Sob controle


O objetivo do imperium é o controle (na medida do possível). Controle da variação incontrolável dos ventos da fortuna, ora favoráveis, ora desfavoráveis. O desejo de segurança e comodidades, de felicidade do corpo mole portanto, é honesto. A honestidade desse desejo indica sua viabilidade-componibilidade no conjunto dos outros desejos e dos desejos dos outros. O controle é honesto, nesse sentido.

Viver sob controle é a vida consciente, que é uma vida social, na linguagem. A linguagem trata do geral (mesmo no nome próprio). Ter tudo sob controle, isso é uma técnica. Na fotografia, por exemplo. A fotografia como espelho do real. A consciência fotográfica mostra o real como ele é. O real-como-ele-é da consciência, no entanto, é o real profundamente elaborado, transformado, mediado pela sua apreensão linguística, em vista da reação pragmática, do controle, do desejo de felicidade ou de não-infelicidade. Sob controle, aprendemos mais a evitar a infelicidade do que nos arriscar na felicidade.

Ter tudo sob controle na fotografia é dominar a técnica, pela repetição, quando a vida não se repete nunca.


Fotografia: conhecer e conhecer totalmente


Um é conhecer; outro, conhecer totalmente.

Conhecer totalmente responde a duas condições: conhecer a essência toda da coisa conhecida, e conhecer a coisa sem nada de nós misturado nela.

Não há conhecimento total de coisa nenhuma, concordo. Mas isso não que dizer que não conheçamos as coisas que imaginamos/fotografamos.

O conhecimento de qualquer coisa é inesgotável. São inesgotáveis o conhecimento da coisa mesma e o dos aspectos da coisa, das nossas relações com ela.





O real é fotografável


Propriedade do filósofo, mas não do profeta:

– “Quem ouve o filósofo torna-se filósofo. Quem ouve o profeta, por sua vez, não se torna profeta” (Spinoza).

O real tem a seguinte propriedade (tal como o filósofo, o real comunica, “dá do seu espírito”):

– Tudo que vem do toque/resvalo, da estima, do pensamento, da percepção, da escuta, da fotografia do real se soma ao real e o modifica. Logo, toda foto é e modifica o real.


Camponeses e bandidos II


O camponês: é o regime da consciência: um mecanismo de memória e antecipação constantes em relação ao presente: o passado vivido projetado no vivido por segurança e proteção. Ele nos faz rir (a nós, camponeses ou bandidos).

O samurai: a ação é ligada à compleição inteira, complexa e singular do agente. Por isso, ela é séria (diria Bergson). Não é ação da consciência (não é refletida), nem da inconsciência (nada ignora, nem a sua própria tragédia).

E o bandido? Ele gesticula automaticamente, inconsciente do todo que é. Dá espadadas para quaisquer dos lados. Seus gestos, ora querem proteger desesperadamente uma parte do seu corpo, essa ou aquela, ora atacar na esperança de uma vitória. Estimam-se mestres e bravos, atuam como covardes e escravos. Sua mão porta à frente um sabre, seu corpo aponta para a retaguarda. Essa inadequação (Bergson) é o que os torna cômicos. Neles também, rimos de nós mesmos.

Restaram os governados e os governantes. 




Diário de Berlim _ inflexio


Nossa dificuldade com o cinema é artística (técnica): é fazê-lo, não pensá-lo. Isso não ocorre com a fotografia.


Camponeses e bandidos


– Os sete samurais (Kurosawa, 1954) –

Três tipos humanos (três disposições afetivas): o camponês, o samurai, o bandido. Destes, os dois primeiros são puros:

O camponês é o humano submetido às paixões cativantes: mediocridade, superstição, medo, esperança, humildade, mesquinharia, espírito de poupança, contenção, vingança, coletivismo, trabalho e reprodução – aliado à natureza vital, é o alimento e a condição do humano animal.

O samurai é o individual virtuoso, livre: ambição (amor à honra), gosto do risco e da arte da guerra, coragem frente à morte, grandeza da alma, tragicidade (em todas as situações, sempre sai perdendo, e se sabe assim; por isso, desaparecerão), amor do expoente – é capaz do sacrifício da condição natural da qual depende.

O bandido é o revoltado covarde: preguiçoso, desregrado demais para aceitar a condição camponesa, mas pequeno e vicioso demais para se tornar um samurai.

No filme: Kikuchiyo, nascido camponês, se torna samurai e morre. Mantém, num só, a animalidade camponesa, a determinação e o individual samurai; por isso é cômico, tanto para camponeses, como para virtuosos.

Os samurais desapareceram desde então (século XVI).
Restaram os camponeses e os bandidos que somos.


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A filosofia: uma atividade no impensado.
(avançar através da fronteira, ou retraçá-la em uma experiência-limite)





Liberdade e razão


Procuremos não definir a liberdade a partir da razão (dizer livre todo aquele que age segundo ideias racionais).  Mas, pelo contrário, a razão a partir da liberdade (são racionais todos aqueles meus pensamentos que tendem a produzir no real a minha liberdade; irracionais, os que tendem a reproduzir a minha catividade).


Riso: atenção e distração


Para Bergson, rimos do distraído, porque nele a vida se distrai, e isso lhe faz padecer os eventos mais impensados.

O contrário da distração é a vida atenta a si mesma: isso é a vida livre. A atenção à vida é seriedade, liberdade.

Porém, o que há de mais discutido, hoje em dia, entre os pedagogos, do que a constatação de que vivemos distraidamente e incapazes de aprender?

Vivemos desatentos, somos cômicos. Riria de nós aquele que nos prestasse a sua atenção. No entanto, no mundo da distração completa (uma imagem do pedagogo), ninguém prestaria atenção a nada e, assim, não haveria ocasião para o riso.

Mas, há o riso. Então, há atenção? Para Bergson, o atento, por meio do riso, corrige a distração da vida. “O riso é a própria correção. O riso é um certo gesto social, que sublinha e reprime uma certa distração especial dos homens e dos eventos”*.

Curioso parece, então, que o riso seja considerado o sinal de uma distração também naquele que ri. Afinal, não é verdade que quem ri se distrai? Quem ri deixa de prestar atenção à vida, mas, por isso, se torna cômico?





(*) BERGSON, Henri. Le rire. Paris: GF Flammarion, 2013 [1900]. P. 113.



Até que ponto é verdade que não rimos do que é sério?


O que é sério, por definição, não nos faz rir. Nossos atos de liberdade, por exemplo, são profundos, criadores, artísticos, espirituais, admiráveis, aumentam a nossa autoestima e, por isso, são sérios.

Kkk... Tomados do exterior, porém, podemos (enquanto cínicos debochados) ter uma outra visão sobre nossos supostos atos livres... Nos orgulhamos de nossa liberdade, quando, de fato, estamos submetidos à necessidade da natureza e alheios a nós mesmos! Aparece ao cínico como cômico esse nosso orgulho, fruto da ignorância de nossa própria situação. O que é interiormente sério e admirável pode ser, portanto, exteriormente cômico e vexaminoso!

Assim, se, como diz Bergson, “tudo o que é sério na vida vem da nossa liberdade”*, então o cínico debochado estaria a rir o tempo todo.

No entanto, contrariando o cinismo, e fisgando o que há de Spinoza em Bergson, seria possível, na natureza, ser livre verdadeiramente. A verdadeira liberdade é o desdobramento no real (ou na vida) da necessidade da sua própria natureza, exclusivamente.

Ok, o que é livre é sério. Mas, como não somos inteiramente livres, podemos, livremente, rir de nós mesmos. Já o escravo enquanto escravo não pode (pode apenas deplorar a sua situação e impasse). Rir de si mesmo – olhe como eu faço o que faço, automaticamente, mecanicamente, como possuído; isso é engraçado, porque poderia ser diferente – já é um ato da liberdade, por envolver alguma autocompreensão e vislumbrar um outro modo de ser. O escravo enquanto escravo permanece sempre sério, nunca ri de si mesmo.

Nesse sentido, rir de si mesmo é um gesto de liberdade. Surge do livre-conhecimento do que é trágico em nós e se crê livre (e por isso é cômico).

Por sua vez, o riso do cínico debochado é um riso escravo (ele não ri de si mesmo; para rir, precisa dos outros).






(*) BERGSON, Henri. Le rire. Paris: GF Flammarion, 2013 [1900]. P. 108.


A cidade organizando a vida


A racionalização da vida – a coordenação eficaz e repetida de nosso espírito e de nossos gestos com os instrumentos e aparelhos dispostos pela cidade para os mais diversos fins, de tal modo que os fins da cidade acabam por se substituir aos fins do espírito – é “o mecanismo superposto à vida”*. E isso é, para Bergson, o cômico (le comique), o que nos faz rir.

No entanto, a vida racionalizada, ela mesma, quase não ri de si própria; porque, eficaz e repetida, já não é vida, já que “a lei fundamental da vida é a de não se repetir jamais!”**.

Assim, à medida que a racionalização da vida envolve mais e mais os corpos, ela deixa de ser risível. Ela chega então a nos fazer querer chorar?




(*) BERGSON, Henri. Le rire. Paris: GF Flammarion, 2013 [1900]. P. 88.
(**) P. 80.