIAGO, Silviano (Org.). Intérpretes do Brasil. Vol. 1. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002 [2000]. P. 1237.


(**) BENJAMIN, Walter. Sur le concept d’histoire [1940]. Trad. Maurice de Gandillac, revista por Rainer Rochlitz. In: Oeuvres III. Paris: Gallimard, 2000. Tese III. P. 429.


Uma ideia balzaquiana de poesia II


“LUCIANO: – Se o objetivo da poesia é colocar as ideias no ponto preciso em que todo o mundo as pode ver e sentir, o poeta deve incessantemente percorrer a gama das inteligências humanas a fim de satisfazer a todas; ele deve esconder, sob as mais vivas cores, a lógica e o sentimento, duas potências inimigas; é preciso ele encerrar todo um mundo de pensamentos dentro de uma palavra, resumir filosofias inteiras por meio de uma pintura; enfim, seus versos são os grãos dos quais as flores devem desabrochar nos corações, seguindo, aí, os sulcos cavados pelos sentimentos pessoais.”*

A poesia é, para Luciano, um grão de ideias que pode germinar na fertilidade do sentimento de qualquer um. Se o filósofo é um criador de ideias, o poeta é um semeador de ideias. A poesia, uma popularização da filosofia. 

Então, assim que o filósofo leva uma ideia a todas as inteligências, ele se torna um poeta. – É isso?


(*) BALZAC, Honoré de. Illusions perdues. Paris: Gallimard, 2010 [1837-1843]. P. 116.

Uma ideia balzaquiana de poesia


“Para ser traduzida pela voz, como para ser apreendida, a poesia exige uma atenção santa. Deve-se dar entre o leitor e o auditório uma aliança íntima, sem a qual as elétricas comunicações dos sentimentos não ocorrem.”*
A poesia, aqui, se explica com base na ideia de uma corrente elétrica (uma ideia provavelmente recente** na história da física moderna) entre dois corpos sentimentais (almas?) em comunicação (comunicação que se estabelece por meio de uma atenção “santa”, “íntima”, que modera o materialismo da metáfora). A poesia seria transponível, passante de um recipiente a outro.

Novamente, temos aqui um exemplo do materialismo metafórico – o recurso a uma imagem material para dar a ordem de uma coisa que, para o autor da metáfora, é muito espiritual.

O movimento corrente da metáfora ideológica não seria o inverso: recorrer a imagens espirituais para explicar isso que é de ordem material?


(*) BALZAC, Honoré de. Illusions perdues. Paris: Gallimard, 2010 [1837-1843]. P. 106.

(**) Conferir: http://www.ampere.cnrs.fr/?lang=fr

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O segredo não é somente aquilo que alguém sabe e não diz. O segredo é também aquilo que ninguém sabe.


“...melhorar-se e melhorar” – II; Mito e história IX


A história seria, então, a história do progressivo descolamento do humano à natureza. E o descolamento deste animal seria o produto do uso aperfeiçoado (ou, melhor, do auto-aperfeiçoamento) da razão. Razão, que é isso que distingue o humano entre todos os animais. 

Assim, a história seria – no fundo –, não a história do humano, mas a história da razão (o verdadeiro sujeito da história, por meio dos humanos).

Disso, se segue (ex iis, sequitur) – a razão (a emancipação dos humanos frente a natureza) é um vírus (do qual os humanos devem se emancipar).

“...combate diuturno”


A luta histórica da “razão” humana é a história da luta contra a natureza. Mas a condição natural humana, de fato, não é uma condição de luta contra a natureza, mas a condição de “guerra de cada homem contra cada homem”*. Certamente, porém, não de cada um contra cada um (isso seria “ideologia”), mas de grupos contra grupos, raças contra raças, classes contra classes**.

Desse modo, a história deixou de contar o conhecimento que tem da luta do humano contra a natureza, para contá-la, de modo verdadeiro, como história da dominação do humano pelo humano.

A cooperação entre os humanos, na sua luta pela produção da sua historicidade (que é, antes de tudo, a luta pela produção das suas condições de vida na natureza), é, historicamente, uma divisão do trabalho, que determina a relação entre quem trabalha e quem não trabalha, entre quem impera e quem não impera, enfim, entre os dominadores e os dominados: “A história das sociedades não foi mais do que a história das lutas de classe”***.


(*) HOBBES, Thomas. Leviathan. Indianapolis/Cambridge: Hackett, 1994 [1651]. I, xiii, §8. P. 76.
(**) Conferir: FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société: Cours au Collège de France, 1975-1976. Paris: Seuil/Gallimard, 1997 [1976].
(***) MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifeste du Parti communiste. –: Librio, 1998 [1847]. I. P. 70.

“...melhorar-se e melhorar”


A ideia de que a história é a história do progresso (a história só conta o “melhorar-se” e o “melhorar”) tem sobre o presente um efeito conservador: – as coisas, como elas estão, estão da melhor maneira possível, pois, historicamente, nunca estivemos tão bem.

Mesmo entre os revolucionários: – a revolução (na medida em que só ela escreve a história) indica sempre um movimento para melhor. Por isso, insiste-se tanto em dizer dos movimentos mais conservadores que eles são revolucionários.

Mito e história VIII


Os animais não humanos (ou, como são ditos, os animais “irracionais”) não percebem o restante da natureza como uma inimiga, contra a qual precisam lutar até dominá-la, para não ser dominados por ela. A natureza é certamente, para eles, um perigo capaz de aniquilá-los num instante, mas ela também é a causa imanente de sua existência. Por isso, vivem sem “história”, como alguns grupos humanos já viveram, e outros vivem, e outros viverão talvez, no mito, vinculados às leis naturais.

Na opinião de um certo historiador, a história é uma tomada de conhecimento desse movimento pelo qual o humano (no jogo das paixões, sob a astúcia da razão) se diferencia, para dominá-lo, do meio natural. Com essa conscientização, a história torna-se também autoconhecimento (o conhecimento do movimento dito “racional”).
O conhecimento do que o homem tem realizado no combate diuturno que desde as cavernas vem pelejando para melhorar-se e melhorar o meio em que vive, tal o objetivo essencial da história.*
Dois pontos a se pensar: a ligação da história com este “melhorar-se e melhorar”. E a ligação deste “combate diuturno” contra a natureza com o combate dos humanos contra os humanos.

(*) MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante [1929]. In: SANTIAGO, Silviano (Org.). Intérpretes do Brasil. Vol. 1. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002 [2000]. P. 1209.

– Sempre! Desde fora ou desde dentro.

Quando alguém usa o advérbio “sempre”, desconfie. Afinal: – Ele pode estar enunciando uma teoria.

Teorizar (e o teatro compartilha dessa mesma ideia) é olhar para as coisas desde um ponto de vista infinitamente distante, o de um olhar que as apreende na sua totalidade.

Mas há um uso válido para “sempre”. Quando o ponto de vista do anunciante é infinitamente próximo disso que se enuncia (ou seja, é isto mesmo que se enuncia).

InfoBlog e a verdade

Quando se diz de um humano que ele é bem-informado, isso não quer dizer que ele esteja também em posse da verdade.

Movimentos corporais e a vontade


Os movimentos de nosso corpo seriam de dois tipos: aqueles precedidos por uma determinação da vontade; aqueles que ocorrem sem intervenção da alma, mecânicos (“do mesmo modo que o movimento de um relógio é produzido só pela força de sua mola e a figura de suas engrenagens”*).

O soluço, a experiência de soluçar – se a percebemos bem – serve para pôr em questão esta tese. Quer-se sempre o soluço (como numa antecipação, que ele venha). Mas se não o queremos, ele vem do mesmo jeito (mas não exatamente contrariando a nossa vontade).


(*) DESCARTES, René. Les Passions de l’âme. Paris: Le Livre de Poche, 1990 [1649]. I, Art. 16. P. 50.

A coisa X

– Sobre X, ele ora diz a, ora b, ora c... jamais a mesma coisa.

Isto pode ser dito seu “erro”: – ele não consegue reduzir X a uma só coisa.
Ou seu “acerto”: – afinal, X, realmente, não é um.

angustiae, arum, f. pl.

Angustia, como “sempre” no latim, diz, em primeiro lugar, o estreitamento, o aperto espacial ou temporal: como o espaço estreito de um pequeno quarto ou a estreiteza de um intervalo de tempo, de um prazo. No âmbito do corpo humano, significa o estrangulamento e a asfixia decorrente. Depois, a palavra passa da física para indicar uma situação do espírito. A angústia latina tornou-se uma imagem para expressar um afeto da alma na redução de sua relação ao mundo.

A exemplo desse teórico deslocamento semântico que, no latim, vai sempre do material ao espiritual, Walter Benjamin explica o afeto espiritual recorrendo à imagem material: – “Sentia-me como um vaso de gargalo estreito no qual se despeja líquido de um balde”.*


(*) BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. São Paulo: Schwartz, 1984 [1927]. P. 112.

Ego, apeiron


O ego ou a consciência de si se forma, ou se determina, no jogo conflituoso (dos incentivos e das barreiras) com outras coisas.

No jogo de quê com quê? De algo que recebeu diversos nomes: no jogo de “forças”, de “esforços”, de “afirmações causais”, de um “princípio de prazer”, de uma “vontade de potência”, etc.

Por isso, o ego é o correlato de pelo menos um objeto: 
“...ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes [de sensações] lhe fogem – entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o seio da mãe –, só reaparecendo como resultado de seus gritos de socorro. Desse jeito, pela primeira vez, o ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de que algo existe ‘exteriormente’ e que só é forçado a surgir através de uma ação especial.”*
A determinação do ego dá-se portanto sob o efeito de uma delimitação. Não é por nada que o apeiron de Anaximandro é ora traduzido como “o ilimitado, o infinito” ora como “o indeterminado”. Determinação e delimitação (ou a finitude extrínseca) seriam sinônimos.

Assim, não é espantosa a afirmação de que – O ego seja um modo do apeiron.

Curiosamente, porém, quando o ego alcança a sua máxima determinação, na ilusão de que seu vir a ser é autoconsistente e, assim, de que seu vir a ser é separado daquelas forças externas e limitadoras que, somente elas, fazem do ego uma “consciência de si”, o ego perfaz de si mesmo a falsa imagem (ou a falsa consciência) de que é semelhante ao apeiron.

“este [o livre-arbítrio, ou seja, a autodeterminação da vontade] nos torna, de algum modo, semelhantes a Deus, fazendo-nos mestres de nós mesmos, desde que não percamos por covardia os direitos que ele nos dá”**.


(*) FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997 [1930]. P. 13.
(**) DESCARTES, René. Les Passions de l’âme. Paris: Le Livre de Poche, 1990 [1649]. III, Art. 152. P. 141.

Gestos e pensamentos em cópia infinita

– “Quis escrever-lhe umas linhas, mas havia esquecido meu lápis.”*

Ele-eu-tu-nós.
Na cópia infinita, os pronomes se equivalem. Pois, o singular é uma cópia.

– “Também conversamos sobre o desaparecimento da vida privada. Simplesmente não há tempo.”**

– “Gradualmente, havia se dado conta do que estava acontecendo realmente: a conversão do trabalho revolucionário em esforço técnico”.***




(*) BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. São Paulo: Schwartz, 1984 [1927]. P. 95.
(**) Ibid. P. 101.
(***) P. 98.

Cópia infinita

A cópia infinita (como o eterno retorno) é uma configuração mítica (quer dizer: um movimento que não tem história).

Em nossa configuração mítica presente, que é a da cópia infinita (na qual cada gesto singular é um reflexo instantaneamente reproduzido ao infinito), não existe o original (a partir do qual a cópia seria produzida).

Tudo é cópia – sem original.