Pós-modernidade ou mais-modernidade?

Depois de arcaicos e modernos, estamos sendo pós-modernos ou nem tanto? Ou apenas mais-modernos?

Podemos responder a questão se soubermos o que dizer a respeito dos institutos modernos. Caracteríscos da modernidade quase incontornável, esses institutos são: nas formas de vida – a urbanidade das populações, o ateísmo, o capitalismo e o socialismo, o arranha-céu e a aeronáutica; na política – a cidadania, a nacionalidade, o estadismo, a civil sociedade, o estado de direito, o cosmopolitismo; na produção – a velocidade, a cientificidade, o maquinismo, a industrialidade, a tecnologicismo o automatismo, o sindicalismo; na arte: o abstracionismo, o serialismo, a fotografia e o cinema, o design, o modismo, as superações da metafísica, da métrica e da rima, e o formalismo da crítica literária e da lingüística.

O momento que vivemos – a globalização, as migracões, as religiões da nova era e o fundamentalismo das velhas, a lucratividade e a fluidez do capitalismo financeiro, a fluidificação dos laços, dos afetos, dos valores, a informatização e a internet, a racionalidade irracional de nossas formas de viver, a era da comunicabilidade, a crise ecológica, a totalidade do espetáculo e da mercadoria, a inclusão excludente, a instabilidade, a diluição do senso comum e da experiência, a transsexualidade, o isolamento, a fragmentação das famílias e das comunidades, enfim, o que está acontecendo – é um momento de desagregação, de esgotamento dos institutos modernos e de assunção de novos paradigmas, ou, pelo contrário, estamos exatamente a experimentar a consumação da modernidade, no sentido da plena realização do ideal da modernidade mais moderna?

Já somos pós-modernos ou ainda não somos completamente modernos?

8

No Brasil, não há crise da democracia,
somente crise da não-democracia.

Linguarudos

© ENORME CORTESIA DE PATI ROSS

Obviamente, há todos aqueles desconhecidos sem nome, que deixaram o planeta ao mesmo tempo que Benazir Bhutto. Benazir, os
desconhecidos ou o homem-bomba, quem será como os Linguarudos de Veneza?
Quem dá a língua para o mundo?
Quem anuncia o novo que chega? (Os Linguarudos são campainh
as de interfone) São plurais. Tocam em vários lugares. Anunciam muitas coisas. São uma legião de demônios., como diriam Negri e Hardt*.

Q
uem será como os Linguarudos? Nem Benazir, nem os mortos desconhecidos, nem o terrorista suicida, nem o presidente, Pervez Musharraf, mas todos os outros, nós.






O que nos permite falar em nome de um nós? Não dizer eu, mas nós? Afirmar alguma coisa como plural, como coletiva, como se fôssemos não individuais? _ O saber de que nossa perspectiva não é a visão de um olho interno, mas uma ferramenta que está à disposição. Nós somos os linguarudos. Eu não somos um. Eu somos muitos. Eu igual a um nós – quando a própria pluralidade propicia identidades.

Vamos pôr a língua de fora, malcriados.

(*) HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: War and Democracy in the Age of Empire. Nova Iorque: Penguin, 2004. Pp. 138-140.

Ligações misteriosas

O que será que a depressão do meu gato, Thor, tem a ver com o assassinato de Benazir Buttho(r)?

Depressão felina

Thor, meu gato, está depressivo. Há alguns dias, dorme o tempo todo, indiferente aos ruídos, às pessoas. Não sei se por saudades da sua antiga vida, envolta em verde, ou se pelos pensamentos que lhe advêm por estarmos nos aproximando do fim de ano. Procurei em Bernardo Soares* um textozinho que descrevesse seu estado: “Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso poder estar”.


(*) PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. §182, p. 192.

A versão de Blair da conversão de Blair

Ex-anglicano, Tony Blair se converte ao catolicismo.

Blair: exemplo de um biopolítico por excelência que sucumbe à superstição teológica.

Embora Blair afirme tratar-se de uma questão privada, talvez possamos tratar a questão conforme sugere o filósofo A. Negri*:

"O choque de civilizações" (The clash of civilizations de Samuel Huntington) não seria uma descrição do mundo, mas uma prescrição do modo pelo qual devem ser estruturadas as forças em jogo no mundo de hoje. Não haveria, segundo Negri, um autêntico choque de civilizações, mas sim a necessidade de enfeixamento das forças em jogo no mundo. A noção de "civilizações em choque" seria uma maneira de agrupar, ordenar e controlar essas forças.

Nessa perspectiva, o posicionamento de Blair serve para engessar a idéia de uma civilização de caráter religioso. E o catolicismo mais do que qualquer outra forma de cristianismo representa essa unidade histórica religiosa da civilização ocidental.

O novo catolicismo de Blair não seria uma questão privada, mas um posicionamento geopolítico, dirigido pela estratégia de criar e de aprofundar a idéia de um choque da civilização ocidental cristã com a oriental islâmica.

Duas hipóteses explicativas da conversão de Blair:

(1) A idéia de uma unidade da civilização ocidental serviria para mascarar as rupturas internas do Ocidente, entre as quais a luta de classes, o colonialismo, a urbanização.

(2) Por outro lado, a idéia de uma civilização ocidental fundada na religiosidade serviria para mascarar o verdadeiro princípio da organização política no Ocidente, que é a biopolítica, o governo da população a partir da posição e do agenciamento de sua naturalidade – seu corpo vivo – e do controle dos homens a partir da produção da consciência de sua finitude absoluta. A conversão ao catolicismo serviria apenas para enfatizar publicamente um fator de religiosidade.

A produção da máscara católica de autoridade política de Blair indica teatralmente (e não privadamente) que a civilização ocidental é una e que sua política não é o agenciamento do corpo e da vida – a civilização ocidental seria essencialmente a civilização do espírito cristão.

Porém, segundo Negri, a idéia do "choque de civilizações" foi rejeitada, porque não convém à criação de um mundo globalizado e sem barreiras. A globalização, para globalizar-se, deve passar por cima das fronteiras entre civilizações, não demarcá-las.

Entre as duas hipóteses explicativas devemos nos inclinar, então, pela segunda.

(*) HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: War and Democracy in the Age of Empire. 2004. Pp. 33-35.

Festa popular

Toda festa, diz-se, manifesta um elemento de transgressão da ordem estabelecida. Mas as festas populares, penso, aparecem como uma mistura de forças transgressoras e reacionárias.

Por um lado, aparecem como transgressoras – como um momento de ruptura com a ordem e como irrupção de uma força popular espontânea, irredutível e incontrolável.

Por outro, estas festas tomam o formato reacionário proposto, não para que estas forças simplesmente se expressem, mas para que elas reafirmem o sistema que as forças sociais já têm assumido.

A própria idéia de transgressão, de possibilidade da transgressão, pressupõe a possibilidade de transcender o plano da forma das forças sociais, o plano do regime das relações de poder. Em que sentido? Tudo se figura como se houvesse uma força popular espontânea isolada do sistema de repressão dessa força natural. Como se a natureza humana estivesse em relação de exterioridade com o regime político.

Assim, acaba de passar, como um exemplo, sob a minha janela, uma “carreata” do Papai Noel.

Os elementos supostamente transgressores: buzinasso, superlotação dos veículos, portas traseiras abertas expondo as crianças à insegurança, motociclistas sem capacete, uso da caçamba do caminhão para transporte de pessoas... Manifestação de uma força popular transgressora impossível de ser punida.

Os elementos reacionários: usurpação da expressão popular por uma parcela motorizada da população (supostamente a transgressão se legitima por sua popularidade), expressão da alegria na forma condicionada e impotente da carreata, festejo de um símbolo esvaziado, que mobiliza a alegria e os afetos inter-humanos em um regime de exploração comercial extremamente poluente.

A festa popular promove o símbolo vazio do Natal e tudo de comercial e de opressor que o nosso Natal representa, mas é também a ocasião para que várias transgressões à lei ocorram impunes.

Ali está então a força natural do povo aparentemente transgressora, mas de fato fortemente reacionária. O que é extremamente reacionário, de fato, é a aparência de que há uma possibilidade real de transgressão, cuja função é atribuir um valor ordenador ao regime político vigente.

O papel reacionário da festa popular não é seu funcionamento como uma válvula de escape, que descarrega a pressão natural da força popular, canalizando-a para o reforço do regime de opressão, e afastando-a da revolução. Esta seria uma interpretação coerente com a figuração de uma exterioridade entre natureza e lei política, entre physis e nomos.

O papel reacionário da festa popular está, pelo contrário, em produzir a falsa impressão dessa exterioridade. A festa popular procura mostrar que, sob o nosso regime de controle, há uma natureza indômita. Esse caos é o que se tornaria manifesto na festa popular. E a lição que deve ser extraída é a de que, removido o regime de controle político, uma natureza anárquica destruirá a civilização.

A festa popular não é uma válvula de escape, mas um mecanismo de produção da idéia de uma força popular anômala.

O que quero dizer é que a própria força popular, não apenas é um produto do regime de relações de poder, mas é em si mesma política. A força da multidão não é uma força natural anômala, e portanto apolítica, mas ela encerra em si mesma os princípios e as leis de sua organização.

A força da lei se quer mostrar transcendente a uma natureza humana indômita. E encontrar nisso a legitimidade do seu poder soberano.

De fato, a força da lei é apenas a situação atual da força da multidão.

O voto: um comportamento, duas atitudes (III)

Gostaria de retomar aquele paradoxo da democracia plebiscitária, dessa vez, em termos do que Horkheimer* chamou de razão subjetiva e de razão objetiva, duas facetas da razão.

A razão subjetiva é instrumental, é a razão calculadora, que serve para adaptar os meios (os procedimentos) a fins (propósitos) auto-explicativos, em si mesmos não racionais. Esses fins são a auto-preservação do sujeito isoladamente ou a auto-preservação da comunidade em que vive o sujeito. Dessa forma, votar segundo a razão subjetiva é votar pelo interesse da parcela (individual ou comunitária), é calcular o que é lhe mais útil, é o voto útil.

A razão objetiva é a razão absoluta, ordenadora do cosmos. Pressupõe a idéia de uma ordem própria à natureza, uma ordem natural. Essa ordem natural racional é o próprio objeto da razão – a verdade em sentido forte. Votar segundo a razão objetiva é o voto segundo a verdade, é o voto sem compromisso.

Obviamente, podemos nos perguntar se a razão objetiva, cujo conteúdo é a verdade absoluta, ainda é uma razão democrática? Se a verdade é absoluta, em princípio, ela tem que ser totalitária. Totalitarismo e democracia porém não se excluem. Mesmo o princípio da maioria, que está na base de legitimação da nossa forma de democracia, pode ser totalitário. E o que pode se colocar como obstáculo a esse princípio da maioria são os princípios universais, por exemplo, os direitos humanos. E justamente esses direitos humanos são baseados em uma forma universal da razão, diante da qual a razão da maioria é ainda uma razão subjetiva.

Para evitar o totalitarismo e manter a política, no sentido do pluralismo, no sentido da liberdade de expressão do dissonante, é preciso reconhecer que o conteúdo da razão objetiva não pode ser considerado absolutamente verdadeiro.

Historicamente, a razão objetiva tornou-se criticável justamente porque, de forma disfarçada, na sua busca pelo absoluto, ela encerrou em si, de fato, o elemento de dominação da natureza pelo homem e, conseqüentemente, da dominação do homem pelo homem.

Mas assumir o pleno caráter subjetivo da razão, reduz o valor intrínseco do mundo a nada, e esse niilismo é capaz também das maiores violências – já que nenhuma ação, do ponto de vista da razão subjetiva, é má em si mesma.

O que propõe Horkheimer é o balanço crítico entre razão objetiva e razão subjetiva. Quando impera o objetivo, criticá-lo pela razão subjetiva; e, inversamente, criticar objetivamente o subjetivo.

Outro posicionamento possível é assumir a razão objetiva como uma doxa – não como uma verdade absoluta, mas como uma opinião coerente e desinteressada. Mas em que medida esse desinteresse é possível?

E, assim, as questões e a crítica servem constantemente para desestabilizar a harmonia, mas devem renovar o desejo de alcançá-lá.

Se a solução é o balanço crítico entre uma idéia do objetivo e uma idéia do subjetivo, então parece que o paradoxo da democracia deixa de ser um paradoxo para tornar-se o seu motor.

Faz parte do jogo democrático passar do voto útil ao voto absoluto, e vice-versa, conforme a situação.

(*) HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976 [1944].

Formalização do Natal

Um bom exemplo – um típico – do que Horkheimer chamou de formalização de um conceito encontra-se na formalização do conceito de Natal*. Plenamente funcional e integrado em nossa lógica social, o Natal não possui mais referência externa à essa lógica. Embora não acreditemos mais no nascimento de Deus, o culto permanece – vazio, como um significante puro, sem referência, sem remissão do termo ao ser.

Talvez só possamos alcançar o significado atual do Natal, pragmaticamente: pelo efeito que o conceito desencadeia, em nossas atividades – compras, aumento da afetuosidade, abraços, peru assado, certa melancolia, cores vermelhas, luzes que piscam.

Na sociedade formalizada, nada remete para além do efeito; o sentido das práticas sociais só se revela no efeito que têm sobre as próprias práticas sociais.

O Natal formalizado deve o sentido de sua existência ao movimento comercial, ao recolhimento familiar, etc., e não à fé no eterno retorno do nascimento de Deus.


(*) HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976 [1944].

7

O diálogo não só serve ao consenso, como também ajuda a demarcar o dissenso.

Hobbes (6) – governo de si

Segundo Hobbes, cada ser humano tem o direito natural (Lev, I, xiv, §1) de governar a si mesmo, isto é, o direito de pensar, expressar-se e agir segundo sua própria razão e vontade, segundo o que for mais apropriado, a fim de preservar sua própria natureza.

O direito natural é um direito próprio à própria natureza humana. Temos esse direito em nós mesmos. É um direito existencial, intrínseco à existência. A partir do momento em que existimos, temos, associada a essa existência, a liberdade de usar nosso poder (Lev, I, x, §1), entendido como os meios efetivos de que dispomos para obter algo que desejamos. Esse poder pode ser imediato: as capacidades intrínsecas de nosso corpo e de nossa alma, nossa força e nossa inteligência. Ou mediato: os poderes que adquirimos no desdobramento de nossas capacidades, ou do desdobramento do poder próprio a outros homens, os quais, de alguma forma, submetemos ao nosso desejo.

Hobbes assinala que é da natureza do poder um impulso a ir adiante. Quanto mais poder um homem dispõe, tanto mais facilmente, em princípio, esse poder se expande.

Então, o poder é aquilo que nos permite obter algo que desejamos, algum bem, isto é, alguma coisa que desperta nosso apetite. Esse bem externo exerce sobre nós uma atração, que em nós é um apetite, uma inclinação, uma paixão. Esse bem externo é a causa de nosso conatus (Lev, I, vi, §1) – nosso esforço para obtê-lo. Dessa forma, para Hobbes, o governo de si não é uma perfeita autonomia, entendida como autonomia racional, ou autonomia da vontade. Nossa vontade não é livre, não dá a si mesma a lei de sua ação, não é um princípio separado da ação do agente (separado do bem), mas nossa vontade é determinada por nossas paixões.

Vontade é apetite, é ligada ao bem, não é uma faculdade separada no sujeito desejante. A vontade não se contrapõe ao apetite, ao desejo.

Mas a vontade tampouco é o primeiro apetite, aquele que um bem desperta em nós imediatamente. A vontade é o último apetite na deliberação (Lev, I, vi, §53), na seqüência de apetites que se alternam em uma ponderação a respeito do bem, e que antecedem nossa ação em vista desse bem.

O governo de si, para Hobbes, não é simplesmente manter-se senhor de suas paixões, seguindo princípios racionais. O governo de si é fazer tudo o que está em seu poder para satisfazer seu desejo e sua vontade de preservar sua existência. Preservar-se na existência é o bem em si, o fim-fundamento da vontade e do governo de si.

O governo de si articula-se com o governo dos outros de duas maneiras. Vamos ver como.

(1) Primeira articulação do governo de si com o governo dos outros: a vontade de poder, a soberania por aquisição.

O poder é como a ponte que nos leva de uma margem à outra, de nosso apetite a nosso bem, objeto do desejo. Uma margem não existe sem a outra, não existe apetite sem bem, nem bem sem apetite.

Porém, esse mecanismo desejo-poder-bem que, em princípio, mobiliza três entidades distintas, entra naturalmente em curto-circuito. O poder torna-se naturalmente um bem desejado em si mesmo. Temos naturalmente o desejo de poder e mais poder (Lev, I, xi, §2), pois só o mais poder pode nos garantir os bens que já possuímos ou os que ainda desejamos. Nossos bens adquiridos ou desejados são também desejados por outros homens. Esse desejo dos outros pelos mesmos bens que nós desejamos só é refreado por nosso próprio poder (imediato ou mediato, original ou instrumental).

Nosso poder original (força e inteligência) é limitado, e semelhante ao de outros homens. A única forma efetiva de alcançarmos mais poder é pela submissão do poder original de outros homens à nossa vontade. Essa submissão do poder de outros é o governo dos outros.

Assim, o governo de si, exercido plenamente, conduz ao governo dos outros, a tornar-se a vontade soberana que governa, em vista de seu próprio poder, a vontade dos outros.

(2) Segunda articulação do governo de si com o governo dos outros: o pacto de poder, a soberania por instituição.

No pacto de soberania, os que se submetem concordam em transferir a maior parte de seus poderes (originais e instrumentais) ao soberano. Os que pactuam assim abrem mão do seu direito a governar a si mesmos (isto é, agir e expressar-se conforme sua vontade), e se sujeitam à vontade do soberano (Lev, II, xvii, §13).

(3) Conclusão disso tudo

Na política, na forma da soberania, é o governo de si que está em jogo. Encontrar uma forma política alternativa ao poder soberano é o mesmo que encontrar uma forma política em que todos os sujeitos, e não apenas o soberano, mantenham a plenitude de suas vontades.
Para Hobbes, isso é impossível. A condição do governo de si pleno e plural é apenas a condição de guerra de todos contra todos.

Hobbes concebe a política como negação da possibilidade da guerra e a soberania é único poder que garante a paz e a defesa dos sujeitos em um território.

Hobbes (5)

Hobbes (7)

Infinitude e finitude (2) – Hobbes (5)

Já em Hobbes, temos exatamente o oposto. Se em Descartes, só podemos conceber a finitude a partir da idéia da infinitude, em Hobbes, só podemos inteligir o infinito a partir do finito:

“Tudo o que imaginamos é finito. Portanto não há idéia ou concepção de nada do que chamamos de infinito. [...] Quando dizemos que alguma coisa é infinita, significamos apenas que não somos capazes de conceber os fins e os limites da coisa nomeada, não tendo nenhuma concepção da coisa, mas apenas de nossa própria inabilidade”. (Leviatã, I, iii, §12)

Infinitude e finitude (1)
Hobbes (4)
Hobbes (6)

Hobbes (4) - natureza humana e artificialidade

Talvez o que melhor esclareça a distinção entre soberania e biopolítica seja o princípio que dá origem à comunidade. A comunidade política na soberania toma sua forma a partir de um princípio artificial de reunião. Esse princípio é a unidade da pessoa do soberano.
Hobbes mesmo diz: os humanos não são como as abelhas (Leviatã, II, i, §12). O acordo entre elas é natural; entre os humanos, artificial. Na soberania, o princípio de reunião dos governados em uma comunidade política é artificial; na biopolítica, é natural.

As abelhas formam grupo naturalmente, obedecem naturalmente.
Os seres humanos naturalmente se desagrupam, porque naturalmente desobedecem.

Hobbes (3)

Percepção de mundo

Precisamos modificar a nossa percepção da situação mundial atual.

Imprevisíveis, até a semana passada, dois acontecimentos exigem nova perspectiva: (i) a recusa popular às reformas constitucionais de Chávez e (ii) o reconhecimento pela inteligência americana de que o Irã não desenvolve, no momento, a tecnologia nuclear com intenções belicosas.

Se a Venezuela não é um totalitarismo, e se uma guerra ao Irã não se justifica pela ameaça nuclear, então, estamos em um outro mundo.

O processo democrático está em vigor na Venezuela. Chávez encontra um contra-poder no povo (além do contra-poder da palavra real: "por que no te callas", niño?). A América Latina não se incendiará, nem se transformará necessariamente num continente bolivariano, neo-socialista. Além dessa, vinda do outro lado do mundo, temos a maravilhosa notícia de um Irã pacificado. O evento iminente de uma nova grande guerra recua, e deixa dourar-nos ao novo sol, retirando sua enorme sombra de sobre a Terra.

Podemos novamente respirar e nos distender tranqüilamente. Há paz no mundo. Podemos ir às compras de Natal.

Mas, preferencialmente, não nos shoppings. Alguns franco-atiradores, estilhaços da grande bomba desmontada, podem surgir. Há de fato essa tendência – ou não? – de a agressividade voltar-se para dentro, quando não pode mais externalizar-se.

O maior estrago possível do fim da guerra, ou do estado de guerra, é que a bomba, que até então apontávamos para nossos inimigos, expluda em nossas mãos.

Infinitude e finitude (1)

E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira idéia, mas somente pela negação do que é finito, [...]; já que, ao contrário, vejo manifestamente que se encontra mais realidade na substância infinita do que na substância finita, e, portanto, que tenho de alguma forma em mim primeiro a noção do infinito do que do finito, ou seja, de Deus, do que de mim mesmo.

(Descartes, Meditações metafísicas, III, §23)

Descartes nos diz que a noção de si como ser finito não pode ser anterior à noção de infinito, que ele tem, e que ele encontra em si primeiro, em seu espírito. Para Descartes, o cogito, o eu pensante, só se reconhece como coisa que duvida e deseja conhecer, a partir da idéia de um ser mais perfeito do que ele.

Não apreendemos a finitude em si mesma, mas apenas em sua oposição a uma noção mais clara e distinta que é a noção de uma infinitude mais perfeita.

Para Descartes, sou o que sou enquanto penso, mas a atividade do pensamento mais radicalmente humana, é o desejo de conhecer.

O modo de ser humano não se resolve no gozo do pensamento. A essência do ser humano é de tal forma que duvida. E duvida porque encontra em si a idéia de algo que é infinitamente onisciente.

O primeiro aspecto que eu gostaria de ressaltar em Descartes, nesse ícone do classicismo, nesse exponente de uma configuração do pensamento diferente da nossa, com a qual talvez já não possamos mais inteiramente nos sintonizar, é essa remissão da essência humana a algo que está primeiro do que ela, primeiro na ordem do ser, na ordem ontológica, primeiro também na ordem do conhecer, na ordem epistemológica.

O segundo aspecto é que, para Descartes, a essência humana de ser que duvida não é uma situação encerrada em si. Quer dizer, a finitude do homem não lhe é imposta como uma negação. Descartes frisa que o erro humano advém da privação de seu conhecimento, de sua ignorância. Privação que ele contrapõe à negação.

Ao ser humano, em sua finitude, não é negada a onisciência. Sua ignorância não é como uma imposição, como uma muralha que o cerca, delimita, e o define essencialmente.

A finitude, para Descartes, não é um atributo essencial do ser humano, não é uma fronteira intransponível, um marco fixado por Deus, que o homem não pode ultrapassar.

Como sabemos, o erro trágico, capaz de amaldiçoar por múltiplas gerações a descendência de um homem, é a hybris, a desmedida, o ato de um insensato que ousa comparar-se aos deuses.

O erro em Descartes é de outra sorte. O erro não é desmedida, não é ir além da medida humana, ultrapassar o marco, enfrentar a nêmesis divina. O erro em Descartes não é negação, mas mera privação de conhecimento. Erramos porque ignoramos, porque nos apressamos em julgar, em afirmar, ou negar, algo sobre aquilo que ainda não apreendemos intelectualmente.

O ser humano é essencialmente um ser pensante, uma alma que durante a vida está ligada a um corpo, ou melhor, a uma pequena parte do corpo, cuja natureza porém é completamente distinta daquela da alma. Essa certeza, como qualquer certeza, é alcançada intelectualmente por Descartes.

Como para a apreensão da natureza da cera toda nua (e a expressão “cera toda nua” é literalmente de Descartes), como coisa extensa, a apreensão da natureza do corpo nu, todo nu, é uma apreensão intelectual.

O corpo humano todo nu, quer dizer, sem as vestes da alma, é uma coisa extensa composta e infinitamente divisível. Enquanto a alma é simples e indivisível, e assim incorruptível. Pois a corrupção é a redução de algo composto em seus elementos constituintes. A alma é imortal. E sendo imortal sua expansão, em termos de sua essência pensante, é sem limites. Finita, mas sem limites fixos.

Eu sou alma, espírito, pensamento, mente, sou a substância consciente de seus modos, de seus acidentes, que são o fluxo de pensamentos. Sei que sou, que existo, enquanto consciente desse fluxo de pensamentos. Eu não sou corpo.

E Deus infinitamente garante o restante. Ele me conserva, me recria, em minha unidade conservada e imortal. Ele assegura, em vida, o vínculo unívoco de minha alma com o corpo.

Assim, resumindo o que foi dito até agora, para Descartes, a finitude humana só se reconhece como tal diante de algo que lhe é primeiro e mais essencial, a infinitude. E, ainda, a finitude do ser humano não se determina como uma fronteira fixa e intransponível, mas como um limite que recua indefinidamente.