O interesse pelo abjeto II

Mas o conselho do Salvador pode não ser o motivo, pelo menos não o único, do interesse de Colerus por Spinoza. Seu interesse pode ter surgido também de uma curiosidade lógica. Como uma obra abominável pôde surgir de uma vida impecável?
 
Se o lógico e o ontológico, como se pensa desde Aristóteles, são o mesmo, então, como pôde existir a contradição entre o pensamento e o ser, entre a obra e a vida?

E é justamente este princípio, de que a obra exprime a vida, que Spinoza retoma, quando, para provar sua fé e se defender da acusação de ateísmo, adianta o exemplo de sua vida:

“Os ateus, com efeito, têm o costume de procurar sem medida as honras e as riquezas, coisas que eu sempre desprezei, como sabem todos aqueles que me conhecem’’*.

Dessa maneira, o interesse de Colerus pôde advir de uma incômoda suspeita sua: – a de que a obra de Spinoza não fosse tão abominável quanto lhe parecia.



(*) SPINOZA, Benedictus de. Lettres. Trad. Ch. Appuhn. In: Oeuvres IV. Trad. Charles Appuhn. Paris: GF Flammarion, 1966.  Carta XLIII.  P. 272.

O interesse pelo abjeto

Como exemplo do interesse pelo que é, para si, abjeto, penso no interesse que portou o ilustríssimo reverendo Colerus pela vida de Spinoza, autor de uma obra “abominável”*.  

Colerus, esbofeteado uma vez, com seu retorno à obra, não faria mais do que seguir o mandamento do Cristo (ou o conselho, como diria Spinoza). – Àquele que te atinge a direita oferece a tua face esquerda. Como se esse conselho também dissesse: “Ao virar teu rosto de um lado para o outro, olha bem quem te ofende”.




(*) COLERUS, Jean. La vie de B. de Spinoza. In: Éthique: Bilingue latin-français. Trad. Bernard Pautrat. Paris: Seuil, 2010 [1675]. P. 600.

Fluctuatio animi

Alguns julgamentos nos embaralham. Não sabemos decidir, afinal, se são um elogio ou uma desaprovação. Este, por exemplo, que alguém que nos conhece um pouco nos diz, como que de passagem:
 
– O senhor escreve melhor do que fala!

Isso nos alegra, porque escrevemos melhor do que… mas nos entristece, porque falamos pior do que… Assim, somos nós mesmos, alternativamente, ora a causa de nossa alegria, ora a de nossa tristeza.

Ponto morto

Hoje, no trem. Eu não podia ler sem adormecer. Mas também não podia adormecer, se parasse de ler. Fiquei alguns momentos preso nesse impasse, até romper com a situação.

Algo em comum

No ponto de ônibus, uma desconhecida me diz:
– “O de 8h38 acabou de passar, nós o perdemos!
”.
Eu penso: além da língua, já temos, eu e ela, algo em comum.

A citação

A citação não tinha primeiramente a função de apoio à argumentação, a famosa justificação por autoridade; aliás, típica dos profetas: – Foi Ele quem disse!
 
Tinha muito menos o seu caráter muito atual de substrato real, ao qual o comentário retorna numa espécie de verificação; aliás, típica dos teólogos: – Está escrito!, para quem um comentário não é verdadeiro por si mesmo, mas somente se for conforme a citação à que faz referência.

A função da citação era outra. Num ambiente político e natural de precariedade e dissolução contínua da materialidade dos textos, citava-se um trecho com a intenção principal de conservação e de transmissão de um legado. A citação era uma espécie de cópia parcial e rápida, que, em pouco espaço, duplicava um trecho importante, para diminuir a probalidade do seu desaparecimento.

O desejo

O desejo é como um jogo de quebra-cabeça com uma peça a mais (não a menos). 

Uma peça que deborda, não se encaixa. Desvia, esquiva, reconstitui o jogo. Joga diferente. É um a mais, que não se enforma. 

Você lhe dá uma regra, um doce, um nome, ele vira desejo de regra, de doce, de nome, mas apenas sempre parcialmente; sempre sobra aquela peça, que não sabe onde se colocar.

Coragem e prudência

Na prudência, a coragem já está incluída como o fogo que lhe anima. A prudência sem coragem é pusilanimidade, não é prudência.
Na coragem, está incluída a prudência como o que lhe dá a sua dose. A coragem sem prudência é incêndio, não é coragem.

O objeto é gramatical?

Se fizermos confiança em Gaffiot*, os latinos deram às palavras, primeiro, uma significação objetiva, material, e, somente depois, por derivação, por figuração, uma significação mais abstrata. Assim, é possível formular-se o princípio de uma ordenação no tempo dos significados em latim: quanto mais abstrato for o significado de uma palavra, mais tardiamente a significação teria surgido.
 
Por exemplo, vestigia. Vestigia significa, antes de tudo, as impressões materiais deixadas pelos pés, ao andar, sobre a terra ou sobre a areia, e, somente depois, alcança o significado figurado, geral, abstrato, de “traços”, até mesmo invisíveis. Primeiro, pegadas; depois, traços, vestígios.

Talvez essa precedência da significação objetiva sobre a abstrata esteja ligada à provável crença de Gaffiot na definição ostensiva, segundo a qual, aprendemos o significado das palavras, ao relacioná-las, subjetivamente, a objetos reais exteriores apontados ao mesmo tempo que as palavras são enunciadas.

Pode-se, porém, pensar que o vínculo entre a palavra e o objeto se estabeleça de maneira inversa. Assim, a existência do objeto não precederia a da palavra, mas seria a da palavra, no seu entrelaçamento com outras palavras, que precederia a do objeto. Seria o recorte e a funcionalidade da palavra, no continuum sonoro estruturado pela gramática, que perfaria o recorte do objeto do continuum do seu pano de fundo real. De modo que o objetivo seria gramatical.

(*) GAFFIOT, Félix. Le Gaffiot de poche. Paris: Hachette, 2001.

Proximidades notáveis V

Conforme uma analogia toda filosófica, ligam-se os hebreus imediatamente saídos do Egito, em 1200 AC, e a multidão de iranianos imediatamente livres do Xá, em 1979 DC.

Lógica suicidária

Conjunção de duas premissas numa conclusão:
 
Esforçar-se necessariamente para suprimir a causa de sua própria tristeza. 

Imaginar contingentemente a si mesmo como causa da sua própria tristeza.

Logo...

Atenção narcísica

Admiro aquelas mulheres que, no século XXI, leem uma revista feminina ilustrada com a mesma compenetração com que, no século XVII, um teólogo lia um tratado de exegese bíblica.

Explicando os afetos: do corpo à alma, da alma ao corpo

“Ah! Você preferiria dormir aqui, perto de mim, do que ir sozinho ao hotel, disse-me Saint-Loup, rindo-se. 
– Oh! Roberto, você é cruel, ao tomar isso com ironia, disse-lhe, pois você sabe que isso é impossível [num quartel], e que eu vou sofrer muito por lá.
– Pois bem! Isso me compraz, disse-me, porque eu tive, por mim mesmo, esta ideia de que você preferiria ficar aqui esta noite. E é precisamente isso que eu fui pedir ao capitão.
– E ele permitiu? Exclamei.
– Sem qualquer dificuldade.
– Oh! Eu o adoro!
– Não, isso é demasiado. Agora me deixe chamar meu adjunto para que se ocupe de nosso jantar”, ele acrescentou, enquanto eu me virava para esconder minhas lágrimas.*

Nesta cena, Proust faz a descrição do reconhecimento do reconhecimento natural do favor que lhe fez o amigo.

Por um lado, aparece o incontornável do mecanismo afetivo, no automatismo das lágrimas. Se pudesse, Proust as evitaria; não pode, por isso se vira.

As lágrimas surgem como reconhecimento ou ação natural do corpo – uma secreção devida à alguma contração de alguma glândula. Contração à qual corresponde, junto ou ao mesmo tempo, na alma de Proust, a um afeto de reconhecimento (uma espécie de amor, de alegria cuja causa ele atribui a seu amigo) que ele não pode esconder, a não ser se virando de costas.

Por outro, ele reconhece imediatamente este afeto, que, para ele, porém, é desmesurado. Ele se envergonha (numa espécie de tristeza). Vergonha à qual corresponde, junto ou ao mesmo tempo, à virada do corpo de Proust.

A descrição da cena deixaria tanto o behaviorista como o animista em apuros.

O behaviorista, ao analisar a cena, precisa fazer abstração da alma (suprimi-la, desconsiderá-la). Olharia apenas para o comportamento, as lágrimas, o corpo que se vira. Seria difícil para ele explicar a virada do corpo. Como uma contração da glândula lacrimal, neste caso particular, faria virar o corpo, se, em outros casos, esta mesma contração não causa o girar do corpo?

O animista, ao contrário, ao considerar apenas o que se passa na alma – as intenções, as emoções, as volições, que animam, que fazem mover, que conduzem o corpo – teria dificuldades para explicar por que as lágrimas surgem, apesar da intenção da alma de as esconder. Para isso, talvez, fosse preciso hipostasiar na alma um princípio inconsciente.

Estas dificuldades, a do behaviorista como a do animista, cessam, se aceitamos saltar, oportunamente, de um plano a outro, do plano corpóreo ao anímico e vice-versa, a partir da premissa de que estes dois planos se equivalem.

Uma parte da cena é mais facilmente descrita no plano corpóreo, a das lágrimas, a outra, a da vergonha, no plano da alma ou das ideias das afecções do corpo.

(*) PROUST, Marcel. Le Côté de Guermantes. Paris: Le Livre de Poche, 1992 [1920]. P. 104.

Por uma ética da leitura: ler ou não ler as entrelinhas

Segundo Leo Strauss, o ostracismo social (que pode se reduzir apenas a um tipo de descrédito intelectual) é a forma mais branda da perseguição*. Para evitar este descrédito (por ambição, para agradar os outros ou simplesmente por medo), os escritores muitas vezes dissimulariam suas ideias verdadeiras, embora não deixassem de as inscrever entre as linhas dos seus textos.

(*) STRAUSS, Leo. La persécution et l’art d’écrire. Trad. Olivier Sedeyen. Paris: Gallimard, 2003. P. 64.

As ideias humanas são ideias divinas

Pensar que nossas ideias verdadeiras sejam também necessariamente ideias verdadeiras de Deus não é, afinal, entre humanos, um perigo fatal?

Alguém, na medida em que imagina que suas ideias sejam verdadeiras e portanto também divinas, pensa com muita facilidade que um outro que se opõe a uma ideia sua também se opõe a Deus. Não ocorre tão facilmente alguém ser acusado de inimigo de Deus, apenas porque tem uma ideia que se imagina falsa?

Porém, é preciso acima de tudo perceber que a ideia falsa de um ser humano não nega a Deus jamais (nem mesmo a ideia de que Deus não existe), ela é mesmo parte de uma ideia verdadeira em Deus.

As ideias humanas verdadeiras são ideias divinas, mas as falsas também. Só que, em Deus, as ideias humanas falsas se completam com outras ideias para se tornar verdadeiras.

Spinoza: “Todas [as] ideias, na medida em que a Deus são referidas, verdadeiras são” {e2p32}.

Da mística à política

A partir do desdobramento infinito, sui juriscausa sui, do fragmento solar da ontologia, o clinamen, a deriva, a errância, enfim, a imaginação. Da mística à política. A experiência mística presente no núcleo da experiência política: _isto talvez seja a ética.

Constelações afetivas

Afetos formam constelações. Em torno de duas cargas estelares inversas e principais, giram uma miríade de condensações de afetos derivados planetários, tonalizados de alegria ou de tristeza,  eles mesmos podendo constituir outros centros para seus satélites. Nem sempre observáveis ou nomeáveis, estes afetos podem ser pelo menos calculados.

Olhar fisicamente para as coisas

Por vezes, Kiarostami nos ensina, nos propõe um certo olhar. Como experimento. Não o olhar de sempre, não um tipo olhar que seja, ou deva ser, sempre o nosso, sobreposto a todos os nossos outros olhares possíveis.  Nos propõe um olhar fisicamente para as coisas. Um olhar que não atribui valor. Que olha os acontecimentos no seu desdobrar, sem julgá-los, ao menos, não de forma definitiva. Flutuação, se não suspensão, do juízo.

Personne ne sait
qu’un petit ruisseau
né d’une source faible
a la mer comme but

Ninguém sabe
que um pequeno arroio
nascido de uma fraca fonte
tem o mar como meta

KIAROSTAMI, Abbas. Avec le vent.
Trad. Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière. Paris: POL, 2002. P. 187.



Vida humana e vida de deus

Tínhamos perguntado se aquela vida confortável de bebê nos seria suficiente, e ouvido a resposta de Spinoza a respeito de uma vida humana como verdadeira vida da alma virtuosa, ou seja, uma alma que pensa. A vida virtuosa não perde nada daquela alegria, muito pelo contrário. Porém, uma vida humana virtuosa tira sua alegria, não só do corpo, mas do vigor do pensamento entre amigos. Na sua ética, para a suma felicidade, a filosofia é fundamental.

Epicuro parece nos dar uma outra resposta num fragmento chamado “O grito da carne” – “não ter fome, sede nem frio, aquele que tem estas coisas – e a esperança de as ter – pode rivalizar (com Zeus) em felicidade”*.

Ora, muitos de nós alcançamos atender, e esperamos poder atender sempre, aos sinais sonoros da carne, mas, mesmo assim, não podemos rivalizar com a suma felicidade de uma vida divina.


Isao que, para Epicuro, complica a nossa vida humana é justamente a nossa humanidade, a possibilidade que temos para formar ideias confusas sobre a vida, sobre o mundo, sobre os deuses, enfim, o véu imaginário especificamente humano que, no entremeio, nos cobre a face e não nos deixa perceber a vida como de fato é. Essas confusões da alma nos fazem doentes. Dispondo de tudo o que precisamos para viver como deuses, imaginamos nos faltar tudo, e multiplicamos nossos desejos de prazeres imaginários.

Assim, para viver uma vida de deuses, enquanto humanos, os bens do alimento e da vestimenta não nos bastam, precisamos de um bem maior, a prudência (phronêsis), na medida em que só a prudência pode estabelecer uma estratégia de vida que pratique uma diferenciação dos desejos e dos prazeres respectivos e a independência (autarkeia), não a abstenção, em relação aquilo que não é necessariamente desejável.

Para chegar a prudência é preciso filosofar. Mas a filosofia nunca será, para Epicuro, um bem em si mesma. Ela o é apenas na medida em que nos cura da nossa doença da alma, do nosso imaginário amedrontado, ao apresentar a natureza, os deuses, a morte, como de fato são. Mas nada além disso. É preciso saber também se desvencilhar da ‘vontade de verdade’ (um termo que não é de Epicuro), da ideia de que a verdade vem acima de tudo.


(*) Épicure: Lettres et Maximes. Trad. Marcel Conche. Paris: PUF, 1987 [-300]. Sentences Vaticanes, §33. P. 255.

Elogio à física

A física retira, por exemplo, da orientação N-S, qualquer ideia de uma hierarquia natural do valor.

Consumação

Comparável à flutuação do ânimo associado à viagem é a consumação (a satisfação do nosso desejo enquanto desejo de consumir), pois a alegria que obtemos na consumação da mercadoria está associada necessariamente à tristeza de perceber que aquilo que nos causa alegria, no mesmo instante que nos alegra, e por isso mesmo, está se acabando, se consumindo. 

Nessa tristeza, e por causa dela, nosso desejo de consumir se renova ao mesmo tempo que se sacia. Pois a tristeza provoca em nós o desejo de acabar com ela.

Música americana

Passar a vida como a escutar aqueles cantos dos quais não compreendemos palavra, mas que mesmo assim nos comprazem pela melodia, pelo timbre da voz – música americana, que depois mimetizamos, enrolando a língua, fingindo dizer algo.

Viajando

Em viagem estamos a todo momento sujeitos a estes sentimentos flutuantes de alegria e de tristeza, por estar vendo, percebendo uma coisa, alguém, um encontro, pela primeira vez, mas também pela última.

Duração e eternidade

Os curtos poemas de Kiarostami são como imagens.

Alguns são como imagens instantâneas, fotografias:
A névoa espessa da manhã
sobre o campo de algodão
o trovão ao longe*
Outros são como vídeos muito curtos:
O sol de outono
através do vidro
clareia as flores do tapete
uma abelha se choca contra o vidro**
Outros, ainda, são de uma duração indefinida:
As moscas
giram em torno da cabeça do cavalo morto
ao pôr do sol***
Mas todos parecem se referir a alguma coisa de eterno.

KIAROSTAMI, Abbas. Avec le vent. Trad. Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière. Paris: POL, 2002. (*) P. 92; (**) P. 86; (***) P. 87.

O humanismo e a mosca

Diz-se que o ser humano é o único ser capaz de se compadecer com o sofrimento dos outros indivíduos de sua espécie, e o único que tem o desejo, isto é, o impulso natural de ajudar seu semelhante que sofre.

Esta compaixão pelo seus semelhantes seria o que diferenciaria o ser humano de todos os outros do universo. A tal ponto que se diz daquele que não é mais capaz de sofrer, ao ver o outro sofrer, e de se alegrar, quando percebe o outro se alegrar, que já deixou de ser humano.

Sendo a compaixão a diferença específica do ser humano, ela seria então a sua quidditas, aquilo que faz que ele seja o que ele é e não outra coisa, e portanto o fundamento do humanismo.

Entretanto o humanismo parece mais do que isso:
Uma pequena mosca
tomada pela vontade de vomitar
ao odor do inseticida
haverá alguém para a socorrer?*
O ser humano talvez seja o único ser capaz de padecer em razão do sofrimento que ele mesmo causa a um outro.


(*) KIAROSTAMI, Abbas. Avec le vent. Trad. Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière. Paris: POL, 2002. P. 80.

Duas concepções de direito interligadas por um “e daí?”

Quando ele entra, alguém como que ultrajado lhe diz:

– Você não tem o direito de estar aqui!

Nesta enunciação mostra-se com clareza a distinção entre o direito e o fato. O direito é aí algo totalmente distinto do fato de “estar efetivamente aí”. O direito é uma etiqueta que se cola ou não ao fato. Mas quem a cola, quem descola?

Diante desse cola-descola o sem-direito pode responder simplesmente ao enunciador:

– E daí?

E aí passamos a uma outra concepção, em que o direito é igual ao fato.

Resistência in-vent-ando

A resistência não é apenas contra-impulso e freio. A resistência inventa seu caminho, mesmo nas piores condições, como a água na sua mecânica hidráulica.

Veja esses versetes do livro de poemas-imagem de Abbas Kiarostami, Com o vento:
Submissos cem soldados – Soumis cent soldats
retornam ao dormitório – se rendent au dortoir
uma noite de lua cheia – une nuit de pleine lune

sonhos insubmissos – rêves insoumis
KIAROSTAMI, Abbas. Avec le vent.
Trad. Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière. Paris: POL, 2002. P. 14.

Pontes entre planos intelectuais II

Na sua tradução do Corão, Jacques Berque traduz jihad por esforço.

Conferir, por exemplo o versículo 69 da surata 29. Le Coran: essai de traduction. 2 ed. Trad. Jacques Berque. Paris: Albin Michel, 2002. P. 431.

Pontes entre planos intelectuais

Experiências negativas II

Como exemplo do que se poderia nomear uma experiência negativa, Bataille cita um excerto de Denis, o Areopagita:
“(Nomes divinos, I, 5): aqueles que, mediante a cessação íntima de toda operação intelectual, entram em união com a luz inefável... não falam de Deus senão pela negação”*.
Dá-se o nome de experiência negativa justamente àquilo de que não se pode falar.


(*) BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. 2 ed. Paris: Gallimard, 1954 [1943]. P. 16.

Linda coincidência

Quando se está só, como nos comprazemos em ouvir de repente alguém nos chamar pelo nome (mesmo que isso ocorra somente desde uma página de livro: 
 
– Léon ! Toi enfin ! dit-elle en se retournant. Que tu es beau, ce soir, mon Léon ! – et je la vis crisper les poings, et trépigner. – Voilà le gars qu’il me faut, messieurs les Intellectuels !...)
KLOSSOWSKI, Pierre. Les lois de l‘hospitalité. Paris: Gallimard, 1965. P. 227.

Estar só, estar solitário

Quando se está só, pensa-se. 

Pensar, aqui, é manter um diálogo consigo mesmo, com o outro-eu. Quando já não podemos amar esse outro-eu, com quem no pensamento dialogamos, então se está solitário e já não se pensa mais.
 
Na solidão não há amor de si e também não há pensamento.

Solidão é antes de tudo o descuidado consigo mesmo e se vincula ao embotamento do pensamento. Por isso, não estar solitário é uma condição da amizade.

Ética como exercício refletido do corpo

Seria possível um ascetismo sem qualquer disciplina do corpo? A indisciplina radical do corpo – la débauche – não é ela mesma um ascetismo?

Uma vida humana

Imagine uma vida como essa: um corpo ao qual são providas todas as suas carências e não apenas isso, um corpo que não precisa se esforçar, nem mesmo caminhar, para obter os prazeres e para se afastar dos males, pois uma perfeita providência ou império se ocupa disso para ele. Um corpo de gozo dosado, sem desmedidas, integral, sem desequilíbrio, e constante, sem grandes variações de intensidade. Um corpo feliz. Um corpo bebê.

Seria essa uma vida humana? Leiamos Spinoza:

Quando então dissemos tal império ótimo ser, onde humanos em concórdia [a] vida passam, [uma] vida humana inteligo não aquela [que se define] somente pela circulação do sangue e outras coisas que a todos os animais são comuns, mas aquela que se define principalmente pela razão e pela verdadeira virtude e vida da alma.

SPINOZA, Benedictus de. Tractatus Politicus [1677]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677. Cap. II, §5. P. 290.

A ênfase ao texto foi dada por Laurent Bove (Espinosa e a psicologia Social: Ensaios de ontologia política e antropogenêse). Belo Horizonte: Autêntica, 2010. P. 103.

Para pensar a coisa

A coisa; imaginá-la, entendê-la, ou inteligi-la.

O pensamento-imaginação envolve apenas algo da coisa pensada como sua causa, mas não só a coisa toda adequadamente, pois esse tipo de pensamento é uma ideia que corresponde à afecção da coisa no nosso corpo, precisamente à imagem da coisa no corpo, e portanto envolve muito do corpo próprio. Exatamente como a fotografia envolve algo do objeto, mas muito do próprio suporte fotográfico.

O pensamento-entendimento tem uma ideia adequada da coisa, mas geral. Quer dizer, não alcança a coisa na sua singularidade, pois pensa a coisa existente a partir daquilo que ela tem de comum com nosso corpo. Assim, quanto mais complexo for nosso corpo, tanto mais traços comuns ele pode ter com as coisas, e tanto mais ele as pode entender.

O pensamento-intelecto, finalmente, intelige. Ele não requer a imagem nem o comum da coisa no nosso corpo. Ele pode alcançar a ideia singular adequada da coisa na sua essência singular só com o seu próprio exercício, sem nenhum suporte ou ponto de partida outro do que a sua própria efetividade ou existência. Sem envolver a imagem ou o comum da coisa no corpo próprio, esse tipo de pensamento é impessoal, eterno e pode ser dito divino.

Meta-homonímia

Entre mangas, manga (a peça de camisa que envolve o braço) e manga (a fruta), uma homonímia.
Entre fé (amor e obediência a Deus) e fé (confiança no amigo), uma homonímia.
Entre a homonímia das mangas e a homonímia das fés, uma homonímia de homonímias.

Conexo

Pequenas lampejos do antigo império hebreu [faíscam] no contato afetuoso com o império suíço – aquela mesma espécie de felicidade enclausurada.

O pensamento por contrastes

“Polemos de tudo é pai e rei”, até do pensamento – diz essa voz que ressoa através dos séculos. Pensar por contraste, ao negar um que é posto. O positivo e o negativo se desdobram de sua relação conflituosa, que é primeira logicamente.

Contudo, ao pensarmos por negação, ficamos ligados ao pensamento que negamos, se é a partir do posto que o antiposto se mostra dialeticamente.

Não é muito diferente de negar pensar por comparação. A comparação permite a intelecção do um pelo jogo de mini-identidades e minidiferenças.

Porém, nisso também, ficamos tributários, por exemplo, do Brasil, ao pensarmos a Suíça, ou de João, ao pensarmos Jorge, por comparação. Não inteligimos Jorge por si mesmo, mas através de João.

Será possível um pensamento que tenha a si mesmo como fundamento e não o seu contrário? Um pensamento absolutamente afirmativo? Uma absoluta metafísica?

Mesmo o pensado descrevente de um objeto tem o objeto (que aparentemente é um outro em relação ao pensamento) como ponto de embate. Jorge-pensado tem o objeto-Jorge como sua negação-afirmação. O pensamento deve aí seu critério a seu objeto.

O pensamento absolutamente afirmativo – o pensamento sem amarras – a mais pura metafísica – deve então encontrar em si mesmo seu fundamento – deve subverter toda a crítica dessa possibilidade de autofundamentação.

Jorge e Suíça não podem ser o critério de Jorge-Suíça-pensados, mas devem ter no pensamento (e na imaginação como parte desse pensamento) o critério do seu modo de ser.

O interessante é que o pensamento-imaginação também envolve algo do objeto, imaginado como sua causa...

Conta-gotas

A informaçãoBlog é um pensamento de conta-gotas. Além do aspecto fragmentado, pingam gotas de líquidos essencialmente diferentes, sequer formam uma mistura homogênea.

Parisienses III

In gestu nonnulli putant idem vitium inesse, quum aliud voce, aliud nutu vel manu demonstratur*.
Alguns opinam estar no gesto o vício mesmo, quando uma coisa é mostrada pela voz e outra por movimento de cabeça ou pela mão.
Nessa frase de Quintiliano, percebe-se a fratura do sujeito, os contrários no sujeito que se mostram um no gesto outro na voz.

Mas essa fratura (dizer uma coisa ao mesmo tempo que se a nega pelo gesto) não é uma hipocrisia. Quintiliano a atribui a um vício do gesto (diante da virtude da voz).

Deleuze a comenta assim: Obra de Klossowski: um paralelismo do corpo e da linguagem, ou melhor, uma reflexão do corpo na linguagem e da linguagem no corpo.O (raisonnement) raciocínio (para Klossowski de essência teológica) é operação da linguagem, mas a pantomima (essencialmente perversa) é operação do corpo.

(*) Quintiliano, Instituição oratória, I, v, 10. Apud: KLOSSOWSKI, Pierre. Les lois de l‘hospitalié. Paris: Gallimard, 1965. P. 14.

Parisienses II


Toda imagem se forma entre o branco e o preto; ela é essencialmente analógica.

Link

Parisienses I

Nas nossas errâncias (no exercício dos nossos erros) sabemos que mesmo na resistência contribuímos com os “safados” :

“[...] moi je vis et je crève pour la beauté et donc pour la cause des salopards”*
“[...] eu vivo e morro pela beleza, e portanto pela causa dos safados”

(*) KLOSSOWSKI, Pierre. Les lois de l‘hospitalité. Paris: Gallimard, 1965. P. 46.

As vantagens da corte

A tirania funciona por divisões. Dividir para imperar. Dividir e dividir até chegar ao átomo.

A atomização tirânica, porém, afeta primeiro e mais eficazmente aqueles que se encontram mais próximos ao tirano. Quanto mais amigo do tirano se é, mais isolado se fica dos outros amigos do tirano. Por isso, muitas vezes, a vida é melhor entre a plebe do que na corte.

Viver a mera vida

Três carpas grandes viviam na água suja de uma pequena bacia. Devido à falta de espaço, aos esbarrões inevitáveis e ao seu movimento sinuoso, frequentemente acontecia uma ou outra delas ter a cabeça fora d’água por um curto momento, num intervalo de asfixia, antes de poder mergulhar novamente.

Ao lado, havia uma bacia muito maior, uma grande piscina de águas claras e vazia. Mas talvez a água estivesse clorada, e eu não sabia se as carpas iriam suportar o cloro. Mesmo sem saber, decidi-me por jogá-las lá, com esse pensamento em mente – pensamento que já vai se tornando um chavão – : melhor morrer do que simplesmente viver a mera vida, uma vida que não merece ser vivida.

Contudo era eu decidindo pelos peixes.

Convite à temeridade

A divisa kantiana para os indivíduos do seu tempo:

Ouse fazer uso de sua inteligência!

Atualmente esta divisa assumiria um viés negativo:

Ouse não fazer uso da inteligência do outro! (por exemplo: ouse não usar da informática!)

Problemas filosóficos

Diz-se (contra a filosofia) que a filosofia inventa seus próprios problemas.

Esse parece ser um grande argumento para acalmar a efervescência do pensamento. Mas, pense e veja, os problemas, quem e em que lugar não se os inventa?

O acidente x está para a racionalidade x, assim como...

Tales caiu no buraco. Foucault foi atropelado (em umas destas ruas). Eu perdi meu casaco de frio (só isso).

Por uma ética da leitura: em uma frase apenas

Em alguma das folhas das Palmeiras selvagens, Faulkner rabiscou: – o dinheiro só fala uma língua. Era isso, em uma frase, o que quisemos dizer quando falamos de dinheiro.

Definição de uma vida

Uma vida é o nome da duração de uma existência, da existência de um corpo que, enquanto dura, deseja (e não pode desejar o contrário) afirmar essa existência, ou seja, deseja a si mesmo na relação com outros corpos.

Não precisamos apelar, nesta definição de uma vida, para categorias biológicas. Então uma vida já não é um critério de recorte entre os seres (vivos e não-vivos). Todo corpo (ou alma) vive enquanto dura. Todo o ser vive.

Um corpo, sendo ao mesmo tempo uma alma, pode não ser o objeto da biologia.

Faço um convite para que retiremos nossas lentes biológicas, ao fazermos a leitura dos dois textos seguintes.

O de Dickens (Our mutual friend, cap. III)...
Ninguém tem a mínima consideração pelo homem [trata-se de Riderhood]: com todos eles, ele tem sido objeto de repúdio, suspeita e aversão; mas a fagulha da vida dentro dele é curiosamente separável dele mesmo, e eles têm profundo interesse nisso, provavelmente porque aquilo é vida, e eles estão vivos e devem morrer.

Veja! Um sinal de vida! Um indubitável sinal de vida! A fagulha pode queimar-se e exaurir-se, ou ela pode inflamar-se e expandir-se, mas veja! Os quatro rudes comparsas, vendo-a, derramam lágrimas. Nem Riderhood neste mundo nem Riderhood no outro poderiam arrancar lágrimas deles; mas uma alma humana combatente, entre os dois, pode fazer isso facilmente.

... e este de Faulkner (Palmeiras selvagens, p. 155):
[...] falando com ninguém tanto quanto o grito de um coelho moribundo não se dirige a nenhum ouvido mortal, mas é sim uma acusação a toda a vida, e à sua loucura e sofrimento, à sua infinita capacidade de loucura e dor, que parece ser sua única imortalidade [...]

A biologia aqui não nos faz falta.

Luta por reconhecimento

Pierre Hassner considera a luta por reconhecimento uma das formas de expressão da revolta árabe.

Entretanto, gostaria de considerar que a luta por reconhecimento envolve também uma rendição, um render-se.

Na luta por reconhecimento é preciso distinguir dois movimentos: um pela identidade e um por direitos iguais.

Quem luta por reconhecimento diz duas coisas: _Quero ser reconhecido. _Quero ter direitos.

Estas duas vontades se articulam assim: _Eu sou ISTO e enquanto tal quero ter direitos.

ISTO é uma variável, cujo lugar é ocupado por diferentes gêneros ou identidades: mulher, negro, homossexual, nordestino, proletário, estrangeiro, judeu, árabe, protestante, doente mental...

_Eu sou ISTO e, enquanto sou assim, quero ser cidadão (ter meu direito reconhecido por outros cidadãos).

Cidadão-isto, cidadão-aquilo, cidadão-mulher, cidadão-negro etc.

As diversas lutas por reconhecimento vão tornando mais geral a categoria do cidadão, que vai se tornando pouco a pouco mais abrangente, até idealmente abrangir a todos os indivíduos de um grupo (até mesmo eventualmente os não-humanos).

A cidadania vai passando por cima das diferenças.

Cidadão = homem = mulher = branco = negro = etc.

E, assim, o poder soberano, o poder que se exerce entre os seres enquanto são cidadãos e não-cidadãos, neutraliza os recortes dicotômicos sim-não feitos por outros tipos de poder.

O poder soberano parece, a partir disso que se disse, ter uma dificuldade para fazer por si mesmo o recorte entre o cidadão e o não-cidadão. Portanto, para fazê-lo, apela para outros regimes, por exemplo, os disciplinares, os biopolíticos, os teológicos, que funcionam por normas, através das normas, e não por ou através dos direitos.

O recorte (e a exclusão) do não-cidadão parece constituir a essência mesma do poder soberano. Mas, se esse recorte provém mesmo de outros regimes de poder, então o poder soberano parece ser indissociável deles. No seio do poder soberano, na sua essência, parece vigorar um outro tipo de poder, não um regime de poder específico, como o biopolítico, mas um regime qualquer que seja capaz de dizer a norma da exclusão.

O cidadão incluído é definido pela exclusão do não-cidadão. Dessa forma, o não-cidadão permanece incluído no poder soberano. Pois, o recorte é constitutivo do poder soberano.
O recorte, diz-se, procede de uma decisão arbitrária do soberano. De tal modo que a decisão, o poder de decisão é o que caracteriza o soberano.

Esta decisão não é, porém, o índice do livre-arbítrio do soberano se ela se vincula às normas estabelecidas por outros regimes sim-não: os disciplinares que separam disciplinados de não-disciplinados, os biopolíticos que separam os puros dos impuros, os ecopolíticos que separam uma classe econômica de outras ou os teológicos que separam os fiéis dos infiéis.

O poder soberano é atravessado por esses regimes de exclusão para estabelecer sua própria exclusividade, ao transformar as normas desses regimes em leis e direitos.

A identidade, a variável do “eu sou ISTO”, isto-mulher, isto-negro ou isto-árabe, é definida primeiramente nos regimes de exclusão por normas. São esses regimes que dão a base ideológica ou material para a decisão do soberano.

Por isso, dizer “eu sou ISTO” é primeiro uma rendição e somente depois uma luta. Significa primeiro uma rendição nos planos dos regimes de exclusão por normas: _eu aceito ser ISTO que você diz que eu sou. E vão, com a rendição, primeiro reforçar estes regimes, para então sustentar a luta no plano da soberania.

_Enquanto sou ISTO mesmo que você diz que eu sou (um outro em relação a você), eu luto, eu exijo ser reconhecido como um cidadão igual a você no plano da soberania (embora no plano dos regimes das normas, eu permaneça sendo diferente, anormal).

Quando a luta por reconhecimento triunfa e aos anormais são atribuídos direitos, o poder soberano neutraliza os regimes das normas. Entretanto, ao mesmo tempo, encerra os cidadãos em suas identidades.

A identidade, nesse jogo dos regimes das normas, é definida pelo outro. E assim permaneço preso à minha própria alteridade, pois é o outro que se define e me define a partir de um recorte que não é estabelecido por mim.

A identidade é apenas uma figura, uma determinação externa do meu ser, que não me é essencial, mas antes o limita, ao determiná-lo. Lutar pelos direitos de uma identidade é primeiro capitular a uma forma que me é ditada pelo outro.

Ele será um Desaparecido

– Amanhã?!

– Sim, estou indo viajar amanhã.

E invariavelmente eles fazem uma cara de forte surpresa e comoção, me abraçam comovidamente, como seu eu fosse morrer no dia seguinte, talvez porque pensem ele vai para outro mundo.

Enxertos, superposições, bifurcações


As questões se enxertam umas nas outras pelas pontas, como sinapses. Ideias se buscam umas às outras como ímãs, movidas por uma força ou um esforço inerentes a elas próprias. Não há vazio no pensamento. O isolamento da ideia é uma artificialidade.

A cada vez que penso, por exemplo, pela força mesma do pensar, penso em camadas que se superpõem em paralelismos ressonantes, penso em cordas que se coligam em teias, em rios que se bifurcam em deltas, a tal ponto que, para me concentrar na efetividade de uma só ideia, devo escorar contra a superposição, prolongar o encordoamento para me contrapor aos saltos, ladear o rio com diques para evitar a enchente.

Como se houvesse uma espontaneidade do pensamento e a atividade do pensante fosse apenas a de contenção, bloqueio. Como se para pensar fosse preciso deixar de pensar.

Sobre as fontes

A sabedoria dispersa pela trama do real afirma: “o amor é cego”. Com isso se quer dizer que quem ama não enxerga os defeitos e os vícios do amado.

Mas também se diz com frequência: “não sei o que ele viu nela”. E aqui o amante não é cego, ao contrário, ele vê algo que ninguém mais vê.

Cegueira ou visão acentuada?

O “amor é cego” e “não sei o que ele viu nela” são duas proposições que se extraem da mesma fonte, a linguagem cotidiana. Se elas dizem coisas diferentes, como podemos, contra a filosofia, pensar somente a partir dela? Como devemos limitar nosso pensamento ao que ela pode nos anunciar?

Experiências negativas

Falamos, no uso linguagem e da vida, de experiências negativas.

Contudo, será possível fazer uma experiência negativa, se na experiência se dá apenas o positivo?

E se for assim, se só há experiências positivas, então podemos falar de algo que não podemos pensar (oximoros). Mas, e o inverso? Podemos pensar o que não podemos falar, mesmo com toda a liberdade de expressão?

Lugar-vertigem

Às vezes tenho a vertiginosa impressão de me dirigir por necessidade para um lugar do qual todos por necessidade querem vertiginosamente sair.

Isto é ficção?

Normalmente a ficção começa quando se levantam as cortinas, às vezes porém quando elas se abaixam:
[...] quando posso me esconder atrás de meu jaleco branco novamente, puxando minha velha rotina sobre a cabeça e o rosto, como fazem os negros com o cobertor quando vão para a cama*.
Talvez também por isso seja difícil separar o real do imaginário (há outras razões que dizem respeito à estrutura da nossa existência).

(*) FAULKNER, William. Palmeiras selvagens. Trad. Newton Goldman e Rodrigo Lacerda. São Paulo: Cosac Naify, 2003 [1939]. P. 48.

Entregues

Quando nossa meta era justamente a calmaria, eis que uma enorme onda toma o mar da nossa vida.

Pois, por causas externas somos sacudidos de um lado para o outro, como ondas do mar por ventos contrários.

Viajar o corpo

A viagem se iniciava quando eu realmente começava a viajar com o pé e o corpo. Viajar então parecia ser algo que dizia respeito a corpo e a variações do dado sensível.

Agora, tenho a impressão de que, primeiro, sempre é preciso checar alguma coisa, verificar e conhecer mapas, locais, tarifas, ver algumas fotos, agendar visitas, percursos, como se a viagem começasse toda antes do deslocamento.

Isso quer dizer que a viagem deixou de dizer respeito a corpo, já que sua preparação nos acostuma com o trajeto, e diminui, assim, consideravelmente, a variação do dado sensível? Isso quer dizer que a viagem se tornou mais espiritual? Ou que, apenas, de certa forma, deixou de ser viagem?

Da forma de um livro

Só os livros sem apresentação, sem introdução, sem prefácio iniciam-se no seu próprio início.

No início

O início não é o que se inicia, mas apenas a superfície em que o que se inicia se insinua.

Por uma ética da leitura: uma prática (ascética)

Proposta de leitura: iniciar a ler o livro, ler 3 ou 4 páginas, iniciar novamente desde o início, ler 3 ou 4 capítulos, iniciar novamente, ler 7, 8 páginas, iniciar novamente...

Por uma ética da leitura

Ao começar a ler um livro, pense que o próprio livro, ao ser escrito, teve vários outros começos, antes do definitivo.

Tratar os animais como animais

Tratar os animais como animais: _ saio de casa sem me despedir do meu gato.

Não penso que ele possa compreender o que seja uma despedida, nem se ofender com o desaparecimento não anunciado de alguém que ele ama.

Aprender a não cuidar dos animais como se fossem humanos, para não passar com facilidade a tratar os seres humanos como animais.

Diferenças entre razão suficiente e causa

Para uma concepção de causalidade, o sujeito do livre-arbítrio, o indivíduo que pode, como que desligado de todo o resto, iniciar um novo ato no mundo, a partir só da sua decisão, tal sujeito é banido.

Pode estar nisso uma diferença entre razão suficiente e causa.

Para quem ama a ideia de livre-arbítrio e a consequente possibilidade de culpabilização estrita do sujeito da ação, é preciso falar de razões suficientes e não de causas.

As razões suficientes seriam os motivos que levaram o sujeito, em toda a sua liberdade, numa certa situação, a agir de certa forma e não de outra (por outras razões, na mesma situação, ele poderia também ter optado por não agir assim). E esses motivos seriam suficientes – nada ficaria faltando – para que compreendêssemos o por quê, o sentido de sua ação.

Mas, para quem pensa a partir da impensável (em termos absolutos) causalidade, razão e causa podem dizer o mesmo. Assim, Spinoza não diferencia causa de razão:
De qualquer coisa deve ser assinalada a causa, ou seja, a razão, tanto por que existe, como por que não existe. (E1p11, primeira demonstração alternativa)
Outra diferença entre razão suficiente e causa pode ser alcançada com referência à finalidade. A razão suficiente envolveria uma finalidade, um fim para a ação. A causalidade absoluta aboliria a finalidade (todo fim pré-estabelecido é imaginário).

Novamente as razões suficientes

Ler Kafka sempre me dá a pensar nas razões suficientes.

As situações com que se deparam seus personagens são dificilmente explicáveis em termos de razões suficientes. Ao mesmo tempo, porém, as razões parecem estar ali, por baixo dos acontecimentos, pouco óbvias, mas como se pudessem ser desenterradas. Ficamos à procura da coerência dessas razões, como se pudéssemos costurá-la, essa coerência, por trás do tecido texto e das razões mais aparentes.

Terríveis ideias

Ideias como estas, sobre identidade e diferença, me passam pela cabeça:

_ A mesma preguiça, no velho é deprimente, no jovem é revoltante.

_ O ‘bio-’ do qual se escreve na biografia é diferente do ‘bio-’ que se estuda na biologia.

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Que incrível! Um simples trema sobre a letra u – ü – tornou-se sinal de uma complexa vetustez.

Reformas

O sinal do trema – ¨ – desapareceu da língua portuguesa com a última reforma ortográfica. Mas a palavra ‘trema’, que é o sinal desse sinal, não.

Nenhuma reforma alcança ser totalmente ortoefetiva.

Pontes entre planos intelectuais

“Dispositivo” de Foucault como configuração coletiva do “cupiditas” (desejo) de Spinoza.

Em Spinoza: de “cupiditas” (desejo) a “conatus” (esforço).

Jihad” de Abedi (esforço para agradar a Deus) como pré-configuração e acolhimento do “conatus” em um certo “dispositivo”.

Hedonismo

O hedonismo é apenas aparentemente a razão de nossa sociedade (ratio societatis).

Afinal, vivemos juntos para o prazer? Essa questão tem dois sentidos:

(1) Nos juntamos para obter prazer dessa junção? Acho que não, não fundamentalmente (a sociedade também é causa de mal-estar).

(2) Nos juntamos para obter prazer com objetos que são fruto dessa junção, e que sem ela não viriam a ser? Apenas parcialmente. Não há como que duas etapas: junção e, depois, produção de objetos de prazer. Tudo acontece de uma só vez. De modo que a junção já é objetiva, já toma a forma do objeto que ela produz. Por isso, penso: nossa ratio societatis é objetal, dispositiva, se funda no objeto social (produto-mercadoria) e não no prazer.

Nossa ratio societatis dispõe e constitui, apresenta e impinge as formas de prazer que podemos gozar.

Engano com a pureza

Acontece-nos debater com nossa própria vida, por ela não ser só poesia, só beleza, só inteligência. Acontece-nos desejar a pureza como o mais desejável. Desejar só a beleza, a poesia pura, as ideias claras e distintas sozinhas, sem nenhuma mancha, sem nenhum atrito, sem nenhuma confusão, sem nada ao lado.

Mas não há, para nós, não haverá jamais, a beleza sem feiúra, a clareza sem as manchas das cores, a pureza sem mistura. Ao menos não podemos perceber, ou ser conscientes de um sem o outro. Não podemos apreciar o infinitamente puro sem imaginá-lo e misturá-lo com tantas outras coisas, nem o celestial absoluto sem estarmos vivos, nem o eterno sem durarmos.

Embora, de certa maneira, na verdade, tudo seja puro e perfeito, para nós, não pode haver o puro sem o impuro, o perfeito sem mistura de imperfeição.

Intimidade

O que se chama de intimidade tem diversos limites (extensíveis ou ao contrário compressíveis).

A intimidade é como um círculo que se retrai ou se esparrama na relação que mantém com o que não pertence a si mesma, a esta intimidade mesma.

Entretanto, diferentemente do círculo e dos círculos circunscritos, a intimidade não tem um centro, sequer encerra em si e por si uma área de continuidade.

Na relação com o que não lhe é íntimo, a intimidade se mostra descontínua, fragmentada, múltipla.

O castelo

Dada a definição de castelo como o que domina, controla ou conduz, do alto e de dentro, nossas vidas, determinando nosso desejo, poderíamos apresentar-lhe incontáveis sinônimos, ou seja, substituir este signo por incontáveis outros, por exemplo: Deus, a morte, o sexo, o gene, o pai, o Estado, a instituição, a mercadoria, o espetáculo...

Assim castelo pode ser considerada uma função de dois valores: verdadeiro (V) ou falso (F).

C(x) = V, se somente se x, a variável questionada, adequa-se à definição de castelo, isto é, se somente se x domina, controla...; senão, C(x) = F.

Castelo como uma função é então uma relação entre um domínio de variáveis e um conjunto-imagem de dois elementos apenas.

Mas, mudemos um pouco a natureza deste conjunto-imagem. Entre V e F, coloquemos uma infinidade de elementos que, por definição, tenham um pouco de V e um pouco também de F, em infinitas proporções ou razões.

Assim se diria que C(x) –> V, se somente se x tende mais a dominar, controlar... do que tende a não dominar, a não controlar... nossas vidas...; senão, C(x) –> F.

O pensamento conceitual tende a trabalhar com o operador funcional [=], o princípio do terceiro excluído. O pensamento espiritual, o pensamento por aproximações e transformações de estilo ético, tende ao operador funcional [–>].

Leibniz e a razão suficiente

Leibniz, sobre a razão suficiente, diz algo muito próximo àquilo que dissemos, embora de uma forma como que inversa*.

Ele diz, como nós, que todo fato tem uma razão suficiente. E que, para um fato ser considerado verdadeiro, há que estar lá (adesse) uma razão suficiente aposta ou, no mínimo, suposta.

Contudo, ele não vai, como nós gostaríamos de ir, da razão suficiente ao fato, mas do fato à razão (e nisso ele entra no castelo kafkiano).

(*) Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Monadología: Edición trilingüe. Trad. Julian Velarde. Olviedo: Pentalfa, 1981. §32. P. 102.

Razões óbvias, razões ocultas

Coisas sistemáticas, pressupõe-se, têm razões suficientes evidentes, por isso, não seria preciso mencioná-las junto com as coisas.

Assim, os sistemas, uma vez ou outra, aproveitam-se dessa suposta obviedade para nos ocultar a razão da coisa.

[Isso é um pouco do jogo de Kafka]

Serviços supérfluos

Há sempre uma razão suficiente para explicar o que acontece. Entretanto, ela nos é, na maioria das vezes, se não em todas, oculta.

Muitas vezes, então, os sistemas nos apresentam as coisas sem nos dar, ao mesmo tempo, a razão que as faz ser como são. Esse serviço lhes parece desnecessário.

Fruto do acaso

– Ocasião para um pequeno desespero – ocorreu-lhe – se estivesse aqui por acaso e não intencionalmente*.

Isso não quer dizer que sempre nos sentimos desesperados se tomamos a ocasião presente como fruto do acaso e não como fruto de nossa intenção; mas que, em certas ocasiões, mas em outras não, nos desesperamos se imaginamos que isso que vivemos é fruto do acaso e não da nossa vontade.


(*) KAFKA, Franz. O castelo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1922]. P. 21.

Seu tema era a liberdade

Numa homenagem, Foucault disse o seguinte a respeito de um amigo seu: “Como todo verdadeiro filósofo, isso do que ele tratava era a liberdade”*.

Para Foucault, a filosofia não é uma tentativa de aprisionar o pensamento em conceitos – isso seria a falsa filosofia. Pois a liberdade não é um vazio, um campo vazio. É um campo cheio de coisas, e no caso do pensamento filosófico, um campo cheio de conceitos. Criá-los e lidar com eles é praticar a liberdade do pensamento.


(*) FOUCAULT, Michel. Vivre autrement le temps. Texte 268 [1979]. In: Dits et écrits. Vol. II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001 [1994]. P. 789.

Solidão e política III

Se não podemos inteligir, ao menos podemos observar que tendemos a sentir os mesmos sentimentos que imaginamos sentir os nossos próximos. Sofremos, ou tendemos ao sofrimento, quando vemos o outro sofrer, entusiasmamo-nos quando acreditamos que alguém que consideramos ser como nós se entusiasma etc.*

O desejo de solidão tem a ver também com essa tendência à imitação afetiva. Quando não desejamos mais ser afetados pelas mesmas alegrias e tristezas, amores e ódios, esperanças e medos que afetam nossos semelhantes (talvez porque consideremos seus afetos por demais vulgares... e gostaríamos de nos elevar acima deles), a solidão, o isolamento, a retirada da política é uma tática disponível.

Uma outra tática (mas essa está menos imediatamente disponível e requer uma formação), para não sermos afetados dos mesmos afetos (desejos, alegrias, tristezas etc.) que afetam os que nos rodeiam, é não mais considerá-los como nossos semelhantes. Assim, mesmo permanecendo entre eles, porque nos consideramos diferentes deles, não imitaremos seus afetos.

As duas táticas envolvem isolamento. Na primeira, trata-se de um isolamento corporal, um afastamento físico. Na segunda, o isolamento é caracteristicamente espiritual, uma consideração imaginária de superioridade, de inferioridade, de diferença.

Na primeira tática, a solidão rompe com a política. Na segunda, a solidão é justamente a condição de possibilidade da forma imperialista da política (e da relação imperador-imperados). Pois, aquilo que menos podemos suportar é receber comandos da parte de alguém que consideramos nosso semelhante, de alguém que estimamos ser igual a nós (nesse caso, todos desejam imperar, uns sobre os outros).

(*) Cf. SPINOZA, Benedictus de. Ethica-Ética: edição bilingue latim-português. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 [1675]. Parte III, proposição 27.

Historiografia do acontecimento

Uma explicação histórica convincente deve mostrar o acontecimento passado como a única alternativa possível para uma determinada situação, na qual ele tem sua origem. Isso quer dizer que o acontecimento tem que se mostrar, para nós também, inteiramente determinado pela situação, ou seja, que suas causas sejam inteiramente conhecidas na sua determinação para produzir o acontecimento.

Isso faria do acontecimento um evento e mostraria a impossibilidade de uma ciência do acontecimento enquanto tal?

Ou devemos inteligir a historiografia do acontecimento como uma crítica do evento e mostrar que somos, enquanto seres humanos, incapazes de apreender de modo total a causalidade na história?

Solidão e política II

A única forma de amizade aceitável na política é a de amigos que governem a si mesmos, a de amigos rivais (se isso ainda pode ser chamado de amizade).

O personalismo na política baseia-se em relações de amizade dependente (se isso ainda pode ser chamado de amizade).

Porém, um mecanismo, um formalismo político que impeça relações de amizade, também neutralizaria a política.

Solidão e política I

Compreendo que, em certos momentos, certos seres humanos se voltem para a solidão, deixando a política, como em outros, ao contrário, se voltem para a política, deixando a solidão.

Internet política

Internet: uma maravilhosa fonte (ou melhor: um maravilhoso campo) de informação e desinformação – campo ideal para a informaçãoBLOG. Atenção, porém, esse campo não é totalmente abstrato e livre (como a extensão cartesiana, ali disposta para acolher qualquer corpo). Ele já é um campo-corpo, já é constituído sob tensão.

Uma inscrição na internet não é portanto um traço no vazio, mas uma superposição, um traço efetuado sobre outros traçados. Na internet também, trata-se de palimpsesto.

Spinoza, por exemplo, negava a abstração da extensão cartesiana. Para Spinoza, não há vazio, não há espaço sem corpo, assim como não há pensamento vazio, pensamento sem ideia.

A música popular do vizinho

O termo genérico “música popular” encobre pelo menos duas formas distintas: a música de vizinhança (feita por e para vizinhos) e a música feita para a massa social indistinta com a intermediação dos canais espetaculares de comunicação (num contexto em que a vizinhança perde seu sentido e aplicação).

É terrível quando, ocasionalmente, essas duas formas se misturam: quando os vizinhos, eles mesmos, se expõem como intrusivos veículos da forma espetacular da música popular.

O dever do artista de viver para si mesmo

Proust sobre a amizade:
E porém eu não me enganava ao sacrificar os prazeres não somente da mundanidade, mas da amizade, àquele de passar o dia todo neste jardim [de rosas, ou seja, entre as jovens moças, como o vento, como o jardineiro entre as rosas. A metáfora do jardim é construída duas páginas atrás]. Os seres que têm a possibilidade disso [refere-se aqui à possibilidade do sacrifício da amizade e não à possibilidade de viver no jardim] – é verdade, estes são os artistas [e Proust estava convencido de que não se tornaria um deles, mas mesmo assim...] – têm também o dever de viver para si mesmos; ora a amizade é para eles uma dispensa deste dever, uma abdicação de si.
Mais adiante, na mesma página, Proust põe em analogia o dever (o dever-ser) do artista e o devir (o vir-a-ser) de uma árvore:
[Os artistas são] como árvores que retiram de sua própria seiva o nó seguinte do seu ramo, o andar superior de sua compleição*.
Os artistas são e devem ser como as árvores. É preciso, então, primeiramente, inteligir que o ‘dever de viver para si mesmo’ do tipo humano artista, de alguma forma, corresponde ao processo natural, não deontológico de crescimento de uma árvore, que retira de si mesma o alimento, a seiva que a faz ir mais alto.

Ora, o devir-árvore não é um dever da árvore. A árvore não possui deveres (no sentido de um dever de ser o que ela eventualmente não é na sua existência). Mas também o artista não é uma árvore, não se imagina preso como ela à sua essência natural em estreita vinculação com as suas circunstâncias existenciais.

O artista (devido à sua complexidade totalmente humana e ainda assim singular e diferente dos outros tipos humanos) tem a possibilidade de exercer sua liberdade (mesmo que isso seja apenas possível na sua imaginação) e sacrificar os prazeres da amizade a coisas mais relevantes.

A essência do artista é complexa e ele pode (novamente, ao menos imaginariamente) determiná-la num sentido ou em outro, e por isso se pode falar de um dever do artista. O artista pode pensar seu devir como um dever (imaginação também é pensamento).

Assim, de fato, o ‘dever de viver para si mesmo’ do artista não é exatamente um puro dever (em pura oposição à existência), mas um dever-devir.

O artista se conduz – imaginariamente, ele pode e deve se conduzir – segundo um princípio de existir que conjuga dever e devir, que não se pensa apenas em oposição à existência, às coisas tais como elas existem, como o dever-ser, mas também que afirma o seu vir-a-ser, como o devir.

A analogia do dever do artista com o devir da árvore nos revela ainda uma segunda faceta do dever do artista de viver para si mesmo. O devir da árvore não é para si, ele se guia por algo que extrapola o si da árvore e a eleva acima de si mesma. O elevar-se da árvore é mais urgente, premente que o si da árvore. O elevar-se é indissociável do si da árvore, mas não é o si árvore. Assim também, análogo ao devir da árvore, o dever-devir do artista não tem como complemento um objeto indireto pessoal reflexivo, isto é, não é um dever que encontra seu fundamento num objeto indireto pessoal – o si do para si – que lhe é como um fim.

O ‘para si mesmo’ na expressão do dever do artista pode ser suprimido (isso não implica, muito pelo contrário, o sacrifício de si): o ‘dever de viver para si mesmo’ é simplesmente o ‘dever de viver’. Este dever de viver, porém, não é o de simplesmente viver uma vida, viver a todo custo, o dever de perseverar na existência, mas é o dever de viver a vida de artista – este é o dever da altura.

A amizade para Proust não é o bem supremo. O bem supremo do artista é o elevar-se, é a altura. E a altura é um bem em si mesma e para si mesma – não para alguém que usufrua dela. A altura é o dever-devir da vida do artista-árvore.


(*) PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 468.

O açougue do 0rientalismo

Até que ponto eu e você somos orientais por nossa incapacidade constitutiva, fundamental, inata, biológica para a objetividade racional, para o raciocínio objetivo? Até que ponto somos orientais à medida que não podemos evitar a mistura de nossa imaginação com nossas intuições intelectuais? Até que ponto somos orientais à medida que não alcançamos o objeto na sua pureza, sem vesti-lo com nossa própria subjetividade?

Um tipo

O que você diria daquele tipo de indivíduo que nunca tem a força para afirmar explicitamente a si mesmo diante dos outros – isso seria pôr em risco toda a sua fraqueza –, mas que secretamente espera (e consideraria isso o mais justo) ser afirmado ou aclamado pelo outros como seu guia e líder por direito?

Orientalismo brasileiro

Aparentemente, as únicas linhas de pensamento que dispomos para refletir sobre nós mesmos são as linhas desenhadas pelo Ocidente. Isso nos faz ocidentais?

A insustentável leveza das ideias

Spinoza pensa indubitavelmente que a ordem das ideias é idêntica à ordem das coisas. Costumo fazer a experiência exatamente inversa: lidar com as coisas parece-me tão distinto de lidar com as ideias, sinto as coisas tão pesadas, ásperas, desencaixadas, sangrentas. Porém, devido àquela ausência de dúvida, o que costumo experimenciar não pode ser diferente do que Spinoza pensa.

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O açougue cria a carne.

Desejo de...

Francis Bacon

Dito de outro modo: não há um desejo de carne prêt-à-porter, mas do que a abre, recorta, expõe, anuncia. Há desejo de açougue.

Exemplos: Francis Bacon e o açougue do orientalismo.

O inimigo infiltrado

O tipo do inimigo infiltrado (aparentemente normal, assimilado, e por isso invisível, imperceptível, mas essencialmente estranho, bizarro, outro) atemoriza o tirano que o vislumbra em potência em cada um dos seus aduladores mais próximos.

Este tipo é recorrente na desconfiança (espontânea ou induzida) que vige nos mais diversos dispositivos de poder (em relação ao judeu, na Alemanha de antes da Segunda Guerra, ao comunista, durante a Guerra Fria, ou ainda atualmente ao terrorista islâmico nacional, ao nosso “paquistanês”).

Outro exemplo de inimigo inflitradoLane no Egito (na perspectiva de Said*): “O seu poder era ter vivido entre eles como um falante nativo, por assim dizer, e também como um escritor secreto”.

(*) SAID, Edward W.. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Einchenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [1978]. P. 224.

Orient(ação)

O Oriente não existe. Seu ser recua a cada passo que damos em sua direção. O Oriente não existe, quer dizer, não existe além daqui. Ele é pura presença não substancial. É uma distância presente aqui mesmo, ao nosso pé.

Os materialistas, por sua vez, dizem: o Oriente é o nome de uma troca material.

Agora já não sei se, ao falar do Oriente, eu mesmo estou de alguma forma coagido a dizer o que digo.

Características essenciais do sujeito

Em Proust (um dos primeiros retratos de Albertina):
Ao falar, Albertina mantinha a cabeça imóvel, apenas fazia mexer a ponta dos lábios. Disso resultava um som alongado e nasal, na composição do qual entravam talvez hereditariedades provinciais, uma afecção juvenil de fleuma britânica, as lições de uma instrutora estrangeira e uma hipertrofia congestiva da mucosa do nariz.*
Embora essas características não fossem constantes, pois Proust logo em seguida escreve que elas desapareciam quando Albertina relaxava, ainda assim, constituíam traços essenciais e determinantes do caráter, da personalidade dela.

Mas, nessa caracterização hipotética (notar o talvez) de Albertina, entram elementos que são característicos do próprio século XIX: a determinação do caráter também por características do corpo – a hereditariedade e a fisiologia – além da simples instrução. Características que, na concepção do século, o sujeito do corpo não pode facilmente contornar.

(*) PROUST, Marcel. À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 440.

Um véu encobre a lei

O que me pareceu mais interessante no artigo de Madarasz:
[...] os advogados do liberalismo e do intervencionismo militar nos países muçulmanos desenhados como hostis têm, como no caso do Afeganistão em 2001, formulado a lenta condenação do Islã a partir da questão do gênero.*
Este artigo foi escrito em 2006. Recentemente tivemos a atitude do parlamento belga. E ainda mais recentemente a do governo francês.

Para uma população de 65.000.000, há na França uma estimativa de 1900 mulheres que cobrem o rosto com véu. Isso justifica uma lei que proíba crobir o rosto? Ou devemos ver aqui algum véu que encubra a lei?


(*) MADARASZ, Norman. Foucault e a revolução iraniana: o jornalismo de ideias diante da “espiritualidade política”. In: Verso e Reverso. Ano XX - 2006/3 - Número 45 . São Leopoldo: Unisinos, 2006.

De si design II

De Proust, ainda:
Não se recebe a sabedoria, é preciso descobri-la por si mesmo após um trajeto que ninguém pode fazer por nós nem pode nos poupar, pois ela é um ponto de vista sobre as coisas.

À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 427.
E isso _ a sabedoria é como um mirante de onde se estabelece uma perspectiva para as coisas, para chegar lá é preciso percorrer por si mesmo um caminho _?

Isso é um comentário? Isso é uma paráfrase? Uma fotografia? Uma perspectiva?

De si design

De Proust, este exemplo de design subjetivador, numa relação de si a si:
[...] Odete, disciplinando seus traços, havia feito de seu rosto e de seu figurino essa criação, cujas grandes linhas, através dos anos, seus cabeleireiros, costureiros, ela mesma – na maneira de se postar, de falar, de sorrir, de posicionar suas mãos, seus olhares, de pensar – deviam respeitar.

À l’ombre des jeunes filles en fleurs. Paris: Gallimard, 1988 [1919]. P. 424.
Note-se aqui alguns detalhes:
(1) o desenho envolve não apenas o corpo, mas também o pensamento;
(2) a relação de si a si e o design da subjetividade estão todos voltados para o mundo;
(3) a disciplina que esse governo requer.

Mecanismos afetivos IX – a geometria das filmagens

Por exemplo, à medida que passamos a compreender as regras de confecção do cinema (sua semiótica, o jogo dos cortes, o balanço das câmeras, as inserções, os closes, as prises de vues, a influência da trilha sonora etc.), nessa medida, deixamos de ter uma percepção do filme que se caracteriza pela entrega, pelo devaneio que acompanha o fluxo das imagens e dos sons, e nos distanciamos.

[um certo estilo narrativo até mesmo compreendeu esse distanciamento como necessário; aí, a mostração exibicionista dos modos materiais de produção do cinema deveria desbancar o crédito ideológico, a magia das imagens em seu fluxo fetichista – somos porém todos tão loucos, que seria também uma loucura procurar a inversão da loucura]

Da mesma maneira, à medida que compreendemos o mecanismo das afetos, a maneira como surgem, como se intensificam ou se enfraquecem na sua relação com a imaginação e com outros afetos, nessa medida, nos descolamos de seu fluxo aparentemente caótico, aderente, e compreendemos sua lógica, ou melhor, sua geometria, a maneira pela qual, tal qual figuras geométricas, os afetos são traçados.

Esse distanciamento do sujeito em relação ao próprio conteúdo afetivo que o constitui pode parecer doentio, uma espécie de desdobramento do eu em que a identidade se perde. Talvez, porém, a relação de si a si que este desdobramento implica, pelo contrário, possa ser o início de um processo de despatologização, uma terapêutica, não no sentido de descaracterizar a afetividade como uma alienação, mas no sentido de governá-la como parte do governo de si.