E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira idéia, mas somente pela negação do que é finito, [...]; já que, ao contrário, vejo manifestamente que se encontra mais realidade na substância infinita do que na substância finita, e, portanto, que tenho de alguma forma em mim primeiro a noção do infinito do que do finito, ou seja, de Deus, do que de mim mesmo.
(Descartes, Meditações metafísicas, III, §23)
Descartes nos diz que a noção de si como ser finito não pode ser anterior à noção de infinito, que ele tem, e que ele encontra em si primeiro, em seu espírito. Para Descartes, o cogito, o eu pensante, só se reconhece como coisa que duvida e deseja conhecer, a partir da idéia de um ser mais perfeito do que ele.
Não apreendemos a finitude em si mesma, mas apenas em sua oposição a uma noção mais clara e distinta que é a noção de uma infinitude mais perfeita.
Para Descartes, sou o que sou enquanto penso, mas a atividade do pensamento mais radicalmente humana, é o desejo de conhecer.
O modo de ser humano não se resolve no gozo do pensamento. A essência do ser humano é de tal forma que duvida. E duvida porque encontra em si a idéia de algo que é infinitamente onisciente.
O primeiro aspecto que eu gostaria de ressaltar em Descartes, nesse ícone do classicismo, nesse exponente de uma configuração do pensamento diferente da nossa, com a qual talvez já não possamos mais inteiramente nos sintonizar, é essa remissão da essência humana a algo que está primeiro do que ela, primeiro na ordem do ser, na ordem ontológica, primeiro também na ordem do conhecer, na ordem epistemológica.
O segundo aspecto é que, para Descartes, a essência humana de ser que duvida não é uma situação encerrada em si. Quer dizer, a finitude do homem não lhe é imposta como uma negação. Descartes frisa que o erro humano advém da privação de seu conhecimento, de sua ignorância. Privação que ele contrapõe à negação.
Ao ser humano, em sua finitude, não é negada a onisciência. Sua ignorância não é como uma imposição, como uma muralha que o cerca, delimita, e o define essencialmente.
A finitude, para Descartes, não é um atributo essencial do ser humano, não é uma fronteira intransponível, um marco fixado por Deus, que o homem não pode ultrapassar.
Como sabemos, o erro trágico, capaz de amaldiçoar por múltiplas gerações a descendência de um homem, é a hybris, a desmedida, o ato de um insensato que ousa comparar-se aos deuses.
O erro em Descartes é de outra sorte. O erro não é desmedida, não é ir além da medida humana, ultrapassar o marco, enfrentar a nêmesis divina. O erro em Descartes não é negação, mas mera privação de conhecimento. Erramos porque ignoramos, porque nos apressamos em julgar, em afirmar, ou negar, algo sobre aquilo que ainda não apreendemos intelectualmente.
O ser humano é essencialmente um ser pensante, uma alma que durante a vida está ligada a um corpo, ou melhor, a uma pequena parte do corpo, cuja natureza porém é completamente distinta daquela da alma. Essa certeza, como qualquer certeza, é alcançada intelectualmente por Descartes.
Como para a apreensão da natureza da cera toda nua (e a expressão “cera toda nua” é literalmente de Descartes), como coisa extensa, a apreensão da natureza do corpo nu, todo nu, é uma apreensão intelectual.
O corpo humano todo nu, quer dizer, sem as vestes da alma, é uma coisa extensa composta e infinitamente divisível. Enquanto a alma é simples e indivisível, e assim incorruptível. Pois a corrupção é a redução de algo composto em seus elementos constituintes. A alma é imortal. E sendo imortal sua expansão, em termos de sua essência pensante, é sem limites. Finita, mas sem limites fixos.
Eu sou alma, espírito, pensamento, mente, sou a substância consciente de seus modos, de seus acidentes, que são o fluxo de pensamentos. Sei que sou, que existo, enquanto consciente desse fluxo de pensamentos. Eu não sou corpo.
E Deus infinitamente garante o restante. Ele me conserva, me recria, em minha unidade conservada e imortal. Ele assegura, em vida, o vínculo unívoco de minha alma com o corpo.
Assim, resumindo o que foi dito até agora, para Descartes, a finitude humana só se reconhece como tal diante de algo que lhe é primeiro e mais essencial, a infinitude. E, ainda, a finitude do ser humano não se determina como uma fronteira fixa e intransponível, mas como um limite que recua indefinidamente.
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