Um fenômeno num dia nada fenomenal

O acontecimento do dia de hoje: o rasto estreito de uma vermelhidão refletida no mar. Não havia sol. O reflexo, pode-se supor, tinha origem num buraco entre as nuvens. Mas a conexão entre o buraco no céu e o traço vermelho no mar era apenas contingente, uma exigência para se evitar a possibilidade da alucinação e do nonsense. Não parecia – e talvez não fosse – uma conexão real. O traço era como um trilho de luz vermelha que se estreitava retilíneo na direção do Oeste, o buraco nas nuvens de chumbo estava alto, muito mais à direita, era claro, mas não tão vermelho. O fenômeno efêmero durou uns dois minutos, o vermelho no mar logo foi se esvaindo. Eu poderia não tê-lo visto.

O dia de hoje não é o hoje-em-dia. O dia de hoje é uma singularidade, um acontecimento, um dia histórico, uma facticidade. Não é um universal, uma condição, um transcendental nem uma gramática. O dia de hoje é contingente, eu poderia não tê-lo visto.

Boánoite

Goya, 1799.
A boánoite, essa longa e grossa cobra que se enrosca só nos corpos puros ou nos muito cansados, exaustos. Seus favores? Reserva aos desmaios dos muito maus e aos êxtases dos muito bons, aos que ascendem e aos que caem sob o peso de suas asas, não à razão que pausa.

InformaçãoBLOG (II)

O que é informação?

Deve ser possível fazer uma teoria da informação que não seja uma teoria da mensagem. Nada de remetente, receptor, canal, código, léxico. Passar por trás disso. Ao colocar a informação fora do âmbito da teoria da mensagem, desantropologizar e despsicologizar a informação. A informação, assim, não diz respeito primariamente a um sujeito que se informa do informado. Os sujeitos da informação estão imersos na informação. Passar pela física. Informação como movimento. Informação como mudança. Integrar a teoria da informação à física aristotélica, melhor, ao devir heraclitiano. Então informação não é ser, mas devir, o rio que passa sempre. Caudal de configurações da temporalidade. Caudal das condições de possibilidade históricas.

A informação é a mudança, certo, mas é também o que provoca a mudança, porque a informação age no nível das condições de possibilidade. No nível da potência. No nível do transcendental. -- Se é assim, diriam, não estamos no nível da física, mas no da crítica. -- Mas o nível da crítica é preciso compreendê-lo submetido ele mesmo ao devir, do qual (estranha figura topológica) ele mesmo é condição.

Essa é uma figura do duplo empírico-transcendental? O empírico: aquele plano da mudanças; o transcendental: o plano das condições de possibilidade do empírico. O empírico: a temporalidade infinita, da ordem do sempre. O transcendental: a eternidade, da ordem do inexorável.

Considerar a informação um duplo empírico-transcendental altera a figura do transcendental, da eternidade, do inexorável, que se torna sempre inexorável, sempre eterna, mas mutante. O transcendental ele mesmo é informativo.

InformaçãoBLOG é um nível de informação: o nível da espontaneidade e da brevidade. No movimento, é o nível do gesto, que se for belo, é o nível da dança.

Weltanschaung

Essa terrível palavra. O que ela tem de bonito (quando relativiza o mundo, dizendo-o parte de uma perspectiva que se tem do mundo), ela tem de feio (quando uma certa perspectiva totaliza todas as outras possíveis), por exemplo, quando qualificada como "visão de mundo nacional-socialista". Weltanschaung – nela vibram o relativo (o belo e o bom) e o absoluto (o feio e o mau). Curiosa essa associação do absoluto com o mau (onde se esconde a beleza de um Sócrates, então?). Um pouco entristecedor também, devermos fazer essa associação. Faz parte da melancolia da crítica necessária e da melancolia necessária da crítica.

O voto: um comportamento, duas atitudes (II)

Duas atitudes "subjetivas" diante da objetividade do comportamento do votante, dois tipos de democracia. O primeiro tipo é a democracia hiper-real da economia, baseada no homo oeconomicus, que deve pensar no seu próprio interesse; o segundo, a democracia hiper-real do direito, baseada no homo iustus, que deve ter em mente a justiça.
O segundo tipo se reduz ao primeiro quando se considera justo, referente à justiça, pensar nos seus próprios interesses.


O voto: um comportamento, duas atitudes (I)
O voto: um comportamento, duas atitudes (III)

A leitura e a visão

Quanto mais eu leio, ou seja, quanto mais eu sei do mundo (ou pelo menos seria de se supor uma relação direta entre leituras e uma visão de mundo mais acurada), menos eu o enxergo. Minha visão de mundo se sofistica, em princípio, com minhas leituras, mas cada vez eu enxergo menos. Ainda mais curioso: não tenho dificuldade alguma para ler, para ler não preciso de óculos; mas para ver de longe, além dos 50 cm, sim. Visão sem falha até a distância de leitura de um livro, que de alguma forma aprimora minha visão de mundo, mas, paradoxalmente, quanto mais eu leio, tanto mais minha visão, para o longe, justamente para o mundo, se deteriora. O que cobre de dúvidas a suposição da relação direta entre leitura e aprimoramento da visão de mundo.

InformaçãoBLOG (I)

As especificidades da forma de um aforismo BLOG devem ser: a espontaneidade e as poucas linhas. A espontaneidade do pensamento, o vai-que-vai formulado mas não reformulado. E o tamanho, por favor, não muito extenso. Assim vale o princípio máximo-mínimo: o máximo de espontaneidade do pensamento, com um mínimo de ordem; um máximo de interesse, num mínimo de espaço.

O voto: um comportamento, duas atitudes (I)

Existe uma dubiedade no exercício da democracia participativa, quando a expressão dessa participação é o voto.

O comportamento do voto é o mesmo para todos os que exercem essa forma de participação política. Objetivamente, o votar é a manifestação de uma escolha pessoal, que ao menos em potencial vale para toda a comunidade dos votantes. Uma vontade particular de fazer valer-se como vontade comum. Esse comportamento, ao que parece, encobre duas atitudes diferentes, quer dizer, dois posicionamentos, duas compreensões, duas interpretações, digamos, subjetivas desse fato do votar.

O primeiro tipo de votante vota segundo seu interesse particular; entre as alternativas dispostas, opta por aquela que mais lhe parece pessoalmente favorável, ou pela que é mais favorável à categoria social, ao grupo, a que acredita pertencer. O segundo tipo de votante vota segundo aquilo que, de acordo com seu julgamento, deve valer para o todo da comunidade. O primeiro tipo, ao decidir-se, pensa a partir de uma parte; o segundo, conforme a perspectiva do todo.

Não se trata de pensar qual é o bom, qual o mal votante, qual a atitude correta, qual a incorreta, mas de assinalar que ao exercer o mesmo comportamento, ao votar, os votantes podem decidir-se desde perspectivas diferentes, e tomar suas decisões a partir de duas posições totalmente opostas.

Objetivamente não há como coagir o votante a votar segundo uma ou outra maneira. No mecanismo puro da decisão por maioria de votos permanece latente essa dubiedade que de alguma forma invalida o processo, e lhe retira a base de sua pretensa legitimidade que é o respeito da igualdade entre os votantes. Já que devido a essa ambigüidade essencial do votar, a igualdade dos votantes, sendo suas atitudes potencialmente diferentes, não é mais garantida pelo sistema.

A cada tipo de votante corresponde um tipo de democracia. A democracia do primeiro tipo se assemelha a uma mera contagem das partes. Com o resultado do voto, alcança-se essa contagem que conta a parte maior. Essa contagem tende a fazer com que todos ajam segundos os interesses dessa parte maior, em detrimento dos interesses fragmentados das partes menores. O mecanismo de correção dessa distorção totalizante consiste em multiplicar as fórmulas de consulta, de modo a fragmentar as partes sólidas, aquelas que se constituem sempre de um mesmo recorte da população, por exemplo, o recorte entre pobres e ricos, entre campesinos e citadinos, entre velhos e jovens, homens e mulheres, hétero e homossexuais, leigos e religiosos... Formular a consulta de tal modo que, a cada vez, ou em muitas vezes, um certo grupo de votantes não possa considerar-se, sempre, como pertencente à mesma parte definida pelos mesmos critérios de escolha. Para conter o perigo da maioria recorrente, evitar as facções, os partidos.

A democracia do segundo tipo refere cada votante individualmente ao todo. Prescinde da realidade de uma sociedade fragmentada em grupos de interesse. Conta com a possibilidade de múltiplas racionalidades. A escolha ganhante, o resultado da somatória dos votos, seria aquela que mais se aproximaria de uma racionalidade média. Cada indivíduo deve apresentar-se isoladamente, no momento do voto, como uma representação da consciência geral. Supõe-se que essa representação possa variar. E a escolha ganhante, a escolha da maioria, seria uma espécie de aproximação daquela consciência geral.

De fato, não há essa caracterização forte dos votantes nem, conseqüentemente, das formas de democracia. O que há é uma mistura dos tipos, uma imprecisão, uma vagueza do sistema de consulta popular.

O voto: um comportamento, duas atitudes (II)
O voto: um comportamento, duas atitudes (III)

O trabalho no papel e no corpo

Veja bem. Estou escrevendo. Não me refiro ao que estou fazendo agora. Me refiro a um outro texto, não esse, um outro, maior, mais problemático. E a produção desse outro texto trabalha em mim, posso dizer em meu corpo, abrindo, escavando seu espaço, ao mesmo tempo, entre minhas emoções e idéias, e no papel. Como se, de alguma forma, quer dizer, eu também poderia descrever o que está acontecendo como se o trabalho, energeticamente ou existencialmente falando, encontrasse sua origem em si mesmo.
Aquela banalidade do escritor que diz: não sou eu que escrevo, mas o texto que faz de mim instrumento? Mediunidade? Ser meio para que algo, anônimo e sem sujeito, se expresse? Não, isso não pode se tratar dessa banalidade racionalizada, pensada mas não sentida.
Talvez possa dizer as coisas de outro modo. Veja. Todo esse tempo, uns seis meses agora, que venho lidando com aquele texto, alguma coisa se passa comigo, uma transformação, enquanto escrevo, de alguma forma, também vou sendo escrito. Isso é simplesmente uma transformação? Pode ser, mas essa transformação não é independente do que está se pondo. Uma barriga vai surgindo. Um pneu de gordura se acumula logo acima de onde meu corpo se dobra. Passo tantas horas sentado, a escrever. O que está no papel está também na barriga. Está também no peito. Como uma dor. Uma confusão. Um lugar em que não se chega.
Obviamente, torna-se evidente, surge, brilha - o que dizer? -, a imagem da mulher grávida. Mas não é isso. Quando a mulher pare, ela perde a barriga, e eu ganho enquanto a coisa vai nascendo. A coisa vai nascendo aqui e ali, não é passagem de um lugar para outro, mas tomada de forma num lugar e noutro.

A dios a Momo

Ontem, foi a vez do Uruguai. Não sei por quê, um país que me inspira esperança. Pelo seu tamanho talvez, pela sua melancolia, pela sua despedida. Se o fio político que costura os brasileiros, de alguma forma, é a compartilha da violência, no Uruguai, esse fio é a saudade dos que partem. "Uruguai, nunca mais" - canta a Murga.
Nesse filme ressurge, ao contrário dos outros filmes da semana, ao contrário da imanência total do filme de Brant, das pequenas janelas do filme de Arroz, da desidentificação desejada pela chilena do Sul, do desespero de Sol, ressurge o ser para além da aparência. "Nem tudo é como parece ser", diz o mendigo, no filme uruguaio. Afinal, pela primeira vez, nesse festival, nessa mostra, transborda o além, nas suas diversas formas: magia, transfiguração carnavalesca, ilusão, espiritualidade, religiosidade, também poesia.
O difícil é manter viva, em nosso dia-a-dia econômico, no jogo de nossas capacidades e necessidades, essa remissão, essa ponte, esse elo com o que nos ultrapassa e, nessa ultrapassagem, nos redime. No fundo, não se trata tanto de uma dificuldade. Pois nisso, ou para isso, não há como se esforçar. Então, falemos de um dado, de um acontecimento, de um acontecido que se presentifica.
Não se trata, no descalabro do nosso mundo biológico, físico, biopolítico, mundo da finitude, como se queira, de saltar para o além ou de se posicionar na perspectiva de um outro mundo, mundo da salvação, mas de encontrar o outro no mesmo. Misturar os elementos. "Nem tudo é como parece ser".

O Poder em Ésquilo

O Poder diz a Hefestos, que sob as ordens de Zeus faz algo que detesta, a retenção de um parente, Prometeu:

– "Bate mais forte, aperta, não deixe jogo; pois ele é capaz de encontrar uma saída para uma situação inextricável"*.

Hoje, de forma diferente, nas relações de poder, conta-se com esse jogo, com essa folga, relativamente grande, com esse campo de ações possíveis, toleráveis. E é exatamente nesse jogo que nos embaraçamos nas malhas do poder.

O Poder hoje diz a Hefestos: – deixe o jogo, não aperte tanto, afrouxe, mostre-lhe apenas o intolerável, apenas oriente-o quanto aos limites do seu universo de ação, apenas lhe diga e convença sobre isso de que ele é feito, discurse sobre a sua essência finita, assim esse sujeito estará tão preso quanto antes, e nós, do nosso lado, faremos menos esforço.

Quando o Poder não assujeita um imortal, mas um mortal, torna-se a fala da biopolítica.

(*) Ésquilo. Prometeu acorrentado.

Frase de Álvaro de Campos

O verso de hoje: "Todo o mistério do mundo entrou para a minha vida econômica."
Essa é propriamente a redução biopolítica da vida. Formulada no seu modo mais radical e abstrato. O fim da metafísica está em relação com a biopolítica? Fernando Pessoa, Obra Poética, [522], p. 410.

Luz de invierno - Arroz

Mesma temática do filme de Brant. Ou seja nosso mundo de finitude. Nossa vida reduzida ao biológico estendido, fome, sexo, saúde, (a raça desapareceu), a economia. Mas neste filme de Arroz (e nos contos de Hugo...) há um elemento, eu diria um GEIST, um elemento vivificador, subterrâneo, elemento da história, de produção de história. Esse GEIST aparece em dois dos três contos. Ele não é uma vontade, ele acontece apesar das vontades conscientes. Aparece como uma inconsciência. O jogador de futebol que entrega sonâmbulo os tijolos à viúva miserável, sua vizinha. O relojoeiro que é tomado por uma ausência, a ausência do mendigo, até ela tornar-se presente no seu próprio abandono.
No filme de Brant, não estava presente sequer esse GEIST. Era finitude encerrada em si mesma. Esse realismo de Brant desloca o filme de Arroz para um romantismo? Há um Geist? Uma esperança de história, de transformação, de liberdade?

Beto Brant: cão sem dono

Fui assistir a esse filme do Beto Brant, filme novo e gaúcho. Muito bem feito. A história é simples. Os atores são cativantes. E a vida, essa vida nua dos personagens. "Leia-me a alma" - pede Marcela. Ele responde o que ele sente, o que ele percebe pelos sentidos, o corpo. O corpo essa é a própria poesia. Muito bem. Nessa frase está o filme. Que retrata a vida, a vida mais propriamente em si mesma. Ali sob o poder medical, que de biopsias, que de auscultações, que de investigações. Esse sem dono: essa liberdade do cão, da vida de cão. E a transcendência, nessa vida de cão? Barcelona transcende. Ninfoma transcende. E o desejo de viver de Marcela. Como explicar Marcela? Muito bem. Estamos aí jogados na vida simples, de todos os dias, diante de nossos olhos, e à nossa volta, da tela para fora dela sem descontinuidade. As cenas asperas, plenas de realidade. Enfim, um filme que se põe diante do nariz e com cheiro conhecido.