Toda festa, diz-se, manifesta um elemento de transgressão da ordem estabelecida. Mas as festas populares, penso, aparecem como uma mistura de forças transgressoras e reacionárias.
Por um lado, aparecem como transgressoras – como um momento de ruptura com a ordem e como irrupção de uma força popular espontânea, irredutível e incontrolável.
Por outro, estas festas tomam o formato reacionário proposto, não para que estas forças simplesmente se expressem, mas para que elas reafirmem o sistema que as forças sociais já têm assumido.
A própria idéia de transgressão, de possibilidade da transgressão, pressupõe a possibilidade de transcender o plano da forma das forças sociais, o plano do regime das relações de poder. Em que sentido? Tudo se figura como se houvesse uma força popular espontânea isolada do sistema de repressão dessa força natural. Como se a natureza humana estivesse em relação de exterioridade com o regime político.
Assim, acaba de passar, como um exemplo, sob a minha janela, uma “carreata” do Papai Noel.
Os elementos supostamente transgressores: buzinasso, superlotação dos veículos, portas traseiras abertas expondo as crianças à insegurança, motociclistas sem capacete, uso da caçamba do caminhão para transporte de pessoas... Manifestação de uma força popular transgressora impossível de ser punida.
Os elementos reacionários: usurpação da expressão popular por uma parcela motorizada da população (supostamente a transgressão se legitima por sua popularidade), expressão da alegria na forma condicionada e impotente da carreata, festejo de um símbolo esvaziado, que mobiliza a alegria e os afetos inter-humanos em um regime de exploração comercial extremamente poluente.
A festa popular promove o símbolo vazio do Natal e tudo de comercial e de opressor que o nosso Natal representa, mas é também a ocasião para que várias transgressões à lei ocorram impunes.
Ali está então a força natural do povo aparentemente transgressora, mas de fato fortemente reacionária. O que é extremamente reacionário, de fato, é a aparência de que há uma possibilidade real de transgressão, cuja função é atribuir um valor ordenador ao regime político vigente.
O papel reacionário da festa popular não é seu funcionamento como uma válvula de escape, que descarrega a pressão natural da força popular, canalizando-a para o reforço do regime de opressão, e afastando-a da revolução. Esta seria uma interpretação coerente com a figuração de uma exterioridade entre natureza e lei política, entre physis e nomos.
O papel reacionário da festa popular está, pelo contrário, em produzir a falsa impressão dessa exterioridade. A festa popular procura mostrar que, sob o nosso regime de controle, há uma natureza indômita. Esse caos é o que se tornaria manifesto na festa popular. E a lição que deve ser extraída é a de que, removido o regime de controle político, uma natureza anárquica destruirá a civilização.
A festa popular não é uma válvula de escape, mas um mecanismo de produção da idéia de uma força popular anômala.
O que quero dizer é que a própria força popular, não apenas é um produto do regime de relações de poder, mas é em si mesma política. A força da multidão não é uma força natural anômala, e portanto apolítica, mas ela encerra em si mesma os princípios e as leis de sua organização.
A força da lei se quer mostrar transcendente a uma natureza humana indômita. E encontrar nisso a legitimidade do seu poder soberano.
De fato, a força da lei é apenas a situação atual da força da multidão.
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