Crise

Há uma crise, embora ela seja de natureza diversa daquela que se anuncia. Fala-se de uma crise que seria como uma negação. Mas, se é uma crise – e de fato uma crise é –, ela deve agir positivamente, isto é, no positivo. Há uma crise de produção mental, não de desprodução. De aquecimento, não de desaquecimento material.

Portanto, devemos agir também no positivo.

Se há tanto desemprego na economia, é porque, como um todo, não precisamos de mais produção material, e podemos nos empregar com outra coisa.

Entender a economia como ela é, uma utilidade, não um fim em si mesma.

Proximidades notáveis III























Um ínfimo e quase imperceptível desvio, na gênese de um caminho, frequentemente, nos conduz a um lugar completamente distante, senão oposto, daquele que poderíamos esperar, ao considerarmos apenas a nossa direção inicial.

{de A vai-se indo para B ou para C}

Disso, tira-se a seguinte lição:
quando são dados dois resultados que consideramos opostos entre si, por exemplo, como são opostos algo de bom e algo de mau, não devemos procurar, para explicá-los, duas causas necessariamente opostas entre si. Pois a causa de um efeito, talvez, possa ser explicada por um desvio ínfimo em relação ao desdobramento da causa do efeito oposto.

{dados B e C, eventualmente retornar ao mesmo A}

O olhar do outro

Um outro é mais perspicaz e claro do que nós mesmos, a respeito daquilo que nós mesmos somos, sempre sob o olhar do outro.

Isto é, um outro, comparado a nós mesmos, é mais capaz de expor ao olhar de um outro aquilo que o outro, por si mesmo, perceberia de nós. Seja porque não nos enxergamos, seja porque padecemos da tendência a nos superestimar.

Assim, por exemplo, torna-se compreensível o que há de dissimilar entre o retrato que a irmã de Pascal faz de Pascal e o que o próprio Pascal descreve de seus pensamentos.

Figuras do pato-lebre





A nossa mais profunda transformação de nós mesmos, hoje, como sempre, não seria a de nos engajarmos como seres humanos efetivamente políticos? Como políticos, já o somos, em sendo; mas, o somos efetivamente?

Essa transformação, como qualquer outra, na medida em que é uma autotransformação, não nos conduz a nada além do que já somos, mas somente ao que já somos, porém, sob outro aspecto.

Mecanismos afetivos VII: afeto e conhecimento

O desejo, frequentemente, nos conduz do juízo singular ao juízo genérico.

'Este cachorro morde', 'esta rosa é bela', 'este homem é mau' transformam-se, pelos fluxos internos e externos que agitam nosso desejo, em 'cães mordem', 'rosas e até mesmo todas as flores são belas', 'eles são maus'.

No âmbito dos fatos, essa transformação leva a falsas inferências. No dos valores, a preconceitos.

Mas ainda, essas transformações não estão, em nós, dissociadas de uma passagem afetiva, associada ora à alegria, ora à tristeza.

Undae maris undarum, mare undarum maris

Nós, da mesma maneira que ondas do mar agitadas por ventos contrários, "...nos perinde ut maris undae a contrariis ventis agitatae"*.

O genitivo oscila, flutua de um a outro termo. Como nós e nossas correntes submetidas aos ventos, sujeito e predicado flutuam. Ondas do mar de ondas. Ondas do mar das ondas. Ondas de mar de ondas. Mar de ondas de um mar.

Nota biográfica:
No passado, foi o Mare Undarum que nos trouxe à terra. Você se lembra?



* Spinoza. Ethica. E3p59s.

Mecanismos afetivos VI: amar é... (um serviço público, em nome de todas as pequenas injustiças que eu...)

“Amar alguém é, com efeito, de uma parte, aspirar que o estado de alegria associado a este afeto se mantenha indefinidamente; é também buscar a presença da coisa amada, de maneira a retirar dela o que nos agrada; e ainda, é dar prazer à pessoa à qual estamos vinculados, a fim de obter dela, proporcionalmente, as satisfações que estimamos merecer em troca do amor que lhe dirigimos: e, então, é aspirar a ser amado por ela, em retorno”*.

(*) MACHEREY , Pierre . Introduction à l’Ethique de Spinoza: La troisième partie; La vie affective. 2 ed. Paris: PUF, 1998 [1995]. P. 274.

Mecanismos afetivos V: vida afetiva e desejo

Note-se que na origem de todos os sentimentos está o desejo de afirmar o seu próprio ser.

Até mesmo, na origem dos sentimentos comumente considerados os mais altruístas e nobres, como o amor, a compaixão, a humildade, a humanidade, a benevolência, a misericórdia etc., está o desejo, que não tem outra finalidade senão ele próprio.

Isso contextualiza o valor do amor, mas também aquele do ódio e de seus derivados, como a inveja, a ira, a crueldade.

Toda a nossa vida afetiva é fruto da imaginação, que converte o desejo de ser em sentimentos. Isso não quer dizer, de maneira alguma, que a vida afetiva seja irreal.

Mecanismos afetivos IV: desejo de viver

O desejo de viver não se reduz ao medo da morte, que é apenas um de seus aspectos mais impotentes ou imbecis (sem atribuir a isso qualquer etiqueta pejorativa).

Para não morrer, o mais indicado seria não viver. Portanto, se o desejo de viver fosse simplesmente o desejo de não morrer, seria um desejo que negaria a si mesmo. Esse paradoxo já conhecíamos.

É preciso perceber, no desejo de viver, seus aspectos afirmativos. O desejo de vida é desejo de expressar, em efeitos múltiplos, seu próprio ser como causa. Para tanto, afirmamos, odiamos e favorecemos tudo o que conduz a tal expressão, e negamos, amamos e desejamos destruir tudo o que a impede.

Proximidades notáveis II

O império da imprensa, mundial e instantâneo, mostra enchentes na Indonésia de maneira tal que nos sentimos tão próximos desses acontecimentos como dos acontecimentos do Vale do Itajaí.

Assim, Jacarta nos aparece tão perto quanto Itajaí, mas também, Itajaí, tão distante quanto Jacarta.

Mecanismos afetivos III: alegria em meio ao desespero

Patrick Rodrigues/AG RBS. Fonte: Agência Estado.

A imagem à qual faço referência, aqui, não é exatamente essa, nem foi registrada pelo mesmo fotógrafo, mas trata do mesmo acontecimento. Pode ser vista neste link. Ela foi reimpressa, no Le Monde Diplomatique – Brasil, em julho de 2009, em matéria sobre o custo ambiental (há uma grande destruição em curso e, mesmo assim, sento-me e tomo o tempo de escrever).

Na impressão do Le Monde, aparecem pessoas com água até o peito, em meio a uma miríade de mercadorias, cada um empurrando sua palete de madeira flutuante, sobre a qual coloca os itens de sua escolha pessoal, que recolheu das águas.

Interessa-me, nessa foto, o sorriso de felicidade estampado no rosto do homem, no centro da foto. Nosso mecanismo afetivo é de tal complexidade, que pode, eventualmente, produzir alegria, mesmo quando não sabemos o que fazer com ela.

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A devastação das coisas da natureza se acompanha sempre da devastação da natureza das coisas.

Mecanismos afetivos II: de pessoas a coisas e vice-versa

Nossa relação com um outro ser mantém-se, como relação interpessoal, até o ponto em que o contemplamos como ser humano e não como mera coisa.

Por outro lado, passamos a ter uma relação interpessoal com a mera coisa, a partir do instante em que a contemplamos, sob algum aspecto, com alguma semelhança com o humano, ou seja, com alguma semelhança com nós mesmos.

O uso absoluto da coisa (a dominação e a violência absolutas) só parece ser afetivamente possível se o usuário considera a coisa usada como absolutamente alheia à sua própria natureza.

A experiência mostra (tanto na relação a humanos, como na relação às outras coisas da natureza) que essa redução da consideração à mera coisa se realiza muitas vezes, como comprovam os homicídios não passionais e sem má-consciência, os genocídios e as devastações das coisas da natureza.

Mecanismos afetivos: alegria no ódio

O ódio é um tipo de tristeza. Entretanto, odiar também pode alegrar, se quem odeia percebe, ou apenas imagina, que a pessoa odiada, por alguma razão, se entristece.

Cerebrizar

É preciso discernir quando um cérebro se posiciona como filósofo, ou seja, como causa para o pensamento, e quando um cérebro se posiciona como comentador, como meio para o pensamento.

Assim, num certo aspecto, um filósofo muitas vezes cerebriza como simples comentador.

Da certeza dessa informação

Como tudo em nossa existência, a certeza da informaçãoBLOG é parcial.
Um terceiro, entre isto e não-isto, não é excluído, por princípio.
Parcial, nesse uso, quer dizer mutilado.

Todos somos indivíduos

O indivíduo é um acontecimento maravilhoso.
Infelizmente, a individualização tem sido o melhor instrumento para a totalização.

Proximidades notáveis

Dois pontos próximos, ao longe, tendem a se tornar só um. Assim, condensa-se num oceano a multiplicidade de gotas; num ponto luminoso do céu, a complexidade de uma galáxia.

Mas o que falar da proximidade de Platão e Aristóteles ou da proximidade de Descartes e Spinoza, dessa proximidade que é como uma ruptura inicial num tecido estendido e tensionado, que se configura, a seguir, numa fenda absoluta?

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Os pensamentos? Passam.
Para se tornarem pensados, precisam do pensador; precisam pescar o pensador.