O que é isso, afinal, a filosofia?

Essa questão do papel do filósofo, dessa sua tarefa, dessa “afinal, para que filósofos?”, Foucault responde assim:
O papel do filósofo de dizer “o que acontece” consiste, talvez, hoje, em demonstrar que a humanidade começa a descobrir que ela pode funcionar sem mitos. O desaparecimento das filosofias e das religiões corresponderia sem dúvida à alguma coisa desse gênero.*
Primeira observação: não tem nada a ver, um com o outro, o filósofo e a filosofia. Filósofos contra a filosofia.

Uma segunda: sem mitos, então, poderíamos dizer, sem tv!



(*) FOUCAULT, Michel. Qui êtes-vous, professeur Foucault?. Texto 50 [1967]. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François; LAGRANGE, Jacques (Orgs.). Michel Foucault: Dits et écrits. Vol. I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001 [1994]. P. 648.

Sempre elogiar o acontecimento IV: aristotelizando...


Para Aristóteles, a atitude (a disposição para o agir de certo modo) não é uma disposição dada, mas uma disposição adquirida, através da formação cultural (paideia) e dos costumes sociais (êthos).

Quando essa disposição é filosófica, isto é, quando tem em vista um grau mais elevado do humano, uma excelência, uma virtude ética (areté ethiké), a atitude filosófica, como disposição, não é simplesmente adquirida, mas é uma tomada de posição e envolve escolha.

Aristóteles nos fala, talvez, de dois tipos de atitude filosófica (hexis, em grego; habitus, em latim), dois tipos de modo de ser e agir adquiridos pela prática refletida, pelo agir orientado pela reta razão (kata orthon logon). A atitude filosófica envolve um oportunismo e um circunstancialismo.

Um circunstancialismo, na medida em que, no agir, o humano filósofo está de tal modo disposto que retira, de quaisquer circunstâncias, o maior proveito*. Afronta o acontecimento cavalar, como Filipe, como amigo do cavalo, e diz: – melhor assim, pois assim... etc.!


Um oportunismo, em segundo lugar, porque, o amigo do acontecimento age oportunamente, isto é, na ocasião apropriada, para com as pessoas apropriadas, com referência às coisas apropriadas, pelo motivo apropriado, e da maneira apropriada(**).

Em que medida estas duas atitudes – (1) fazer de toda circunstância uma oportunidade; (2) agir oportunamente – constituem um único modo de ser e agir?

Na medida em que a atitude filosófica faz de toda circunstância uma oportunidade para agir oportunamente, na medida em que essa tomada de posição percebe, em cada circunstância, a ocasião, os objetos, as pessoas, o motivo e a maneira conveniente do agir.

O humano filósofo jamais deixa de agir, em nenhuma circunstância, mas age sempre oportunamente. 

Portanto, agir sempre não significa se mover sempre, e agir não significa se mover.




(*) Aristóteles. Nic. Eth. 1101a.
(**) Aristóteles. Nic. Eth. 1106b20

Saudades de tudo

Spinoza propôs que o intelecto, com o amadurecimento, fosse ganhando o espaço da imaginação, nas mentes dos que se libertavam. No meu coração nômade e envelhecente, o que ganha espaço, porém, são as saudades. E isso não é nada mal, afinal, sem o sabor das memórias não se pode sequer pensar.


Acerca do múltiplo muito


A intensidade de um império democrático, como múltiplo muito, é diretamente proporcional à sua diversidade. Quanto mais complexo é um corpo, quanto mais ele é capaz de ser afetado e de afetar outros corpos, tão mais potente ele é. 

O desafio dos impérios democráticos, ao contrário do que ocorre nos hierárquicos, é tanto o de evitar a redução da diversidade, como o de manter, sem a obediência, a conveniência das suas partes componentes.

Nosso diálogo não se prolongará

Se você dialogar comigo, você vai dizer que eu sou curto de argumentos. Nesse sentido, pelo menos, eu penso aristotelicamente: não podemos, nas argumentações, recuar ao infinito.

“Tudo é questão de método” – VI

– Você é obrigado a dar a fonte original de tudo o que você repete ou copia.

Se não, tudo o que você afirmar ou negar será atribuído a você mesmo, como a sua fonte original; e de três, uma: (1) ou o que você propõe será absolutamente desprezível, (2) ou será seriamente levado em conta, ou seja, se você não denunciar categoricamente a fonte original, você será culpado de tudo o que enunciar, (3) ou, ainda, você será fatalmente acusado de plágio, sob a hipótese imperativa de que não há nada de novo no mundo.


Insurreição brasileira III – ir multiplamente II

Matar um tirano e colocar outro no lugar. Não é essa a causa eficiente da insurreição. Um é sempre pouco. Ir multiplamente, multiplicando-se.

Insurreição brasileira II – ir multiplamente



O múltiplo muito vai às mentes, aos corpos, às ruas.

O que queremos? Um fim, um objeto? De onde viemos? Por que vamos? De ou por uma causa?

Não podia ser diferente, as reivindicações são, a princípio, múltiplas e, enquanto múltiplas, disparates. Dar um sentido, uma direção, uma interpretação, aos issos que acontecem é reduzir o múltiplo muito ao pouco um. Um é sempre pouco.

Cuidemo-nos, portanto, com as interpretações derradeiras dos objetos, com as finalidades últimas, pois, juntos ao que está diante de nosssos olhos, como um objeto e como um fim, estão sempre o nariz e a própria visão própria. A interpretação objetal derradeira nos tranquiliza, mas apenas na medida em que domina seu objeto e por ele é dominada. A indicação de um fim último nos orienta, porém, nessa orientação, um fim se dá como nosso guia.

E, no agora vai, trata-se de desdominar-se, de desguiar-se, de inventar, de iniciar, de ir. De ir multiplamente. Na potência, não por um poder.

Sem a memória, não poderíamos sequer pensar. Por isso, nosso pensamento requer, como costume, interpretações. Mas, também por isso, a interpretação introduz um passado no presente, quando, no presente que vai, no agora vai, já há também o futuro do ir – o ainda-não-já-presente.

ainda-não-já-presente não é jamais totalmente interpretável. Ele abre, no presente, uma incompletude.

No ir multiplamente, por múltiplas vias, com o múltiplo muito, não se trata de ir a um lugar, mas de sair deste.



“Tudo é questão de método” – V


– Como é possível... ?

Pensamento ensaístico – não resolver o pensamento em proposições verdadeiras (que, sempre, pela mesma razão que se afirmam como verdadeiras, podem ser falsas), mas, por exemplo, deixá-lo no nível da investigação, isto é, das indagações.


“Tudo é questão de método” – IV

Se a ciência é o discurso do verdadeiro e do falso, e a política é o discurso acerca dos comandos de obediência e das atitudes de desobediência, que não são nem verdadeiros nem falsos, como é possível a ciência política?

Insurreição brasileira


Vem-me à mente, nesses dias, a questão da “insurreição brasileira”...

Para saber se estamos diante de uma “espiritualidade política”, como no Irã de 1978-1979, precisamos nos perguntar se, para “mudar o Brasil”, estamos também dispostos a “mudar a nós mesmos”.

Enquanto a insurreição for simplesmente determinada pelo objeto dos afetos, i.e., enquanto a insurreição for contra um objeto considerado exterior ao modo de ser que nos constitui, a nós, os insurretos, ela será certamente política. Mas, só será também espiritual na medida em que envolver o seu contra-objeto em nossa própria subjetividade.


“Tudo é questão de método” – II

– Nada de certo escapa ao método certo.

Se você diz que a essência do mundo é científica, isto é, que o mundo inteiro pode ser expresso por meio de proposições verdadeiras, você oculta a essência política do mundo, expressa por meio de imperativos ou comandos de obediência, que não são nem verdadeiros nem falsos.


“Tudo é questão de método”


Ainda estamos assombrados pelo método (pela via certa).

– Nada de certo escapa ao método certo.

Ainda acreditamos que tudo de certo só nos chega de modo certo. E que o modo certo pode alcançar tudo o que é certo.

Entretanto, não podemos ter muitas vias até a mesma coisa certa? E não podemos nos deparar com coisas certas por acaso ou pela via errada? Não podemos ter em mãos coisas certas, sem conhecermos o modo certo de chegarmos até elas?



Tudo (na sua abertura) são sentimentos de sentimentos

Isso que você me diz, nesse momento, é que não há verdades ou cristalizações. Então, tudo são modificações de modificações, ou seja, o que costumamos chamar de sentimentos.

Diário de Moscou XVI – O dinamismo inapreensível do ser ou a sua insustentável leveza

A caminho de Moscou, tudo em minha mente (e ela mesma inclusive) se descristaliza. Como se estivéssemos incondicionalmente atrelados a uma pérpetua e infinita estação de trem, passando apenas de um a outro cais, trocando de linhas e trilhos, sem qualquer verdadeira destinação ou destino.

É provável que, nessa imagem, eu esteja ainda sob o impacto da colocação dos filósofos: “não se pode cristalizar o ser”. O ser é solúvel em si mesmo (a grande estação ou biblioteca), e não há depósitos sedimentados, sequer características ou padrões de sedimentação, no fundo do ser. Só há trilhos e viagem, nenhuma identidade, nenhuma cidade, onde descer do trem.