Tonalidades de mundo

Para o desgraçado, todo elogio (não aquele que lhe é feito, mas aquele que é feito à situação que o desgraça) é tomado como uma palavra de consolo.

A fórmula do ensinar



Ou

(1) sabe-se, antes, o que é o ENSINAR e compreende-se a fórmula,

ou

(2) compreende-se, antes, a fórmula e, então, compreende-se o que é ENSINAR.


Dos ameríndios ao luxo


Ameríndios, agricultores em floresta. Imagem que combate a necessidade do agrotóxico em ambiente tropical (cheio de vermes).

– Mas, sem o veneno, não se produz tanto.

“Tanto” é o plus que se produz além do necessário e do suficiente, talvez, para a troca (a qual, se necessária, não requer “tanto”). E “tanto-tanto” é o mais-que-plus, que o luxo exige.


O autodidata e o conhecimento de si

Aquele que aprende ao se conhecer aprende porque faz de si um outro, um desconhecido. O conhecimento de si envolve, assim, no perigo, essa abertura em si de um outro.

O aprendizado e o outro


Se eu acredito no autodidatismo?

Num certo sentido, não. Porque só aprendemos se, em alguma medida, nos tornamos um outro.

Assim, à capacidade de aprender corresponde uma capacidade de “se outrar”. O aprendizado, portanto, envolve a alteridade (como faz, aliás, a relação de comando-obediência).

Isso não quer dizer, entretanto, que é preciso a pessoa (o corpo, a fala e o olhar) de um mestre, se há, por exemplo, um livro. Basta o livro, se o aprendiz está na capacidade de tomá-lo como um outro (isto é, como algo que remeta à não-compreensão).

A alteridade é uma condição necessária do aprendizado, embora não suficiente (precisaríamos falar no desejo).

Pichação preta e demão de tinta branca


Para Kant, assim como os objetos das inclinações,
As inclinações elas próprias, porém, enquanto fontes da necessidade, têm tão-pouco um valor absoluto para que as desejemos elas mesmas que, antes pelo contrário, ficar inteiramente livre disso tem de ser o desejo universal de todo ser racional.*
Mas, se, a partir disso, eu digo que um traço marcante da moral kantiana é que ela tem horror às inclinações humanas, na medida em que o humano é um ser racional (visando, idealmente, a um espaço de liberdade vazio delas), como a natureza tem horror ao vácuo (preenchendo, porém, por necessidade, o espaço), certamente, alguém imediatamente se manifestará (quase indignado) para tornar menos marcante o que digo.

Fariam-me ler que, de fato,
As inclinações são, consideradas em si mesmas, boas, isto é, irrepreensíveis, e querer extirpá-las seria não apenas em vão, mas também nocivo e censurável; muito pelo contrário, temos tão-somente de domá-las, de tal sorte que elas não se desgastem umas às outras, mas, em vez disso, se deixem harmonizar em um todo ao qual se dá o nome de “felicidade”.**
Assim, para os eruditos escolados, o refinamento da leitura de um texto exige sempre a leitura de um outro texto e assim por diante. De modo que cada leitura, como uma demão de tinta branca que atenua um pouco a força de uma pichação preta sobre um muro, atenua um pouco a marca própria de uma outra leitura do pensamento. Com isso, a erudição escolada tende a tornar todos filósofos em figuras sem tatuagens.





(*) KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial : Barcarolla, 2009 [1785]. Segunda Seção. P. 241. Grifo meu.

(**) KANT (“A religião nos limites...”) apud ALMEIDA, Guido Antônio de. Introdução e notas. In: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso Editorial : Barcarolla, 2009 [1785]. P. 328, nota 328.

A compreensão do núcleo aumenta com a não-compreensão da margem.


A intensidade da minha compreensão de, por exemplo, três ideias aumenta se eu tiver acesso a dez outras ideias, num primeiro instante, incompreensíveis, situadas à sua margem.

Aumentará ainda com o acesso, para além daquelas dez, a mais cem ideias periféricas.

Assim, a não-compreensão favorece a intensidade da compreensão (um pouco como o escuro intensifica o claro).


Como é difícil ser rei entre os Urubu





Sobre a tribo dos Urubu, François Huxley:
É papel do chefe ser generoso e dar tudo o que lhe pedem: em algumas tribos indígenas, pode-se reconhecer o chefe porque ele possui menos que os outros e traz os ornamentos mais miseráveis. O resto foi-se em presentes.* 
Ou seja, entre os Urubu, o avaro, que acumula riquezas, não é reconhecido como chefe. Enquanto, entre nós, a quantidade de poder (no sentido restrito e antidemocrático, de uma capacidade hierárquica de comandar) equivale à quantidade de riqueza. Se fôssemos Urubu, reconheceríamos os nossos chefes nos desmunidos e não nos munidos.

(A Igreja católica, pelo contrário, reconhece magnificamente a si mesma como chefe, por reconhecer e ao reconhecer no mundo a quantidade da miséria).




(*) Huxley apud CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2003 [1974]. Cap. 2. Troca e poder: filosofia da chefia indígena. P. 48.


103

Para falarmos de filosofia, em filosofia, precisamos de muitos parênteses.

102

– (Alguma) filosofia é um pensamento poético, quer dizer: (auto)produtor e (auto)produzido.

101


O que o desejo de uma exclusiva ciência positivista ou a antimetafísica tem a ver com o antipensamento?

Mito e história XII


A história é usualmente concebida como o movimento de inovação pelo qual o humano socialmente se arranca de uma situação mítica (estática e fechada – enfim, prisioneira dos tempos, da origem ao fim).

Para Clastres, a situação mítica já é, porém, uma situação histórica se ela conter (e o mito, dependendo, pode favorecer isso) alguma espécie de poder coercitivo.

Sociedades sem história, para ele, não são sociedades míticas, mas sociedades sem poder político coercitivo. E a história é a história das formas de coerção nas sociedades.

Nesse sentido, podemos dizer, as autênticas lutas contra a dominação, isto é, quando não são lutas pelo poder coercitivo, são lutas contra a história. (Agora nos chega mais clara a compreensão do dito-oracular de Herzog.)

Por isso, a tarefa do historiador, para Walter Benjamin, é “escovar a história a contrapelo”; quer dizer, é fazer a história das lutas contra a história, para acabar com a história (na produção messiânica da volta ao futuro, da volta ao mítico sem coerção – e o Messias pode entrar pela nossa porta inesperadamente a qualquer momento).

Morreu um tirano (Diário de Moscou XIII)

A morte de um tirano de ferro não nos consola. Trata-se apenas de um prazer correlato à satisfação de um desejo vão.

Pois não é o ferro que se acopla ao tirano, mas o tirano à ferradura.

Só haverá consolo na nossa humana redenção. Só haverá redenção humana, quando não houver ferradura, da qual um tirano é apenas como um atributo.

Hoje morreu um tirano, não a tirania.


Mito e história XI

A história, tal como ela conhece, é a narrativa das vitórias do efetivo. O efetivo é o que vence e derrota o que deve ser esquecido nos tempos.

A história é a narrativa das técnicas vencedoras na dominação da natureza. Mas a dominação da natureza, para ser efetiva, requer o esforço humano excessivo. Esse excesso só se alcança pela dominação dos humanos por outros humanos. A história, além de história das técnicas, é, portanto, a narrativa dessa dominação.

Assim, sob o efeito simples de um princípio do terceiro excluído, quando não há dominação, pode-se concluir que não há história?

“A propriedade essencial [...] da sociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social, nos limites e na direção desejados pela sociedade. A tribo manifesta, entre outras (e pela violência se for necessário), sua vontade de preservar essa ordem social primitiva, interditando a emergência de um poder político individual, central e separado. Sociedade à qual nada escapa, que nada deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão fechadas. Sociedade que por conseguinte, deveria eternamente se reproduzir sem que nada de substancial a afete através do tempo.”*




(*) CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2003 [1974]. Cap. 11. P. 228.

Diário XII


Em Moscou, eu realizo que a minha pele são camadas “exteriores” superpostas que meu ser incorpora, dinamicamente e prazerosamente, até a última extremidade (a que está mais para fora) do meu casaco.

Ao passo que, em Berlim, naquele minúsculo apartamento superaquecido, eu pensava a minha pele negativamente, quer dizer, como aquela última camada do mundo que eu não podia extrair de mim sem dor.


99

Professor não é missionário.
(Quer dizer, a sua referência aos alunos não é a da salvação.)

Diário XI - Felicidade em Moscou II


A estadia de Asja em Moscou, apesar de curta, transformou a cidade aos meus olhos.

Poderia imaginar que a primavera havia chegado (quando, na verdade, aproximamo-nos do inverno mais rigoroso).

O afeto monstruoso voltou à sua caverna para pintar, resmungando raivosamente contra o mundo primaveril, aquilo que um dia se tornará, com a fermentação da história, arte.






Diário X

Isso que mais temo, neste momento, em relação à minha estadia em Moscou, é que ela, prolongando-se, faça de mim mais um moscovita (quero dizer, em respeito aos hábitos, eu temo tornar-me, por exemplo, mais um usuário de vodka barata, comedor de frituras e de outros gêneros gordurosos, assíduo frequentador de algum bar de periferia). Eu tornar-me moscovita é o momentaneamente impensável.

Diário IX – Felicidade em Moscou


Depois de reler Epicuro, neste momento de minha vida, chamou-me à atenção a sua regra de autossuficiência.

Asja, por razão da minha dependência em relação a ela, talvez, como ele o diz, me perturbe a alma mais do que ela seja, como eu a sinto, um elemento incontornável da minha felicidade.

Quer dizer, o remédio para a minha falta de Asja não é a Asja mesma, mas eu perceber que minha dependência, a minha necessidade de Asja, é um engano do meu desejo de felicidade. Eu não preciso da presença de Asja para ser feliz, pelo contrário, eu tenho que ser independente de Asja, se quero ser feliz.

Asja está em Moscou há alguns dias. Passamos alguns momentos juntos excelentes (eu disse “excelentes” para não dizer “muito felizes”) e outros não tão excelentes. Ela me serviu de intérprete em várias ocasiões, o que me fez conhecer um pouco mais o tão estranho, do meu ponto de vista, espírito dos moscovitas.

Em uma dessas noites, uma nevasca inadvertida nos deixou aprisionados, durante uma hora quase insuportável para mim, em um pequeno bar de um bairro periférico, cheio de moscovitas animados de vodka que cantavam, a plenos pulmões, canções populares conhecidas de todos. Perguntava-me se eles eram realmente felizes assim como estavam, ou se tratava-se de um engano seu.

Todos enganam-se com o tipo de felicidade que desejam?