O trabalho no papel e no corpo

Veja bem. Estou escrevendo. Não me refiro ao que estou fazendo agora. Me refiro a um outro texto, não esse, um outro, maior, mais problemático. E a produção desse outro texto trabalha em mim, posso dizer em meu corpo, abrindo, escavando seu espaço, ao mesmo tempo, entre minhas emoções e idéias, e no papel. Como se, de alguma forma, quer dizer, eu também poderia descrever o que está acontecendo como se o trabalho, energeticamente ou existencialmente falando, encontrasse sua origem em si mesmo.
Aquela banalidade do escritor que diz: não sou eu que escrevo, mas o texto que faz de mim instrumento? Mediunidade? Ser meio para que algo, anônimo e sem sujeito, se expresse? Não, isso não pode se tratar dessa banalidade racionalizada, pensada mas não sentida.
Talvez possa dizer as coisas de outro modo. Veja. Todo esse tempo, uns seis meses agora, que venho lidando com aquele texto, alguma coisa se passa comigo, uma transformação, enquanto escrevo, de alguma forma, também vou sendo escrito. Isso é simplesmente uma transformação? Pode ser, mas essa transformação não é independente do que está se pondo. Uma barriga vai surgindo. Um pneu de gordura se acumula logo acima de onde meu corpo se dobra. Passo tantas horas sentado, a escrever. O que está no papel está também na barriga. Está também no peito. Como uma dor. Uma confusão. Um lugar em que não se chega.
Obviamente, torna-se evidente, surge, brilha - o que dizer? -, a imagem da mulher grávida. Mas não é isso. Quando a mulher pare, ela perde a barriga, e eu ganho enquanto a coisa vai nascendo. A coisa vai nascendo aqui e ali, não é passagem de um lugar para outro, mas tomada de forma num lugar e noutro.