Passar II

Como escapar da finitude, senão pela religião?

Não há, diante do paradigma político de um certo Ocidente (que obviamente não é o Ocidente geográfico), apenas o paradigma teológico-político de um certo Oriente?

Aliás, Platão inventa, no Político, o mito dos dois ciclos da Terra*. (1) Durante uma era, gira o astro numa direção. Nesse giro, todos os seres terrestres estão submetidos diretamente aos cuidados dos deuses e de seus emissários também divinos. Os seres humanos têm a Deus como pastor. (2) Mas esse girar se esgota por si, o astro pára e volta a girar, em direção contrária. Nesse ciclo, os deuses abandonam a Terra, e deixam os terrestres entregues à sua própria natureza.

Esses dois ciclos ilustram bem os dois paradigmas políticos contemporâneos: (2) o biopolítico (o governo das populações vivas pelo pastor humano) e o (1) teocrático (o governo dos fiéis diretamente por Deus).

Na saudade, no padecer, dos tempos passados [um tempo lógico: o (2) na imaginação do (1)], os humanos constituem, entre pares, uma organização pastoral. Como ovelhas, na carência do rebanho e do pastor, aceitam, ou escolhem, seus governantes, no desejo de ser governados.

Se prestarmos um pouco de atenção, encontramos logo a diferença fundamental entre a teocracia (como governo direto de Deus) e o regime teológico-político (como governo dos que representam a Deus na Terra). Apenas ressalto o óbvio: a religião e o clero são figuras do regime teológico-político e não da teocracia. Nos termos de Platão, portanto, o regime teológico-político faz parte do mesmo ciclo da Terra, em que a biopolítica, o regime político do Ocidente, se insere.

Não é por nada que a biopolítica pode ser interpretada, também, como a incorporação dos mecanismos de poder do pastorado cristão pelos Estados modernos. Com a crise do pastorado religioso, nos séculos XVI-XVIII, é o Estado soberano que paulatinamente absorve as funções do pastor, e passa a governar, a cuidar, da população como se fosse um rebanho. A passagem da compreensão da política como soberania para a política como governo equivale à governamentalização do Estado. O Estado soberano se torna governo, pastor laico de um rebanho laico.

(*) PLATÃO. Diálogos: Político. Col. “Os Pensadores”. Trad. diversos. São Paulo: Victor Civita, 1972. 272 p.

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