Sistemas-ovo


O ovo é o paradigma do sistema psíquico isolado de estímulos do mundo externo.

Nesse modelo do sistema-ovo, temos o tipo de império formado pelo soberano asiático ou amarelo e pela extensa corte pálida e translúcida, reunida ao seu entorno.



Psico-político-análise III: representante e representado


O representante tem em relação ao representado a mesma relação que a lei estabelece com a nudez humana: o representante mantém oculto (mantém e oculta, mantém ocultando) o representado.



Psico-político-análise II: biopolítica, tanatopolítica, pulsão de vida, pulsão de morte


Os opostos, então, não abrem dois caminhos distintos, mas apenas um único e mesmo, seja na consciência (na ciência), seja no inconsciente.

Assim, talvez fique mais fácil entender a intrigante copresença da biopolítica e da tanatopolítica (copresença que invoca a questão: por que, justamente, ao dedicarem-se à vida e ao agirem em nome dela, os governos se tornam tão assassinos?).


Isso e o oposto disso II


Eu escolhi! Então: eu escolhi escolher! Et sic in infinitum...

“Como o elemento da escolha veio a fazer parte do mito [...]?”. “A escolha se acha no lugar [do seu oposto] da necessidade [...]”*.






(*) FREUD, Sigmund. O tema da escolha do cofrinho [1913]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 18 (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 314.

Isso e o oposto disso


Em geral, pensamos que o oposto disso não tem nada a ver com isso (seja lá o que isso for!). Por exemplo: que a ciência nada tem a ver com a inconsciência.

Mas, tanto Freud quanto Aristóteles, nos dizem o oposto disso.

Freud: “os opostos, nas formas de expressão do inconsciente, como no sonho, são frequentemente representados pelo mesmo elemento”*.

Aristóteles: “A ciência dos opostos é uma só”**.

De onde virá tal ressonância? Será a metafísica (a filosofia primeira) uma das tais expressões do inconsciente?





(*) FREUD, Sigmund. O tema da escolha do cofrinho [1913]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 18 (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 312.

(**) ARISTÓTELES. Métaphysique. Tome 1. Livres A-Z. Trad. J. Tricot. Paris: J. Vrin, 2000 [1933]. Γ, 2, 1004a9. P. 114.

Ditos (168) e ouvidos


Isso que, agora, é pouco, e se acumula, amanhã será parte do muito.

(Em que medida este dito diz o mesmo que este, já conhecido: “não deixes para amanhã, o que podes fazer hoje”?)

(Solução 1, em que o valor é dado ao plano da linguagem: forma é conteúdo; varia a forma, logo, varia o conteúdo)

(Solução 2, valor dado ao pensamento: no fundo, nos dois ditos, diz-se o mesmo significado)


168


– Isso que, agora, é pouco, e se acumula, amanhã será parte do muito.



Rivalidade, competição, guerra


Três modos de estar entre humanos, enquanto potências. Rivalidade entre iguais, na divergência (os desejos singulares perseguem em comum bens divergentes). Competição, na concorrência (os desejos homogeneizados perseguem os mesmos bens, que, escassos, não bastam para todos). Guerra, no afrontamento (os desejos são opostos; na ruptura do comum, desejam o fim do que lhe é oposto).




Psico-político-análise: a nudez brasileira


É compreensível a repulsa melancólica que nós, brasileiros, experimentamos diante da política despida dos mitos republicanos do bem comum e da soberania popular*. Para nós, tudo se expôs, às claras.

Fim do mito e exposição da nudez são dois processos correlatos; pois, no mito, o nu oculto se mostra e age, mas apenas sob belas e suportáveis roupagens** (personas mascaradas***).

Isso que se expõe e se desnuda, com o fim do mito, são as excreções humanas políticas, que, no mito, permaneciam veladas, ou apareciam como anormais, tal como certas excreções humanas individuais. Em uma palavra: as fezes e as excreções do sexo, que fazem parte de nossa psique como o fundo submerso de um iceberg, estão expostos à vista e ao olfato. E isso é horripilante****.

A lei tem a função de manter oculta***** a nudez política humana, o amor do Eu (o narcisismo secundário), tirânico, sádico, sem lei, sem outro, infantil. Sem a lei, na negação do outro, o pior de nós, humanos, emerge. “Pois o ser humano, quando aperfeiçoado [pela lei democrática comum, isto é, pela presença divergente dos outros-rivais], é o melhor dos animais, mas, quando separado da lei e da justiça, ele é o pior de todos”******. Trata-se, nesse extrato de Aristóteles, – e é isso que justifica minha intercalação entre colchetes – da lei razoável, precisamente no sentido de uma lei que aperfeiçoa, pelo reconhecimento da alteridade.

No caso do Brasil, é pela própria lei (mas injusta, porque parcial) que se expõe o que precisaria permanecer encoberto. Isso nos enoja e nos entristece (a repulsa melancólica). No entanto, poderíamos ver aí uma vantagem. Uma possibilidade de amadurecimento diante da realidade e sob efeito dela. O reconhecimento da necessidade de ajustar a lei.

Nossa constituição política atual (nossa politeia) se mostra absolutamente incapaz de denegar os piores impulsos humanos, que estão efetivos nas atuais relações de potência (a dunasteia)*******.








(*) Fim do mito, fim da ideologia? Conferir: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’idéologie Allemande. (1845-1846) Première partie. Trad. H. Hildebrand. –: Nathan, 2003 [1846].

(**) FREUD, S. O tema da escolha do cofrinho [1913]. Trad. P. C. Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 18 (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 301-316.

(***) HOBBES, T. Leviathan. Indianapolis/Cambridge: Hackett, 1994 [1651]. I, xvi, §3. P. 101.

(****) FREUD, S. Prefácio a “Ritos escatológicos do mundo inteiro” [1913]. Trad. P. C. Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 18 (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 346-350.

(*****) ARISTÓTELES, –. Politics. Trad. Benjamin Jowett. In: MCKEON, R. (Org.). The Basic Works of Aristotle. New York: Random House, 1941. I, 2, 1253a30. P. 1130.

(******) “Manter oculta” é uma forma de incluir-excluir. Conferir AGAMBEN, G. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Trad. H. Burigo. Belo Horizonte: Ufmg, 2004 [1995].

(*******) Para as relações entre politeia e dunasteia, conferir a lição de: FOUCAULT, M. Le gouvernement de soi et des autres: Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Seuil/Gallimard, 2008 [1983]. P. 145.

Nota 9, quem disse?


Eu lhe apresento um número, por exemplo: 9, como expressão de um coletivo. Você tende a pensar: –  cada um disse “9”. Mas, 9 pode ser apenas a média que ninguém disse das notas que cada um de fato disse.





Sociologia antissocial e a mídia

A palavra “contemplação” (e não “teoria”) muitas vezes é utilizada para traduzir o grego “theoria”.

Disse, antes, que a sociologia atual é a contemplação da sociedade contemporânea. Quer dizer, em grande parte, nossa sociologia é espectadora (televisiva etc.). Contemplamos a imagem da sociedade, não a sociedade mesma. A imagem é uma obra de arte (muitas vezes coletiva, mecânica e involuntária). A imagem da sociedade é obra de uma arte social, que a nossa sociologia atual contempla e ajuda a reproduzir.



Sociologia antissocial



A sociologia atual (nossa contemplação da sociedade contemporânea) é antissocial. Ela insistentemente nos indica que não podemos esperar muito da sociedade, da qual, entretanto, dependemos. Estamos em tempos de éticas (e o plural aqui é muito importante), entendidas como soluções individuais ou modos de vida singulares. A política, esse modo de ser construtivo e comum entre modos de ser semelhantes, livres, amigos e rivais, tornou-se uma fantasia escolar. A amizade, que tece o social, está enfraquecida, restringe-se a encontros esporádicos, pequenos lampejos de amor, pequenas conexões, que, ainda, é verdade, surpreendentemente, mantêm vivo e flexível o tecido de que somos feitos. A rivalidade (que é um índice da heterogeneidade política, da diferença entre as disposições) cedeu à competição (a perseguição combativa das mesmas coisas), quando não ao ódio (que é a projeção da nossa tristeza para fora de nós em uma causa externa).


Nós e a democracia


Estamos, agora, diante da questão do tanto de verdade que uma democracia pode suportar: “Uma democracia que, ao mesmo tempo, possibilita o discurso-verdadeiro e o ameaça sem cessar”*.





(*) FOUCAULT, Michel. Le gouvernement de soi et des autres: Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Seuil/Gallimard, 2008 [1983]. P. 168.



167


Não podemos, simplesmente, dar um tempo?



Como, pelo próprio princípio do real, somos levados ao irreal



Tudo começa com a exigência da realidade em postergarmos o prazer (o que Freud chamou de princípio da realidade). Aprendemos a postergar o prazer, para um momento futuro apropriado, e a encarar a premência da realidade no presente. Esse dispositivo razoável de adiamento do prazer, no entanto, acaba fixando-se; até a vida de prazer tornar-se possível apenas depois da vida e num outro mundo. Esse é o “mito religioso especial”*, que expressa a transformação do princípio da realidade em princípio da irrealidade.




(*) FREUD, Sigmund. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico [1911]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 18 (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 117.

Si mesmo


Simone me fez a seguinte pergunta: – não sei para que serve o “mesmo”, quando se diz “si mesmo”; o “mesmo” aí me parece redundante.

Quando Simone me pergunta alguma coisa, parece-me (o que é uma ilusão; ela não pergunta, mas observa) que ela quer alguma resposta. Pois bem.

Não, Simone, “mesmo” ali não me parece reduntante.

Em, por exemplo, “para si” e “para si mesmo”, há uma diferença.

– Ele fez isso para si. – “Si” é ele mesmo, um outro “ele” ou “você”.

– Ele fez isso para si mesmo. – Nessa segunda enunciação, o “mesmo” tira a ambivalência do “si” da primeira, e indica que ele fez aquilo para si próprio. O “si mesmo” é uma referência ao “eu”. O “si” sozinho, não. A língua mostra que o “eu” não é o “si”.

O que terá “Si”mone a me dizer sobre isso?



O eu e o si


O eu é uma imagem de si. Uma imagem perdida de si. Uma imagem que se perdeu de si. O eu é uma imagem que se agarra a si mesma.



Princípio de identidade


Eu sou isso. Isso sou eu. Eu sou eu.

A identidade é uma espécie de transitividade:
(A=B; B=C; então: A=C)
(A=B; B=A; então: A=A)

que passa por algo de objetivo (por algo de exterior ou, talvez, por algo que se exterioriza; aqui chamado de “isso”).


Identidade e narrativa


“Somos isso que contamos de nós mesmos”.

Duas objeções. A narrativa, num certo aspecto (n’outro, parece ser o contrário), restringe a complexidade da experiência, atém-se ao que considera essencial. Mas, em todos os seus aspectos, quando simplifica ou quando intensifica a experiência, há na narrativa uma espécie de falsificação, maior ou menor, do vivido. Então, se nos identificamos com a nossa própria narrativa, nos falsificamos. Identifico-me com isso que, de fato, não fui (ou não fui completamente).

Segunda objeção, psicanalítica. Há uma outra história viva por trás, por baixo, da história que o eu conta ou impõe para si (a ambivalência do “si” aqui é proposital; pois o “si” é anterior a “eu” e a “ele”), e com a qual se identifica. Uma história que nunca é completamente narrada (inenarrável).

Terceira objeção, ética. A narrativa conta o que se passou. Inventa o passado. E a identidade: eu sou isso mesmo que fui. Idêntico a mim mesmo. Na ética, trata-se porém do devir, da metamorfose (uma outra figura diferente da mesma forma) ou, no limite, da transformação (dar-se uma forma diferente).








A expressão, a beleza e a coisa


1) Uma expressão do feio pode ser bela.

2) Uma expressão pode ser bela, sem falar do belo.

3) Não é porque fala do belo que uma expressão é bela.

4) Uma expressão pode ser bela, sem falar de beleza.

5) Uma bela expressão não necessariamente fala do belo.

6) Um texto não é belo porque fala do belo, porque tem o belo como objeto, ou porque tem o belo como referência.

7) A beleza da expressão não é a sua referência.

8) Não é bela uma expressão porque se refere ao belo.

9) Não é o belo objeto de referência que torna bela uma expressão.

10) Uma bela expressão que fale de coisas feias. Isso é totalmente possível.

11) Que uma bela expressão se refira a coisas feias, isso é totalmente possível.

12) Expressar belamente o feio, isso é possível.

13) Falar belamente do feio.

14) Uma fala pode ser bela, mesmo que fale do que é feio.

15) “Isso é feio, não quero vê-lo”. Mas se eu falo belamente do feio, você me ouve.

16) Objeto feio. Imagem bela do objeto feio.

17) Coisa feia. Ele fala com beleza de coisas feias.

18) Coisa feia. Imagem bela da coisa feia não torna bela a coisa feia.

19) Coisa feia. Imagem bela. Não porque pinte a coisa como bela. Mas bela no seu próprio ser.

20) Belo filme de uma coisa feia.

21) Vi um belo filme de uma coisa feia. Onde está a beleza, em mim, no filme, na coisa?

22) A coisa é feia; há uma bela expressão dela.

23) O que faz bela uma expressão não é a coisa que ela expressa.

23bis) O que constitui a beleza de uma expressão não é a coisa expressa.

24) A expressão que expressa a coisa feia pode ser bela.

25) O feio expresso pode aparecer belamente.

26) Como belo.

27) O feio pode ser expresso com beleza.




Da mistura de filosofias


Estamos convencidos (ao que nos parece; afinal, como podemos ter alguma certeza, depois de tanto caminharmos e nos enfraquecermos?) de que há filosofias e não a filosofia. Disso nos veio o gosto (ou a necessidade do gosto) pela mistura dos conceitos e pelos modos de caminhar, pela impureza do pensamento.

Cada filosofia é (parece ser) um caminho na linguagem. Mas a linguagem “é um labirinto de caminhos”*.

Por ser da linguagem, que é “um instrumento”**, uma ferramenta que trabalha o real, a filosofia é uma operação sobre o real. Depois de caminhar, o real já não é mais o mesmo, transformou-se. A filosofia trabalha o real ou parte do real, e o dispõe de um certo modo, por meio do qual, muitas vezes, novas realidades aparecem; velhas, desaparecem. Dizer que a filosofia produz o real talvez seja excessivo. Que as filosofias, no real, operam sobre o real, talvez mais ponderado.

Da nossa mistura decorre – como ocorre quando, sem um plano urbanístico mestre, vários arquitetos, várias equipes de engenheiros, operários, várias técnicas de construção agem em uma mesma cidade e em suas peças – que o real operado resultante é como uma Torre de Babel (muitas línguas, muitas superstições).





(*) WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen. Frankfurt: Suhrkamp, 2003 [1941]. #203. P. 134.

(**) Ibid. #569. P. 244.

166


Quando nos retiraremos (ou seremos retirados, tanto faz) do dualismo trágico-niilista? Quis dizer: dessa nossa situação (lançados de cá para lá e de volta) entre o trágico e o niilismo.



O instante imperial e os budismos


O mundo está em crise. Quer dizer, nesse instante, somos incapazes de apreendê-lo no pensamento. Incapazes de pensá-lo. O mundo parece não caber no pensamento (nem mesmo como capitalismo). Isso é possível? Ou isso apenas significa: um ótimo instante para os budismos?




O desejo de conhecer e a nova ideia: atração e repulsa


A ciência precisa do novo, para se encontrar – disso a atração; e não pode se deixar enganar pelo novo, para não se perder – disso a repulsa.




Um mesmo afeto pode ser causa da negação ou da aceitação de uma explicação


– Oh! Mas isso é nojento! É repulsivo!

Freud diz: n’isso está a causa da resistência à psicanálise. Isso explica a resistência à psicanálise*.

Wittgenstein, pelo contrário: n’isso está a causa da nossa adesão a ela. “Pode muito bem ser o fato de a explicação ser extremamente repulsiva que nos leva a adotá-la”**. Isso explica o sucesso da psicanálise.

Um mesmo afeto, a repulsa, assim, em diferentes sujeitos, é causa da negação ou da aceitação da explicação.

Em uns, a repulsa causa a negação da verdade: – Oh! Isso é nojento! Não pode ser verdade!

Em outros, a repulsa causa a aceitação como verdade: – Oh! Isso é nojento! Mas, devo confessar, é justamente isso que me atrai! Portanto, isso precisa ser verdade.




(*) Conferir, por exemplo: FREUD, Sigmund. As resistências à psicanálise [1925]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 16 (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 262. Neste texto, Freud enumera três razões inter-relacionadas da repulsa: isso é novo; isso é sexual; isso é judeu.

(**) Wittgenstein apud: ASSOUN, Paul-Laurent. Freud e Wittgenstein. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Campus, 1990 [1988]. P. 41.