O voto: um comportamento, duas atitudes (V)

O paradoxo da democracia liberal reside na forma da participação de cada um (não falo de participação popular, pois ela não se exerce por um povo, na sua unidade, mas por indivíduos particulares) ou, mais apropriadamente, na coexistência de duas destas formas.

O conteúdo da participação é principalmente o voto – mas deixo isso de lado.

Quanto à forma, já vimos, existe a contradição relativamente a dois tipos de participação (ou voto).

Na primeira, o indivíduo vota segundo sua consideração a respeito do que seja o interesse geral; vota pensando em todos, orientado para o todo; segundo aquilo que considera ser universalmente válido. Votar, então, segundo esse que seria o voto em si.

Na segunda, o indivíduo vota segundo sua consideração do seu interesse particular; vota pensando na parte; vota com fidelidade à parcela, à fração da sociedade à qual julga pertencer, ao partido.

Se as duas formas persistem, mantêm-se simultaneamente, há contradição.

De modo absoluto, a primeira forma é incompatível com a disposição política interna promovida pela democracia liberal, que ensina a cada um a pensar para si.

Se apenas a segunda forma persistisse, uma tendência seria a dominação da parte maior ou da parte mais influente, ou seja, daquela parcela que pode se mostrar como sendo a universal.

Entretanto, segundo a configuração das coisas e a disposição dos sujeitos correlativa, essa dominação da parte maior não se estabiliza, justamente porque a parte maior não é sempre a mesma, mas está continuamente variando.

No seu voto, feito para si, o indivíduo, em sua multiplicidade subjetiva, ora pertence à minoria ora à maioria. A parte maior é sempre constituída por indivíduos e disposições diferentes. A parte maior não é nunca a mesma, mas se orienta e se configura segundo fórmulas sempre díspares.

Isso resulta do pluralismo não só de indivíduos, mas no pluralismo interno à subjetividade. Um mesmo e único indivíduo é, ao mesmo tempo, por exemplo, homem, fumante, esportista, empresário, católico, homossexual, pró-aborto, etc. Sendo que estas variáveis são independentes entre si, ou seja, a presença de uma não exige a de uma outra. Ele não apenas vota para si, mas vota segundo alguma de suas determinações, aquela que numa situação específica se faz valer. O si não é uma unidade homogênea e coerente.

Se o indivíduo contém em si mesmo uma pluralidade, que eventualmente se põe em conflito consigo mesmo, então o que não será da coletividade feita de tais indivíduos?

Disso (dessa inconstância e variação da parte maior) segue-se que o sistema objetivo dessa totalidade não pode ser homogêneo nem coerente.

Citações

Vou publicar um livro. Hesitei muito antes de me decidir a publicá-lo. Pois, como diz X:
"Um livro é um objeto misterioso, e uma vez que levanta voo, qualquer coisa pode acontecer. Toda espécie de injúrias podem ser cometidas, e nada que possa ser feito a respeito disso. Para o melhor e para o pior, ele escapa completamente ao seu controle".
Texto retirado de: AUSTER, Paul. Léviathan. Trad. Christine Le Boeuf. Actes Sud: Paris, 1993. P. 15.

Mas quem será X, o verdadeiro autor do enunciado?

Algumas possibilidades: Paul Auster, seu personagem Peter Aaron, a tradutora Christine, o impressor que o "recopia"sobre o papel, eu mesmo? Se o livro escapa ao autor, que já não tem controle sobre nada? Se o que se escreve é um lugar comum? Uma cópia de outra cópia (como indicava Platão acerca da arte)?

Vibrações III

Sobre a fraqueza e a potência:

(1) "[...] sob quais dores tinha ele haurido esta força de deus, esta potência ilimitada de criar?”*.

(2) “As naturezas degenerativas [desviantes] são sempre de elevada importância, quando deve ocorrer um progresso. Em geral, todo progresso tem que ser precedido de um debilitamento parcial. As naturezas mais fortes conservam o tipo, as mais fracas ajudam a desenvolvê-lo”**.


(*) PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu: Du côté de chez Swann. Paris: Booking International, 1993 [1912]. P. 361.

(**) NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878]. Aforisma 224.