Pós-modernidade ou mais-modernidade?

Depois de arcaicos e modernos, estamos sendo pós-modernos ou nem tanto? Ou apenas mais-modernos?

Podemos responder a questão se soubermos o que dizer a respeito dos institutos modernos. Caracteríscos da modernidade quase incontornável, esses institutos são: nas formas de vida – a urbanidade das populações, o ateísmo, o capitalismo e o socialismo, o arranha-céu e a aeronáutica; na política – a cidadania, a nacionalidade, o estadismo, a civil sociedade, o estado de direito, o cosmopolitismo; na produção – a velocidade, a cientificidade, o maquinismo, a industrialidade, a tecnologicismo o automatismo, o sindicalismo; na arte: o abstracionismo, o serialismo, a fotografia e o cinema, o design, o modismo, as superações da metafísica, da métrica e da rima, e o formalismo da crítica literária e da lingüística.

O momento que vivemos – a globalização, as migracões, as religiões da nova era e o fundamentalismo das velhas, a lucratividade e a fluidez do capitalismo financeiro, a fluidificação dos laços, dos afetos, dos valores, a informatização e a internet, a racionalidade irracional de nossas formas de viver, a era da comunicabilidade, a crise ecológica, a totalidade do espetáculo e da mercadoria, a inclusão excludente, a instabilidade, a diluição do senso comum e da experiência, a transsexualidade, o isolamento, a fragmentação das famílias e das comunidades, enfim, o que está acontecendo – é um momento de desagregação, de esgotamento dos institutos modernos e de assunção de novos paradigmas, ou, pelo contrário, estamos exatamente a experimentar a consumação da modernidade, no sentido da plena realização do ideal da modernidade mais moderna?

Já somos pós-modernos ou ainda não somos completamente modernos?

8

No Brasil, não há crise da democracia,
somente crise da não-democracia.

Linguarudos

© ENORME CORTESIA DE PATI ROSS

Obviamente, há todos aqueles desconhecidos sem nome, que deixaram o planeta ao mesmo tempo que Benazir Bhutto. Benazir, os
desconhecidos ou o homem-bomba, quem será como os Linguarudos de Veneza?
Quem dá a língua para o mundo?
Quem anuncia o novo que chega? (Os Linguarudos são campainh
as de interfone) São plurais. Tocam em vários lugares. Anunciam muitas coisas. São uma legião de demônios., como diriam Negri e Hardt*.

Q
uem será como os Linguarudos? Nem Benazir, nem os mortos desconhecidos, nem o terrorista suicida, nem o presidente, Pervez Musharraf, mas todos os outros, nós.






O que nos permite falar em nome de um nós? Não dizer eu, mas nós? Afirmar alguma coisa como plural, como coletiva, como se fôssemos não individuais? _ O saber de que nossa perspectiva não é a visão de um olho interno, mas uma ferramenta que está à disposição. Nós somos os linguarudos. Eu não somos um. Eu somos muitos. Eu igual a um nós – quando a própria pluralidade propicia identidades.

Vamos pôr a língua de fora, malcriados.

(*) HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: War and Democracy in the Age of Empire. Nova Iorque: Penguin, 2004. Pp. 138-140.

Ligações misteriosas

O que será que a depressão do meu gato, Thor, tem a ver com o assassinato de Benazir Buttho(r)?

Depressão felina

Thor, meu gato, está depressivo. Há alguns dias, dorme o tempo todo, indiferente aos ruídos, às pessoas. Não sei se por saudades da sua antiga vida, envolta em verde, ou se pelos pensamentos que lhe advêm por estarmos nos aproximando do fim de ano. Procurei em Bernardo Soares* um textozinho que descrevesse seu estado: “Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso poder estar”.


(*) PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. §182, p. 192.

A versão de Blair da conversão de Blair

Ex-anglicano, Tony Blair se converte ao catolicismo.

Blair: exemplo de um biopolítico por excelência que sucumbe à superstição teológica.

Embora Blair afirme tratar-se de uma questão privada, talvez possamos tratar a questão conforme sugere o filósofo A. Negri*:

"O choque de civilizações" (The clash of civilizations de Samuel Huntington) não seria uma descrição do mundo, mas uma prescrição do modo pelo qual devem ser estruturadas as forças em jogo no mundo de hoje. Não haveria, segundo Negri, um autêntico choque de civilizações, mas sim a necessidade de enfeixamento das forças em jogo no mundo. A noção de "civilizações em choque" seria uma maneira de agrupar, ordenar e controlar essas forças.

Nessa perspectiva, o posicionamento de Blair serve para engessar a idéia de uma civilização de caráter religioso. E o catolicismo mais do que qualquer outra forma de cristianismo representa essa unidade histórica religiosa da civilização ocidental.

O novo catolicismo de Blair não seria uma questão privada, mas um posicionamento geopolítico, dirigido pela estratégia de criar e de aprofundar a idéia de um choque da civilização ocidental cristã com a oriental islâmica.

Duas hipóteses explicativas da conversão de Blair:

(1) A idéia de uma unidade da civilização ocidental serviria para mascarar as rupturas internas do Ocidente, entre as quais a luta de classes, o colonialismo, a urbanização.

(2) Por outro lado, a idéia de uma civilização ocidental fundada na religiosidade serviria para mascarar o verdadeiro princípio da organização política no Ocidente, que é a biopolítica, o governo da população a partir da posição e do agenciamento de sua naturalidade – seu corpo vivo – e do controle dos homens a partir da produção da consciência de sua finitude absoluta. A conversão ao catolicismo serviria apenas para enfatizar publicamente um fator de religiosidade.

A produção da máscara católica de autoridade política de Blair indica teatralmente (e não privadamente) que a civilização ocidental é una e que sua política não é o agenciamento do corpo e da vida – a civilização ocidental seria essencialmente a civilização do espírito cristão.

Porém, segundo Negri, a idéia do "choque de civilizações" foi rejeitada, porque não convém à criação de um mundo globalizado e sem barreiras. A globalização, para globalizar-se, deve passar por cima das fronteiras entre civilizações, não demarcá-las.

Entre as duas hipóteses explicativas devemos nos inclinar, então, pela segunda.

(*) HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multitude: War and Democracy in the Age of Empire. 2004. Pp. 33-35.

Festa popular

Toda festa, diz-se, manifesta um elemento de transgressão da ordem estabelecida. Mas as festas populares, penso, aparecem como uma mistura de forças transgressoras e reacionárias.

Por um lado, aparecem como transgressoras – como um momento de ruptura com a ordem e como irrupção de uma força popular espontânea, irredutível e incontrolável.

Por outro, estas festas tomam o formato reacionário proposto, não para que estas forças simplesmente se expressem, mas para que elas reafirmem o sistema que as forças sociais já têm assumido.

A própria idéia de transgressão, de possibilidade da transgressão, pressupõe a possibilidade de transcender o plano da forma das forças sociais, o plano do regime das relações de poder. Em que sentido? Tudo se figura como se houvesse uma força popular espontânea isolada do sistema de repressão dessa força natural. Como se a natureza humana estivesse em relação de exterioridade com o regime político.

Assim, acaba de passar, como um exemplo, sob a minha janela, uma “carreata” do Papai Noel.

Os elementos supostamente transgressores: buzinasso, superlotação dos veículos, portas traseiras abertas expondo as crianças à insegurança, motociclistas sem capacete, uso da caçamba do caminhão para transporte de pessoas... Manifestação de uma força popular transgressora impossível de ser punida.

Os elementos reacionários: usurpação da expressão popular por uma parcela motorizada da população (supostamente a transgressão se legitima por sua popularidade), expressão da alegria na forma condicionada e impotente da carreata, festejo de um símbolo esvaziado, que mobiliza a alegria e os afetos inter-humanos em um regime de exploração comercial extremamente poluente.

A festa popular promove o símbolo vazio do Natal e tudo de comercial e de opressor que o nosso Natal representa, mas é também a ocasião para que várias transgressões à lei ocorram impunes.

Ali está então a força natural do povo aparentemente transgressora, mas de fato fortemente reacionária. O que é extremamente reacionário, de fato, é a aparência de que há uma possibilidade real de transgressão, cuja função é atribuir um valor ordenador ao regime político vigente.

O papel reacionário da festa popular não é seu funcionamento como uma válvula de escape, que descarrega a pressão natural da força popular, canalizando-a para o reforço do regime de opressão, e afastando-a da revolução. Esta seria uma interpretação coerente com a figuração de uma exterioridade entre natureza e lei política, entre physis e nomos.

O papel reacionário da festa popular está, pelo contrário, em produzir a falsa impressão dessa exterioridade. A festa popular procura mostrar que, sob o nosso regime de controle, há uma natureza indômita. Esse caos é o que se tornaria manifesto na festa popular. E a lição que deve ser extraída é a de que, removido o regime de controle político, uma natureza anárquica destruirá a civilização.

A festa popular não é uma válvula de escape, mas um mecanismo de produção da idéia de uma força popular anômala.

O que quero dizer é que a própria força popular, não apenas é um produto do regime de relações de poder, mas é em si mesma política. A força da multidão não é uma força natural anômala, e portanto apolítica, mas ela encerra em si mesma os princípios e as leis de sua organização.

A força da lei se quer mostrar transcendente a uma natureza humana indômita. E encontrar nisso a legitimidade do seu poder soberano.

De fato, a força da lei é apenas a situação atual da força da multidão.

O voto: um comportamento, duas atitudes (III)

Gostaria de retomar aquele paradoxo da democracia plebiscitária, dessa vez, em termos do que Horkheimer* chamou de razão subjetiva e de razão objetiva, duas facetas da razão.

A razão subjetiva é instrumental, é a razão calculadora, que serve para adaptar os meios (os procedimentos) a fins (propósitos) auto-explicativos, em si mesmos não racionais. Esses fins são a auto-preservação do sujeito isoladamente ou a auto-preservação da comunidade em que vive o sujeito. Dessa forma, votar segundo a razão subjetiva é votar pelo interesse da parcela (individual ou comunitária), é calcular o que é lhe mais útil, é o voto útil.

A razão objetiva é a razão absoluta, ordenadora do cosmos. Pressupõe a idéia de uma ordem própria à natureza, uma ordem natural. Essa ordem natural racional é o próprio objeto da razão – a verdade em sentido forte. Votar segundo a razão objetiva é o voto segundo a verdade, é o voto sem compromisso.

Obviamente, podemos nos perguntar se a razão objetiva, cujo conteúdo é a verdade absoluta, ainda é uma razão democrática? Se a verdade é absoluta, em princípio, ela tem que ser totalitária. Totalitarismo e democracia porém não se excluem. Mesmo o princípio da maioria, que está na base de legitimação da nossa forma de democracia, pode ser totalitário. E o que pode se colocar como obstáculo a esse princípio da maioria são os princípios universais, por exemplo, os direitos humanos. E justamente esses direitos humanos são baseados em uma forma universal da razão, diante da qual a razão da maioria é ainda uma razão subjetiva.

Para evitar o totalitarismo e manter a política, no sentido do pluralismo, no sentido da liberdade de expressão do dissonante, é preciso reconhecer que o conteúdo da razão objetiva não pode ser considerado absolutamente verdadeiro.

Historicamente, a razão objetiva tornou-se criticável justamente porque, de forma disfarçada, na sua busca pelo absoluto, ela encerrou em si, de fato, o elemento de dominação da natureza pelo homem e, conseqüentemente, da dominação do homem pelo homem.

Mas assumir o pleno caráter subjetivo da razão, reduz o valor intrínseco do mundo a nada, e esse niilismo é capaz também das maiores violências – já que nenhuma ação, do ponto de vista da razão subjetiva, é má em si mesma.

O que propõe Horkheimer é o balanço crítico entre razão objetiva e razão subjetiva. Quando impera o objetivo, criticá-lo pela razão subjetiva; e, inversamente, criticar objetivamente o subjetivo.

Outro posicionamento possível é assumir a razão objetiva como uma doxa – não como uma verdade absoluta, mas como uma opinião coerente e desinteressada. Mas em que medida esse desinteresse é possível?

E, assim, as questões e a crítica servem constantemente para desestabilizar a harmonia, mas devem renovar o desejo de alcançá-lá.

Se a solução é o balanço crítico entre uma idéia do objetivo e uma idéia do subjetivo, então parece que o paradoxo da democracia deixa de ser um paradoxo para tornar-se o seu motor.

Faz parte do jogo democrático passar do voto útil ao voto absoluto, e vice-versa, conforme a situação.

(*) HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976 [1944].

Formalização do Natal

Um bom exemplo – um típico – do que Horkheimer chamou de formalização de um conceito encontra-se na formalização do conceito de Natal*. Plenamente funcional e integrado em nossa lógica social, o Natal não possui mais referência externa à essa lógica. Embora não acreditemos mais no nascimento de Deus, o culto permanece – vazio, como um significante puro, sem referência, sem remissão do termo ao ser.

Talvez só possamos alcançar o significado atual do Natal, pragmaticamente: pelo efeito que o conceito desencadeia, em nossas atividades – compras, aumento da afetuosidade, abraços, peru assado, certa melancolia, cores vermelhas, luzes que piscam.

Na sociedade formalizada, nada remete para além do efeito; o sentido das práticas sociais só se revela no efeito que têm sobre as próprias práticas sociais.

O Natal formalizado deve o sentido de sua existência ao movimento comercial, ao recolhimento familiar, etc., e não à fé no eterno retorno do nascimento de Deus.


(*) HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976 [1944].

7

O diálogo não só serve ao consenso, como também ajuda a demarcar o dissenso.

Hobbes (6) – governo de si

Segundo Hobbes, cada ser humano tem o direito natural (Lev, I, xiv, §1) de governar a si mesmo, isto é, o direito de pensar, expressar-se e agir segundo sua própria razão e vontade, segundo o que for mais apropriado, a fim de preservar sua própria natureza.

O direito natural é um direito próprio à própria natureza humana. Temos esse direito em nós mesmos. É um direito existencial, intrínseco à existência. A partir do momento em que existimos, temos, associada a essa existência, a liberdade de usar nosso poder (Lev, I, x, §1), entendido como os meios efetivos de que dispomos para obter algo que desejamos. Esse poder pode ser imediato: as capacidades intrínsecas de nosso corpo e de nossa alma, nossa força e nossa inteligência. Ou mediato: os poderes que adquirimos no desdobramento de nossas capacidades, ou do desdobramento do poder próprio a outros homens, os quais, de alguma forma, submetemos ao nosso desejo.

Hobbes assinala que é da natureza do poder um impulso a ir adiante. Quanto mais poder um homem dispõe, tanto mais facilmente, em princípio, esse poder se expande.

Então, o poder é aquilo que nos permite obter algo que desejamos, algum bem, isto é, alguma coisa que desperta nosso apetite. Esse bem externo exerce sobre nós uma atração, que em nós é um apetite, uma inclinação, uma paixão. Esse bem externo é a causa de nosso conatus (Lev, I, vi, §1) – nosso esforço para obtê-lo. Dessa forma, para Hobbes, o governo de si não é uma perfeita autonomia, entendida como autonomia racional, ou autonomia da vontade. Nossa vontade não é livre, não dá a si mesma a lei de sua ação, não é um princípio separado da ação do agente (separado do bem), mas nossa vontade é determinada por nossas paixões.

Vontade é apetite, é ligada ao bem, não é uma faculdade separada no sujeito desejante. A vontade não se contrapõe ao apetite, ao desejo.

Mas a vontade tampouco é o primeiro apetite, aquele que um bem desperta em nós imediatamente. A vontade é o último apetite na deliberação (Lev, I, vi, §53), na seqüência de apetites que se alternam em uma ponderação a respeito do bem, e que antecedem nossa ação em vista desse bem.

O governo de si, para Hobbes, não é simplesmente manter-se senhor de suas paixões, seguindo princípios racionais. O governo de si é fazer tudo o que está em seu poder para satisfazer seu desejo e sua vontade de preservar sua existência. Preservar-se na existência é o bem em si, o fim-fundamento da vontade e do governo de si.

O governo de si articula-se com o governo dos outros de duas maneiras. Vamos ver como.

(1) Primeira articulação do governo de si com o governo dos outros: a vontade de poder, a soberania por aquisição.

O poder é como a ponte que nos leva de uma margem à outra, de nosso apetite a nosso bem, objeto do desejo. Uma margem não existe sem a outra, não existe apetite sem bem, nem bem sem apetite.

Porém, esse mecanismo desejo-poder-bem que, em princípio, mobiliza três entidades distintas, entra naturalmente em curto-circuito. O poder torna-se naturalmente um bem desejado em si mesmo. Temos naturalmente o desejo de poder e mais poder (Lev, I, xi, §2), pois só o mais poder pode nos garantir os bens que já possuímos ou os que ainda desejamos. Nossos bens adquiridos ou desejados são também desejados por outros homens. Esse desejo dos outros pelos mesmos bens que nós desejamos só é refreado por nosso próprio poder (imediato ou mediato, original ou instrumental).

Nosso poder original (força e inteligência) é limitado, e semelhante ao de outros homens. A única forma efetiva de alcançarmos mais poder é pela submissão do poder original de outros homens à nossa vontade. Essa submissão do poder de outros é o governo dos outros.

Assim, o governo de si, exercido plenamente, conduz ao governo dos outros, a tornar-se a vontade soberana que governa, em vista de seu próprio poder, a vontade dos outros.

(2) Segunda articulação do governo de si com o governo dos outros: o pacto de poder, a soberania por instituição.

No pacto de soberania, os que se submetem concordam em transferir a maior parte de seus poderes (originais e instrumentais) ao soberano. Os que pactuam assim abrem mão do seu direito a governar a si mesmos (isto é, agir e expressar-se conforme sua vontade), e se sujeitam à vontade do soberano (Lev, II, xvii, §13).

(3) Conclusão disso tudo

Na política, na forma da soberania, é o governo de si que está em jogo. Encontrar uma forma política alternativa ao poder soberano é o mesmo que encontrar uma forma política em que todos os sujeitos, e não apenas o soberano, mantenham a plenitude de suas vontades.
Para Hobbes, isso é impossível. A condição do governo de si pleno e plural é apenas a condição de guerra de todos contra todos.

Hobbes concebe a política como negação da possibilidade da guerra e a soberania é único poder que garante a paz e a defesa dos sujeitos em um território.

Hobbes (5)

Hobbes (7)

Infinitude e finitude (2) – Hobbes (5)

Já em Hobbes, temos exatamente o oposto. Se em Descartes, só podemos conceber a finitude a partir da idéia da infinitude, em Hobbes, só podemos inteligir o infinito a partir do finito:

“Tudo o que imaginamos é finito. Portanto não há idéia ou concepção de nada do que chamamos de infinito. [...] Quando dizemos que alguma coisa é infinita, significamos apenas que não somos capazes de conceber os fins e os limites da coisa nomeada, não tendo nenhuma concepção da coisa, mas apenas de nossa própria inabilidade”. (Leviatã, I, iii, §12)

Infinitude e finitude (1)
Hobbes (4)
Hobbes (6)

Hobbes (4) - natureza humana e artificialidade

Talvez o que melhor esclareça a distinção entre soberania e biopolítica seja o princípio que dá origem à comunidade. A comunidade política na soberania toma sua forma a partir de um princípio artificial de reunião. Esse princípio é a unidade da pessoa do soberano.
Hobbes mesmo diz: os humanos não são como as abelhas (Leviatã, II, i, §12). O acordo entre elas é natural; entre os humanos, artificial. Na soberania, o princípio de reunião dos governados em uma comunidade política é artificial; na biopolítica, é natural.

As abelhas formam grupo naturalmente, obedecem naturalmente.
Os seres humanos naturalmente se desagrupam, porque naturalmente desobedecem.

Hobbes (3)

Percepção de mundo

Precisamos modificar a nossa percepção da situação mundial atual.

Imprevisíveis, até a semana passada, dois acontecimentos exigem nova perspectiva: (i) a recusa popular às reformas constitucionais de Chávez e (ii) o reconhecimento pela inteligência americana de que o Irã não desenvolve, no momento, a tecnologia nuclear com intenções belicosas.

Se a Venezuela não é um totalitarismo, e se uma guerra ao Irã não se justifica pela ameaça nuclear, então, estamos em um outro mundo.

O processo democrático está em vigor na Venezuela. Chávez encontra um contra-poder no povo (além do contra-poder da palavra real: "por que no te callas", niño?). A América Latina não se incendiará, nem se transformará necessariamente num continente bolivariano, neo-socialista. Além dessa, vinda do outro lado do mundo, temos a maravilhosa notícia de um Irã pacificado. O evento iminente de uma nova grande guerra recua, e deixa dourar-nos ao novo sol, retirando sua enorme sombra de sobre a Terra.

Podemos novamente respirar e nos distender tranqüilamente. Há paz no mundo. Podemos ir às compras de Natal.

Mas, preferencialmente, não nos shoppings. Alguns franco-atiradores, estilhaços da grande bomba desmontada, podem surgir. Há de fato essa tendência – ou não? – de a agressividade voltar-se para dentro, quando não pode mais externalizar-se.

O maior estrago possível do fim da guerra, ou do estado de guerra, é que a bomba, que até então apontávamos para nossos inimigos, expluda em nossas mãos.

Infinitude e finitude (1)

E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira idéia, mas somente pela negação do que é finito, [...]; já que, ao contrário, vejo manifestamente que se encontra mais realidade na substância infinita do que na substância finita, e, portanto, que tenho de alguma forma em mim primeiro a noção do infinito do que do finito, ou seja, de Deus, do que de mim mesmo.

(Descartes, Meditações metafísicas, III, §23)

Descartes nos diz que a noção de si como ser finito não pode ser anterior à noção de infinito, que ele tem, e que ele encontra em si primeiro, em seu espírito. Para Descartes, o cogito, o eu pensante, só se reconhece como coisa que duvida e deseja conhecer, a partir da idéia de um ser mais perfeito do que ele.

Não apreendemos a finitude em si mesma, mas apenas em sua oposição a uma noção mais clara e distinta que é a noção de uma infinitude mais perfeita.

Para Descartes, sou o que sou enquanto penso, mas a atividade do pensamento mais radicalmente humana, é o desejo de conhecer.

O modo de ser humano não se resolve no gozo do pensamento. A essência do ser humano é de tal forma que duvida. E duvida porque encontra em si a idéia de algo que é infinitamente onisciente.

O primeiro aspecto que eu gostaria de ressaltar em Descartes, nesse ícone do classicismo, nesse exponente de uma configuração do pensamento diferente da nossa, com a qual talvez já não possamos mais inteiramente nos sintonizar, é essa remissão da essência humana a algo que está primeiro do que ela, primeiro na ordem do ser, na ordem ontológica, primeiro também na ordem do conhecer, na ordem epistemológica.

O segundo aspecto é que, para Descartes, a essência humana de ser que duvida não é uma situação encerrada em si. Quer dizer, a finitude do homem não lhe é imposta como uma negação. Descartes frisa que o erro humano advém da privação de seu conhecimento, de sua ignorância. Privação que ele contrapõe à negação.

Ao ser humano, em sua finitude, não é negada a onisciência. Sua ignorância não é como uma imposição, como uma muralha que o cerca, delimita, e o define essencialmente.

A finitude, para Descartes, não é um atributo essencial do ser humano, não é uma fronteira intransponível, um marco fixado por Deus, que o homem não pode ultrapassar.

Como sabemos, o erro trágico, capaz de amaldiçoar por múltiplas gerações a descendência de um homem, é a hybris, a desmedida, o ato de um insensato que ousa comparar-se aos deuses.

O erro em Descartes é de outra sorte. O erro não é desmedida, não é ir além da medida humana, ultrapassar o marco, enfrentar a nêmesis divina. O erro em Descartes não é negação, mas mera privação de conhecimento. Erramos porque ignoramos, porque nos apressamos em julgar, em afirmar, ou negar, algo sobre aquilo que ainda não apreendemos intelectualmente.

O ser humano é essencialmente um ser pensante, uma alma que durante a vida está ligada a um corpo, ou melhor, a uma pequena parte do corpo, cuja natureza porém é completamente distinta daquela da alma. Essa certeza, como qualquer certeza, é alcançada intelectualmente por Descartes.

Como para a apreensão da natureza da cera toda nua (e a expressão “cera toda nua” é literalmente de Descartes), como coisa extensa, a apreensão da natureza do corpo nu, todo nu, é uma apreensão intelectual.

O corpo humano todo nu, quer dizer, sem as vestes da alma, é uma coisa extensa composta e infinitamente divisível. Enquanto a alma é simples e indivisível, e assim incorruptível. Pois a corrupção é a redução de algo composto em seus elementos constituintes. A alma é imortal. E sendo imortal sua expansão, em termos de sua essência pensante, é sem limites. Finita, mas sem limites fixos.

Eu sou alma, espírito, pensamento, mente, sou a substância consciente de seus modos, de seus acidentes, que são o fluxo de pensamentos. Sei que sou, que existo, enquanto consciente desse fluxo de pensamentos. Eu não sou corpo.

E Deus infinitamente garante o restante. Ele me conserva, me recria, em minha unidade conservada e imortal. Ele assegura, em vida, o vínculo unívoco de minha alma com o corpo.

Assim, resumindo o que foi dito até agora, para Descartes, a finitude humana só se reconhece como tal diante de algo que lhe é primeiro e mais essencial, a infinitude. E, ainda, a finitude do ser humano não se determina como uma fronteira fixa e intransponível, mas como um limite que recua indefinidamente.

Anjos ou demônios (3) – Hobbes (3) - reino natural

Os anjos e demônios dialogam nas deliberações de nossa consciência.

Segundo Hobbes (Leviatã, II, xxxi, 3-4), Deus nos declara suas leis e, através delas, os princípios de nossa consciência, por três vias, duas diretas e uma indireta. Indiretamente, nossa consciência se estrutura ao ouvir a voz de alguém, em que cremos e que fala em nome de Deus. Diretamente, pela revelação e pela razão.

Assim, no primeiro caso, a palavra de Deus é profética, e a acessamos se temos fé nos profetas e em seus milagres. Ou é sensível, e a intuímos, se dispomos de um sentido para o sobrenatural. Ou, no terceiro caso, é racional, e a desvelamos, se nos exercitamos e nos esforçamos para entendê-la.

As leis que Deus nos declara, quando somos diretamente sensíveis à sua voz, são leis que nos concernem apenas a nós. Não são leis universais. Deus declara a homens distintos leis particulares.

As leis declaradas pelos profetas também não são para todos. Mas apenas para aqueles que constituem o povo (os judeus; os cristãos também?*) a quem Deus escolheu falar. O reino profético não admite qualquer um como súdito.

Sem fé nos profetas sagrados e sem o ouvido sobrenatural, nos resta acesso apenas à palavra racional de Deus. A essa palavra pode ter acesso todo aquele que reconhece nos ditames da razão a lei de Deus, como sua providência. Deus governa universalmente os humanos segundo as leis de natureza, às quais podemos aceder pelo raciocínio e pela conhecimento de si.

Não depende de nós pertencer ao reino dos revelados. Não depende de nós pertencer ao reino profético. Nesses dois casos, cabe a Deus escolher seus súditos.

Mas, no terceiro caso, essa escolha nos cabe. Para nos assujeitarmos ao reino natural de Deus, basta-nos reconhecer o aspecto vinculante das leis universais de natureza, que são as virtudes morais. Estas são leis para todos os seres humanos, para todos aqueles que por sua vontade se dispõem ao exercicío, à ascese racional.

Essas leis universais de natureza, mesmo sendo divinas, não obrigam a alguma forma de culto a Deus, nem são leis de delimitação do sagrado. Não são leis que regulam a relação dos seres humanos a Deus, mas a relação dos seres humanos entre si.

Mas a vontade, em Hobbes, não é o livre-arbítrio, que permite ao ser humano racional aderir, ou não aderir, a um imperativo da razão. A vontade não é livre. A vontade é apetite, inclinação, e como tal ela é causada por uma paixão.

(*) Na versão em latim (talvez a primeira a ser redigida, embora publicada depois da versão em inglês), Hobbes diz que o povo escolhido é primeiro os israelitas, depois os cristãos). Na versão em inglês, Hobbes é mais restritivo: (Lev, II, xxxi, §4) ali somente os judeus são nomeados.

Anjos ou demônios (2)
Anjos ou demônios (1)
Hobbes (1)

Hobbes (2) – fetiche do poder e fetiche da moeda

O poder do soberano depende da soma de poderes dos sujeitos. É efetivamente a congruência dos poderes dos sujeitos (sua força física e o engenho de sua inteligência) que constitui o poder do soberano. Enquanto pessoa natural, o soberano não tem mais poder do que qualquer dos seus sujeitos. O poder soberano não possui um fundamento em si mesmo, mas nos poderes dos sujeitos.

O poder do soberano, portanto, depende do sentido do real, que é a crença no poder de punir do soberano, que por sua vez depende do poder efetivo, mas pulverizado, dos sujeitos. O único ser do poder soberano é o poder reunido do ser dos sujeitos.

O poder do soberano se assenta sobre o campo de virtualidades que ele mesmo estrutura. Quando se esfacela o real, isto é, a solidez da crença das subjetividades nesse campo de virtualidades, esfacela-se também o poder do soberano. O soberano não pode tão eficazmente realizar o campo de virtualidades. O que induz um círculo vicioso contrário ao círculo virtuoso de formação e de estabilidade do poder soberano e da comunidade política.

No ideal de funcionamento da política hobbesiana, o poder soberano sequer se manifesta, isto é, não precisa realizar o campo de virtualidades, não precisa mais punir. No seu desfuncionamento, no processo de sua dissolução, pelo contrário, o poder soberano é levado a constantes esforços de realização de suas promessas e ameaças. Quando essa capacidade de realização é tensionada, o poder soberano começa a falhar.

Esse processo de constituição e dissolução do poder soberano é muito semelhante ao mecanismo da moeda.

A moeda tem sua origem na letra promissória: na promessa de futura retribuição, em medida equivalente, feita por um particular a outro particular, no mecanismo de transferência da propriedade de uma mercadoria.

A moeda como tal surge quando essa promessa de retribuição não está mais ordenada a uma pessoa particular, quando não cabe mais a nenhuma pessoa determinada a obrigatoriedade de cumprir a promessa de retribuição, e quando qualquer um pode se assim desejar realizar essa promessa. A indeterminação do pagador da promessa (que é a indeterminação da mercadoria que se troca pela moeda) é o que constitui a liquidez da moeda. Mas a moeda só adquire seu pleno caráter social, quando a comunidade organizada passa a arrogar-se o monopólio da emissão da moeda. E o valor da moeda só se sustenta, quando a comunidade organizada, em última instância, pode cumprir a promessa de pagamento inscrita na moeda.

Essa semelhança entre o mecanismo de poder e o mecanismo da moeda, fundados na crença, talvez explique por que Hobbes usa, no inglês, commonwealth (riqueza comum), para o latim civitas (cidade, Estado).

Hobbes (1)
Hobbes (3)

Hobbes (1) – governar os outros

Governar para Hobbes (Leviatã_1651: II, XXXI, 2) é dirigir os sujeitos, estabelecendo o campo de virtualidades e realidades de suas ações.

O campo de virtualidades são as promessas e as ameaças do soberano. As virtualidades são constituídas pelos imperativos hipotéticos que ameaçam punir os injustos e prometem vingar os injustiçados.

As realidades são o sentido firme que os sujeitos encontram como efeito de suas ações, sentido que é adquirido pela efetividade das recompensas e das punições do soberano.

A realidade, portanto, é um efeito, que depende da certeza ou da crença na concretização da reação do soberano.

O sentido do real, no governo hobbesiano, está vinculado a essa crença dos sujeitos no poder do soberano para realizar o campo de virtualidades.

O sentido do real, em Hobbes, é o que assegura o sentimento de paz e concórdia entre os homens, articulado com o medo das punições e a esperança das recompensas. A paz e a crença de paz no futuro estão na base do processo civilizatório. Não há civilização sem garantia da paz.

Quando o soberano falha e não cumpre promessas e ameaças, quando o campo de virtualidades não se realiza, o sentido do real fraqueja. O real se esfacela. A civilização perde seu ponto de apoio. A barbárie emerge.

Hobbes (2)

Por mais segurança... (2)


O mesmo cartaz, mais definido.

A imagem foi extraída do site do partido SVP (Schweizerische Volkspartei) – Partido do Povo Suíço, com 29% dos votos, na última eleição para o legislativo. O slogan do cartaz em francês é "Por mais segurança". Em alemão, faz-se o witz com o verbo schaffen, criar, produzir; escolha muito "inteligente" da palavra, pois Schaf é a ovelha. Esse jogo de palavras "inteligente" torna o cartaz ainda mais absurdo. Literalmente, "Sicherheit schaffen" traduz-se por: "Criar segurança". Uma tradução mais próxima ao significado múltiplo das palavras seria: "Arrebanhar segurança". Arrebanhar segurança, expulsando do rebanho branco a ovelha negra criminosa.

Aliás, é curioso o fato de que os principais lemas e títulos do partido, em francês, seguem uma tradução não literal, optando por uma espécie de eufemismo em relação à expressão em alemão, muito mais direta.

O nome do partido em francês é União Democrática de Centro; em alemão: Partido do Povo Suíço. O slogan do partido em francês: "Por uma Suíça forte"; em alemão: "O partido da classe média". E por aí, vai.

Como interpretar essas diferenças? Trata-se de uma hipocrisia da Suíça francesa? Ou seria a Suíça francesa menos penetrável ao discurso nacionalista e racista?

Por mais segurança... (1)


Novamente, na BBC.

O design gráfico suíço é conhecido por seus traços simples, mínimos, claros. Infelizmente, porém, às vezes é necessário alguma criptologia. Nesse atualíssimo e lamentável cartaz de um partido político suíço, eu gostaria de destacar alguns elementos biopolíticos.

1) a convocação de um pacto de segurança (legitimado pelo referendum);
2) a identificação da população com um rebanho de ovelhas que requer o cuidado de um pastor;
3) o processo de limpeza racial mediante a exclusão para fora do rebanho do elemento degenerado;
4) a idéia de uma vinculação entre degeneração da raça, minoria degenerada e criminalidade.

6

– Tá nervoso, meu? Respira!

Artista implanta orelha em braço


Veja a reportagem no site da BBC.

Em linguagem biológica, a forma do corpo humano (natura naturata) deriva de uma genealogia, em que o acaso das mutações e a seleção natural são os agentes operantes (natura naturans); e não um princípio transcendente e uma finalidade divinos; e não um mecanismo imanente inscrito na essência genotípica humana, o DNA; e não, e muito menos, o próprio sujeito do corpo.

Em linguagem política, a forma do corpo humano não teria "nada" de natural, não obteria seu modelo, sua idéia, de sua própria essência, mas de um dispositivo de biopoder. No modelo político, como no modelo biológico, a idéia e a matéria do corpo são exteriores uma à outra. Mas no político, o aspecto do corpo humano não deriva de um processo seletivo-evolutivo, mas é modelado pelo dispositivo de poder (a natura naturans do logos político) em que está imerso. Em sua incontornável inserção no biopoder, o corpo aparece como sujeito de uma certa saúde, de uma certa sexualidade, de uma certa raça. Nesses biodispositivos, o discurso biológico não se separa do político.

Em estética, surge, enfim, a possibilidade da idéia (o aspecto visual) do corpo derivar do próprio sujeito do corpo. O sujeito do corpo faz do próprio corpo o medium de sua expressão. Isso é, ou pode ser – sob certas condições-limites, das quais não se falam aqui –, parte de uma técnica de si, de uma estética da existência. O sujeito biológico e político faz-se sujeito ético, captura-se a si mesmo como idéia e causa adequada do seu corpo próprio.

Por que não fazer o mal?

Afinal, por que devemos aderir à boa ação? – pergunta que deixa muita gente inquieta. Suponhamos que podemos conhecer o que é o bem e o correto. O que nos leva, afinal, fazer o bem e não o mal? Por que aderir ao valor do bem? Em outras palavars, qual o fundamento do valor da moral?

Acho que Hannah Arendt, envolta com Sócrates, nos dá uma boa resposta*. Por que não se tornar um assassino, quando já não há um Deus onisciente, mesmo quando temos a certeza de que nosso crime passará despercebido aos olhos de todos?

Ora, responde Arendt, quem gostaria de estar junto a um assassino, para sempre? Se nos tornarmos assassinos, estaremos na obrigação de estar junto a um. Pior, estando na companhia de um assassino, perceberemos o mundo, como que povoado de assassinos. Viveremos perseguidos pela ameaça do nosso próprio assassinato. Já não suportaremos estar junto a nós.

Isso, esse estar junto a si, porém, não é tão simples. Nem todo mundo está junto a si, entra em contato consigo mesmo. Nem todo mundo convive consigo mesmo. Só quem pensa. Quem está incapacitado para o pensamento, perde a capacidade de estar junto a si, perde a consciência de si e a consciência moral. Quem não pensa mais, quem está impedido de estar consigo, enfim, pode acabar matando...



(*) Cf. ARENDT, Hannah. Filosofia e política [1955]. Trad. Helena Martins. Ou ainda: Pensamento e considerações morais [1970]. In: A dignidade humana: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

Passar II

Como escapar da finitude, senão pela religião?

Não há, diante do paradigma político de um certo Ocidente (que obviamente não é o Ocidente geográfico), apenas o paradigma teológico-político de um certo Oriente?

Aliás, Platão inventa, no Político, o mito dos dois ciclos da Terra*. (1) Durante uma era, gira o astro numa direção. Nesse giro, todos os seres terrestres estão submetidos diretamente aos cuidados dos deuses e de seus emissários também divinos. Os seres humanos têm a Deus como pastor. (2) Mas esse girar se esgota por si, o astro pára e volta a girar, em direção contrária. Nesse ciclo, os deuses abandonam a Terra, e deixam os terrestres entregues à sua própria natureza.

Esses dois ciclos ilustram bem os dois paradigmas políticos contemporâneos: (2) o biopolítico (o governo das populações vivas pelo pastor humano) e o (1) teocrático (o governo dos fiéis diretamente por Deus).

Na saudade, no padecer, dos tempos passados [um tempo lógico: o (2) na imaginação do (1)], os humanos constituem, entre pares, uma organização pastoral. Como ovelhas, na carência do rebanho e do pastor, aceitam, ou escolhem, seus governantes, no desejo de ser governados.

Se prestarmos um pouco de atenção, encontramos logo a diferença fundamental entre a teocracia (como governo direto de Deus) e o regime teológico-político (como governo dos que representam a Deus na Terra). Apenas ressalto o óbvio: a religião e o clero são figuras do regime teológico-político e não da teocracia. Nos termos de Platão, portanto, o regime teológico-político faz parte do mesmo ciclo da Terra, em que a biopolítica, o regime político do Ocidente, se insere.

Não é por nada que a biopolítica pode ser interpretada, também, como a incorporação dos mecanismos de poder do pastorado cristão pelos Estados modernos. Com a crise do pastorado religioso, nos séculos XVI-XVIII, é o Estado soberano que paulatinamente absorve as funções do pastor, e passa a governar, a cuidar, da população como se fosse um rebanho. A passagem da compreensão da política como soberania para a política como governo equivale à governamentalização do Estado. O Estado soberano se torna governo, pastor laico de um rebanho laico.

(*) PLATÃO. Diálogos: Político. Col. “Os Pensadores”. Trad. diversos. São Paulo: Victor Civita, 1972. 272 p.

Passar I


Tenho pena até... nem sei...

Do próprio mal que passei
Pois passei quando passou.*


Enquanto passar for o critério da pena, penaremos sempre, pois passamos, independentemente da vida ser boa ou má, digna ou indigna de ser vivida. Sofremos simplesmente porque a vida passa e, nesse passar, se extingue. Sofremos enfim da finitude da vida, porque de todo modo passa a vida.

No passar do tempo, na duração, exaurem-se a saúde e o vigor de nosso corpo, escoam continuamente de nossas mãos os frutos de nosso trabalho, retomamos o eco inútil das palavras já ditas, somamos páginas redundantes à biblioteca infinita, em que tudo já foi escrito.

No viver a sofrer a vida, entristecemo-nos, continuamente. E nessa tristeza está a dimensão política de nosso padecer, pois a tristeza é sinal da redução de nossa potência. Pergunto-me se não é essa a condição política da modernidade ocidental, dos mecanismos de poder do Ocidente – ditos biopolíticos – que nos apreendem enquanto seres finitos. Pergunto-me se não nos enrolamos nas malhas do poder, enquanto concebemos nossa vida, como vida que passa e decai, como corpo que trabalha infrutiferamente, como falante da fala falada. A biopolítica é a política da vida, mas da vida enquanto finita, a biopolítica é a política da finitude. Nesse enrolarmo-nos nesse rolo, vai de nossa autonomia, é de nossa potência que se trata e de nossa alegria.


(*) PESSOA, Fernando. Poesias coligidas. Inéditas 1919-1935. Poema 630, p. 520 [1929]. In: Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.

O que é a anorexia na moda?


Para conhecer o pano de fundo dessa discussão, consulte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/09/070925_anorexia_ga_ac.shtml.

Foucault, em os Anormais (pp. 191 ss., na edição francesa), instala as freiras possuídas pelo demônio como instâncias de resistência ao incremento do poder pastoral, do poder eclesiástico, nos séculos XVI-XVIII. Diferentemente das bruxas, as possuídas pelo demônio são religiosas que pertencem à Igreja e conhecem o Cristo. No interior dos corpos fragmentados das possuídas, digladiam-se não só as forças maléficas do diabo e as benéficas dos exorcistas, mas também a própria vontade ambígua das possuídas, resistindo ora a um ora a outro dos poderes. A convulsão da possuída é a expressão desses confrontos. Na possessão, a carne cristã é agenciada pelo poder eclesiástico-pastoral até o limite, até o extremo, de sua conversão em carne convulsiva.

Gostaria de pensar a anorexia das modelos em analogia com o fenômeno da possessão. A anorexia da modelo é essa configuração paradoxal de um corpo submetido, até o seu próprio limite, a um poder que o modela. Mecânica de um corpo que, num determinado momento, se desgoverna. Mas a resistência desse corpo é tão inapreensível, que ela não se mostra como afronta direta; não é o corpo que engorda, que contraria simplesmente o padrão que lhe é imposto. Pelo contrário, o corpo anoréxico da modelo é um corpo em que a forma idealizada do corpo da moda se aprofunda, até o extremo, até a beira do nada. Corpo que segue, para além do razoável, as injunções do seu senhor, mas que, nessa submissão total, encontra a forma absurda de uma resistência. A modelo anoréxica é a religiosa possuída do dispositivo da moda. Seu corpo é agenciado por esse dispositivo, até o momento paradoxal, em que ele, desgovernado, passa a manifestar, da forma mais bruta, e em si mesmo, o absurdo desse dispositivo. Desgoverno que é resistência ao governo da moda.

FOUCAULT, Michel. Les anormaux: Cours au Collège de France, 1974-1975. Paris: Seuil/Gallimard, 1999 [1975]. 218 p.


Io

Io, a virgem desejada por Zeus. Io, a vítima do ciúmes divino de Hera, esposa de Zeus. Io, a mortal perseguida pelo moscardo. O moscardo que turva sua visão, que a faz perder a razão, de tal forma que ela chega a perder seu aspecto humano; crescem-lhe, na fronte, pequenos chifres. Io, por causa do moscardo, não pode deixar de ir adiante, nem ver clara e distintamente.

Na sua fuga sem fim, Io chega ao fim do mundo. Ali encontra Prometeu acorrentado, o deus que lhe revela a verdade de sua própria sina, misteriosamente articulada à sina do próprio sofrimento do deus.*

Para Sócrates, a função do filósofo é a do moscardo. Incomodar os mortais da pólis quando, em sua doxa (sua opinião ou a perspectiva pela qual o mortal interpreta o mundo), eles crêem tratar-se da verdade; quando em sua política, crêem tratar-se de filosofia. **

A verdade e a filosofia não são pertinentes ao mortal (aliás, segundo Simonides: "só Deus pode gozar desse privilégio").

O moscardo de Io, entretanto, afinal, a conduz à verdade na presença divina.


(*) ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. Trad. J. B. Mello e Souza. Ediouro.
(**) ARENDT, Hannah. Filosofia e política. In: A dignidade humana: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

Ética e política, alegrias articuladas

Gostaria de assinalar duas proposições da Ética de Espinosa, porque extremamente sintéticas, potentes e alegradoras:

O ódio nunca pode ser bom. (E4, P45)
Nada mais útil ao homem que o homem. (E4, P18S)*

A ética de Espinosa trata da busca do bom, em vista da mais potência. Espinosa exclui desse domínio o ódio e tudo o que nos deixa mais tristes. O bom é útil porque nos alegra, isto é, aumenta nossa perfeição, nossa força de existir ou nossa potência de agir e pensar.

O mais bom se alcança junto a outros homens. Por isso, a Ética das afecções de Espinosa é radicalmente criadora do vínculo político.

Para entender a ética de Espinosa, apenas, talvez, falte falar da liberdade.

(*) SPINOZA, Baruch. Ética. Trad. Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. In: Espinosa. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

Terra – Rudimentos da economia (VIII)

A terra é uma matéria-prima à disposição. Enquanto não é apropriada, não é uma propriedade.
A terra não é uma ferramenta. Além da energia corporal, a terra, ao produzir mercadorias, consome a energia material solar disponível. A terra é uma máquina.

Anjos ou demônios? (2)

O característico do anjo e do angelical é a potência ativa. Nesse sentido, a criança não é um anjo. O angelical da criança, com o qual nos admiramos, é sua potência passiva. A potência passiva da criança é a sua afetabilidade e formatabilidade máximas, em termos humanos.

Oximoro da escravidão


  1. Sepulto vive quem é a outro dado.
  2. E quem ao outro que há em si, sepulto
  3. Não poderei, Senhor, alguma vez
  4. Desalgemar de mim as minhas mãos?*


Gostaria de propor uma interpretação deste fragmento poético póstumo de Pessoa.

(1) Sepulto viver é viver encoberto. Sepulto viver é viver morto. Quem sepulto vive é o vivo morto, oximoro da escravidão. Está como morto quem é dado a outro, quem pertence a outro, e não a si – o escravo do outro.

(2) Mas também age como morto, não vive, não é livre, quem está sepulto sob o outro que há em si, quem se submete a esse sujeito em nós, que é outro e que nos submete – o escravo de si.

(4) Acontece que o escravo do outro é sempre o escravo de si e, o que dá no mesmo, o escravo de si é sempre o escravo do outro. O outro em si, o si que é outro, é o sujeito cuja forma da subjetividade, cujo modo de subjetivação, deriva do modo de assujeitamento próprio ao mecanismo de poder histórico em que está inserido. A servitude voluntária, a escravidão completa, é a coincidência plena do sujeito próprio ao modo de assujeitamento histórico-político com o sujeito próprio ao modo de subjetivação. Esse é o vivo morto, o que já não é humano.

No humano, no vivo vivo pleonástico, permanece a potência da diferença entre as duas configurações do sujeito. Não se trata de uma diferença plena, em que uma imagem é disposta ao lado de outra que lhe é diversa, mas de um diferencial, de um limite de diferença, de uma irredutibilidade, de um limite infinitesimal de incongruência entre as duas figuras do sujeito.

A essência do humano é essa diferença consigo mesmo, o sujeito infinitesimal.

(3) No poema de Pessoa, entretanto, o clamor de liberdade não se dirige a Si, mas ao Senhor. Mas isso é história para outra conversa.

(*) PESSOA, Fernando. Poesias coligidas. Inéditas 1919-1935. Poema 564, p. 499 [1921]. In: Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.

Religiosidade: superstição e espiritualidade

Um caminho que devemos investigar, na transcendência da finitude biopolítica – a religiosidade. Afinal, Deus é o pensado concreto da infinitude.

Na religiosidade, é preciso distinguir a parte de superstição. Enquanto superstição, a religiosidade é temível, embriagante, alienante. A superstição é a imaginação corrompida, que permanece a voltas com o medo. A piedade supersticiosa obedece porque tem medo. Nesse contexto, pode-se dizer, "a religião é o ópio do povo".

Agora, a religiosidade expurgada da superstição é espiritualidade. Porém, não é pela razão sozinha que se passa da superstição. Além da razão, há imaginação na espiritualidade. A espiritualidade não é o puro conteúdo racional da religião, a metafísica, a teologia purificada, a ontologia. O que vem a ser a espiritualidade se alcança melhor mediante seu conteúdo prático: uma confiança que se traduz como esperança, oposta ao medo da superstição, esperança produzida por uma imaginação constitutiva. A espiritualidade obedece quando quer.

2

A vida – disse Monique – é um perigo de morte.

1

Aquele que anseia por conhecer o que será feito de seu futuro, tem seu futuro feito de passado.

Em nome da dor humana

Conversávamos sobre psicanálise, sobre os estranhos pressupostos do método psicanalítico. Seu defensor, depois de reconhecer as dificuldades da psicanálise como conhecimento, saiu com esse argumento: – pelo menos, disse, com fundamentos sólidos ou sem, ciência ou não, a psicanálise muitas vezes funciona, mitiga o sofrimento de muitos humanos.

Obviamente, esse argumento é insustentável. Várias drogas aliviam a dor momentaneamente, enquanto aprofundam a doença. Não podemos agir cegamente, em nome da dor humana... se nosso problema é a verdade cristalina e última.

Mas o argumento é realmente insustentável? Sim, se nosso problema for, de fato, a verdade ou a cura última. Não, se nosso problema for, justamente, a dor humana. Enfim, se realmente a psicanálise alivia a dor humana, então, ora... o que podemos discutir?

Nosso mundo é um mundo de sofrimento. Não só – está certo –, mas há muita, muita gente, aqui, agora, que sofre. Um pouco menos de sofrimento já seria um bem enorme. Além disso, nesse mundo, a psicanálise é uma coisa de nada, serve ou não serve para muitos poucos, e... não polui. Podemos deixar a psicanálise para lá, em nossa margem de tolerância, se temos algo mais sério a fazer.

Mas... E se, em nossa seriedade, nos propuséssemos a isso – a só agir para diminuir a dor humana – como principal objetivo do que fazemos, afinal, continuaríamos pensando?

Anjos ou demônios (2)

Entretanto, pensar ou discorrer sobre nossa natureza angelical ou demoníaca não pertence, segundo Espinosa, à metafísica, mas à teologia. Para Espinosa, nas Cogitata*, anjos são assunto da teologia. À metafísica pertence somente o que pode ser conhecido naturalmente, isto é, mediante a luz natural. Se tomamos exclusivamente essa afirmação, existe todo um campo do conhecimento, o revelado, que extrapola o conhecimento natural, alcançável pelo homem, por si mesmo.

(*) SPINOZA, Baruch. Pensamentos metafísicos [1663]. Trad. Marilene de Souza Chauí. In: SPINOZA, Baruch. Espinosa. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Pp. 25-101.


Essa descontinuidade entre metafísica e teologia, talvez possa desaparecer diante de um segundo movimento da crítica do conhecimento humano, o perpetrado por Kant, que estabelece a distinção entre a metafísica e o conhecimento científico baseado na experiência do mundo.

Quando Kant afirma que não há intuição intelectual, afirma entre outras coisas que não podemos intuir (perceber para conhecer) intelectualmente a Deus. A revelação, portanto, ou passaria por uma experiência de mundo, e assim não seria mais totalmente revelada – pois toda experiência de mundo carrega consigo a forma das categorias a priori do nosso entendimento –, ou não possuiria propriamente um conteúdo de conhecimento, sendo simplesmente o dom da fé em uma idéia da razão.

Anjos ou demônios (1)

Anjos ou demônios? (1)

Se fosse fazer alguma metafísica, diria que nós, os humanos, somos feitos de anjos, espíritos sutis encarnados. As crianças seriam mais anjos do que os adultos. Ao longo de nossas vidas, no convívio com a carne, haveria uma corrupção de nosso elemento angelical, até a morte e a redenção final. Ou diria, talvez, exatamente o oposto. Somos feitos de demônios, espíritos pesados encarnados. Os adultos seriam mais demônios do que as crianças, porque mais possuidores de suas carnes. Ao longo de nossas vidas, a carne se corromperia cada vez mais, até a morte, quando se libertaria finalmente do demônio que a possuira.

Anjos ou demônios (2)

Máquina – Rudimentos da economia (VII)

A máquina não trabalha. Trabalham o corpo e a matéria que estão em relação com a máquina.

A máquina é uma mercadoria que produz mercadorias, mas não é uma ferramenta. A ferramenta, no seu uso, consome apenas o trabalho do corpo. A máquina, por sua vez, consome também o trabalho de uma matéria, como energia.

A ferramenta transforma a matéria com uso da energia de um corpo. A máquina transforma a matéria também com uso da energia material.

A máquina processa indistintamente a energia, seja material ou corporal. Diante da máquina, matéria e corpo possuem a mesma função.

Energia – Rudimentos da economia (VI)

Os corpos trabalham. Quando o corpo trabalha, usa a sua energia corporal.

Algumas matérias-primas e matérias trabalham.

O trabalho da matéria é a energia material. Quando trabalha, a matéria transforma-se em energia e em dejeto.

A energia material pode ser usada imediatamente ou acondicionada como mercadoria.

A energia é uma matéria e é uma mercadoria.

Entre a Utopia e o Lugar-comum

Quando se quer produzir um movimento, esboçar algo de novo, na vida ou na idéia da vida, é incrível a facilidade e a rapidez com que, ao invés de nos deslocarmos, nos desgarramos completamente. Quando se tenta dar nova faceta positiva ao real, tão fácil se chega à Utopia. Isso se deve a que, entre a Utopia e a plenitude opaca do real, entre o desvario visionário e a resignação cega, reside uma estreita e instável faixa de possibilidades. Tão fácil escorregar para um ou outro lado. Tão rapidamente deslizamos para a esterilidade do não-lugar, do sem sentido, tão prontamente reconhecemos nossa impotência em inovar, e permanecemos na mesmice do mesmo.

Para evitar a Utopia, com certeza, os saltos não podem ser grandes. Para evitar o Lugar-comum, entretanto, é preciso insistir no salto, na mínima incorporação sintética de uma outra realidade possível.

A atitude filosófica de crítica diante do real, exige a mesma atitude diante do irreal. Imaginação, fantasia, sonho, poesia precisam passar pelo crivo da crítica, e ainda assim ultrapassar, mediante a própria crítica, a cortina de ferro do real. Por isso é tão difícil e delicado pensar uma inovação plausível.

O meu gato

Quando começo a pensar sobre o meu gato, não sobre o ser, o mundo ou sobre o gato em geral, mas sobre aquele gato ali, então há nisso uma espécie de estoicismo, de filosofia helenista, não? Uma busca de tranqüilidade para a alma.

Dejeto – Rudimentos da economia (V)

Quando a matéria de uma mercadoria perde seu valor de uso, torna-se dejeto. Durante todo o processo econômico da matéria, produz-se dejeto.

O dejeto de uma mercadoria pode servir de matéria para uma outra mercadoria.
Nesse caso, o dejeto possui valor de uso, e eventualmente valor de troca, quando envolvido como matéria em uma outra mercadoria.

Quando o dejeto perde todo valor de uso ou de troca, sai do ciclo econômico, e se torna dejeto-último. No início da transformação econômica das mercadorias está a matéria-prima; no fim, o dejeto-último.

Todo processo econômico, por mais circular, é um processo de uso, de desmaterialização da mercadoria.

O uso da mercadoria, a desmaterialização, satisfaz a necessidade do corpo. Entretanto a necessidade do corpo em geral se renova, enquanto a matéria jamais se recicla completamente, há sempre um dejeto.

Esse descompasso entre a circularidade quase completa da necessidade do corpo, alimentada pela desmaterialização da mercadoria, e a linearidade do processo de transformação da matéria é o que produz indefinidamente o acúmulo do dejeto-último.

A economia é um processo de satisfação de necessidades, de desmaterialização, e por isso, de produção de dejeto-último.

Matéria-prima – Rudimentos da economia (IV)

A essência econômica da matéria-prima é a disponibilidade.

A matéria-prima está à disposição, e enquanto tal não é efeito de nenhum acúmulo de trabalho. Por isso a matéria-prima não é uma mercadoria, embora possua valor de uso.

Um corpo pode usar a matéria-prima para satisfazer imediatamente sua necessidade.

Um corpo pode usar a matéria-prima, acondicionando-a, para acumular seu trabalho. Nesse processo a matéria-prima torna-se a matéria ou parte da matéria de uma mercadoria.

Quando envolvida em uma existência de mercadoria, a matéria-prima torna-se simplesmente matéria.

A matéria-prima, em estado de disposição, antes de acumular o trabalho de um corpo, não é uma ferramenta, pois não é uma mercadoria, embora possa ser usada para produzir mercadorias.

A matéria-prima que, pelo acúmulo de trabalho, se transforma em matéria que pode ser utilizada na produção de outras mercadorias, se transforma, ao mesmo tempo, em ferramenta.

Nem toda matéria é uma ferramenta. Há matérias que só são usadas imediatamente.

Toda ferramenta é uma matéria, pois a ferramenta tem sempre um uso.

Há duas formas de materialização da matéria-prima. (1) A matéria-prima transforma-se em matéria, mediante o trabalho de um corpo, que nela se acumula, transformando-a em mercadoria. (2) A matéria-prima à disposição torna-se mercadoria, também, mediante a apropriação, isto é, mediante a relação que se estabelece entre ela e um corpo, que a defende contra outras relações de apropriação. Assim, a matéria-prima ganha um valor de troca.

Quando é apropriada, quando possui um valor de troca, a matéria-prima à disposição transforma-se em mercadoria, por ter acumulado o trabalho de apropriação.

Ferramenta – Rudimentos da economia (III)

A ferramenta é uma mercadoria, tem um valor de uso para o corpo e, se apropriada, tem um valor de troca na sua relação com outras mercadorias.

Nem toda mercadoria, entretanto, é uma ferramenta, pois, diferente das outras mercadorias, o corpo não só usa a ferramenta imediatamente, para satisfazer imediatamente uma necessidade, mas também a usa para auxiliá-lo a acumular seu trabalho, a transformar seu trabalho em mercadoria.

A ferramenta é uma mercadoria que produz outras mercadorias.

Exemplos: uma escova de dentes, como uma maçã, é uma mercadoria, mas não uma ferramenta.

O uso da ferramenta, como de qualquer outra mercadoria com valor de uso, requer algum trabalho do corpo.

O corpo proprietário da ferramenta pode usar o trabalho de outros corpos, no uso da ferramenta, para a produção de mercadorias. Nesse caso, o corpo que trabalha com a ferramenta é o corpo trabalhador. No campo, o corpo trabalhador é o camponês; na oficina, o operário.

A mercadoria que o corpo trabalhador produz com seu trabalho não é necessariamente propriedade de nenhum corpo. Em geral, ela é totalmente ou parcialmente apropriada pelo proprietário da ferramenta.

A ferramenta trabalha? Não, o corpo que usa a ferramenta trabalha. A ferramenta apenas expande, quantitativamente ou qualitativamente, a capacidade de trabalho do corpo.

Outras BLOGinformações sobre economia

Propriedade – Rudimentos da economia (II)

A propriedade é uma relação, seja entre dois corpos diferentes, seja entre um corpo e uma mercadoria.

Como relação entre dois corpos, a propriedade é a apropriação de um corpo por outro. O corpo apropriado é o corpo escravo. O corpo que se apropria é o corpo do senhor de escravos. Todo esforço finalizado do escravo, toda satisfação produzida por ele, seja imediata, seja mediada pela mercadoria, é apropriada pelo senhor do seu corpo.

Sendo a propriedade uma relação entre dois corpos diferentes, um corpo não é propriedade de si mesmo, não faz sentido falar do corpo como escravo de si.

Como relação entre um corpo e uma mercadoria, a propriedade é a apropriação da mercadoria acumulada pelo trabalho. O corpo que se apropria da mercadoria é o corpo proprietário. Todo proprietário é um corpo que se apropriou de uma mercadoria.

Entre a mercadoria e quem trabalhou por ela não há necessariamente uma relação de propriedade.

Quando o corpo se apropria do acúmulo do seu próprio trabalho, a mercadoria que produz é sua propriedade, quer dizer, pode ser usada para satisfazer suas necessidades, ou trocada pelo trabalho de outros corpos, acumulados ou não.

A apropriação é a defesa de uma mercadoria, por parte de um corpo, em detrimento do seu livre uso por outros corpos. Para que a operação da troca seja possível, já é necessária a apropriação. Não é possível trocar uma mercadoria que não tenha um proprietário.

Assim, quando a mercadoria tem valor de troca ela é propriedade de um corpo, que se apropriou dela. A mercadoria apropriada perde seu valor de uso indeterminado. Seu valor de uso é determinado pela sua relação ao corpo que apropriou-se dela.

O proprietário pode usar ou trocar a mercadoria por ele apropriada. Se a mercadoria é dinheiro, o proprietário só pode trocá-lo.

O proprietário pode trocar seu dinheiro pelo trabalho de um outro corpo, do qual ele não é proprietário. Trabalho que, dependendo da situação, ele acumula na forma de mercadoria, ou usa imediatamente para satisfazer-se.

Quando se troca a mercadoria, troca-se também a relação de propriedade da mercadoria de um corpo a outro.

Próxima informação da série: a ferramenta.
InformaçãoBLOG anterior: a mercadoria e o trabalho.

InformaçãoBLOG (V)

O estilo da informaçãoBLOG não é a notícia do fato, não é a ficção, mas o ensaio. A característica do ensaio é a conexão intuitiva, imaginária, mas provável ou possível, entre proposições, parágrafos, sugestões. Quase-facticidade, quase-ficcionalidade. A informaçãoBLOG é a operação do fato pela ficcionalidade e a operação da ficção pela facticidade. O ensaio não é uma demonstração, que percorre os degraus até o topo da tese, quase sem descontinuidade, mas um raciocínio que salta. O salto é o movimento que dá o ritmo ao ensaio. O ritmo é aquilo que nos prende. O salto encobre o saltado, que permanece não percorrido. O que nos prende ao ensaio é o que ele apresenta nos saltos, mas não enumera, o que permanece encoberto. A positividade da informaçãoBLOG está nessa sua negatividade.
> Sobre o ritmo...

Trabalho e mercadoria – Rudimentos da economia (I)

O trabalho é um esforço finalizado do corpo, visa a produzir imediatamente ou mediatamente a satisfação de uma necessidade.

Quando a satisfação, alcançada pelo trabalho, não é imediata, aparece a mercadoria. A mercadoria é acúmulo de trabalho. O trabalho acumula-se na mercadoria na forma de uma satisfação potencial. É devido a essa potência de satisfação que a mercadoria se valoriza.

O consumo é o uso da mercadoria, é a atualização da sua potência, quer isto produza ou não satisfação.

Uma mercadoria tem valor de uso ou valor de troca. O valor de uma mercadoria é uma relação. O valor de uso da mercadoria é a relação entre sua potência de satisfação e a necessidade de um corpo. O valor de troca da mercadoria é a relação entre a sua potência e as potências de outras mercadorias.

Quando a mercadoria circula, ao longo de trocas sucessivas, sem ser consumida, ela torna-se moeda. Quando a moeda perde por completo seu valor de uso, quando não serve para mais nada além de possibilitar uma troca, torna-se dinheiro.

O dinheiro é a mercadoria sem seu valor de uso, é a mercadoria em seu puro valor de troca.

O dinheiro é a forma mais abstrata da moeda; a moeda, a forma mais abstrata da mercadoria; a mercadoria, a forma mais abstrata do trabalho.

Trabalho acumulado é mercadoria, mercadoria que se troca é moeda, moeda sem valor de uso é dinheiro.

Dinheiro é trabalho acumulado que se troca e não se usa.

Exemplo: Respirar é trabalhar. Respirar é um trabalho que produz satisfação imediata. Como não é um acúmulo de trabalho, o ar disponível não é mercadoria. Respirar o ar disponível não é consumir. Acondicionar o ar é um trabalho que não produz satisfação imediata, o ar condicionado é uma mercadoria.

Toda mercadoria com valor de uso possui uma matéria. A matéria é o que é usado em uma mercadoria.

O dinheiro existe, mas não tem matéria.