Servidão voluntária

A “servidão voluntária” é uma figura, aparentemente, paradoxal. 
 
Por um lado, afinal, como pode alguém, livremente, querer obedecer e, com isso, negar a liberdade da sua vontade, do seu livre-querer?

Por outro, parece que é assim que gira o mundo. Não escolhemos, a cada instante, fazer isso que fazemos? Não somos todos responsáveis? Não somos, em nossa grande maioria, servos?

O paradoxal da “servidão voluntária” desaparece, porém, quando deixamos de nos considerar como sujeitos de livre-arbítrio, e passamos a nos pensar como sujeitos de desejo.

Corrida de forças

Eu repeti: “Eu disse que tu te procuravas o conforto”, e não pude, ao pronunciar estas palavras, reprimir um sorriso.*

Como numa disputada corrida de cavalos; a cabeça de um deles momentaneamente vai à frente, para logo ser ultrapassada pela cabeça de um outro, que estava mais atrás.


(*) KAFKA, Franz. Oeuvres complètes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980.  P. 75.

Apocalipse (um dos livros)

Depois, quando eu já não estiver mais aqui, e, supostamente, outros tiverem ocupado o meu lugar, a limpeza continuará a ser feita, sem falhar, a cada semana. Mas, por quantas vezes ainda?

Números (um dos livros)

Vou ficar aqui durante um ano. A limpeza se faz, infalivelmente, uma vez por semana. Ao final da minha estadia, meu quarto terá sido limpo 52 vezes.

Perder a cabeça

Perder a cabeça? Como? Se a cabeça não me deixa me perder. Ela está sempre entre meus ombros.
Eu vacilava e tive que olhar fixamente a estátua de Charles IV, para garantir meu equilíbrio. Mas o luar estava deslocado, e Charles IV, ele mesmo, se pôs em movimento.*


Este é Louis XIII, seu cavalo, e os pombos! Place de Vosges.



(*) KAFKA, Franz. Oeuvres completes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980.  P. 13.

Serviço público

Kafka:

A janela para a rua

Alguém que viva abandonado e gostaria, entretanto, aqui ou ali, de estabelecer alguma relação, alguém que, face às mudanças que lhe impõem as horas, as estações, o trabalho ou todas as outras circunstâncias, quer encontrar um braço, um braço qualquer em qual se apoiar – este alguém não poderá se passar por muito tempo de uma janela para a rua. E mesmo se ele está a ponto de não buscar mais nada, mesmo se ele nada mais é do que um velho homem rendido de fatiga, que se apóia à sua janela e passeia seus olhos entre o público e o céu, a cabeça um pouco jogada para trás, sem querer mais nada, os cavalos o puxarão, entretanto, em seu cortejo de carros e barulho, para mergulhá-lo enfim no concerto dos homens.

KAFKA, Franz. La fenêtre sur rue. Trad. Claude David. In: Oeuvres completes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980. P. 3.

Na pensão

– O senhor prefere o quarto com janela para o pátio interior ou o quarto com janela para a rua?
 
– Com janela para a rua.

– Saiba que é mais barulhento.

– Mesmo assim.

– É o senhor quem escolhe. Mas não diga depois que eu não lhe avisei.

– Não se trata de escolha; eu acabei de ler Kafka*.




(*) KAFKA, Franz. La fenêtre sur rue. Trad. Claude David. In: Oeuvres completes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980. P. 3.

Criatividade e ideologia

De onde vem o produto “refrigerante”? Da ideia (talvez falsa) de que a água não tem cor, não tem cheiro e não tem gosto.

Por que ele não pode morrer

Quando a política se torna questão de vida e morte, ele precisa se retirar. Ele diz para si que não pode morrer, porque ainda tem tanto para pensar.

Via, via

Contemplar com sofrimento o desejo na sua insatisfação. Perceber que naquele sofrimento havia também o prazer do desejo. Desejar simplesmente.