Anjos ou demônios (3) – Hobbes (3) - reino natural

Os anjos e demônios dialogam nas deliberações de nossa consciência.

Segundo Hobbes (Leviatã, II, xxxi, 3-4), Deus nos declara suas leis e, através delas, os princípios de nossa consciência, por três vias, duas diretas e uma indireta. Indiretamente, nossa consciência se estrutura ao ouvir a voz de alguém, em que cremos e que fala em nome de Deus. Diretamente, pela revelação e pela razão.

Assim, no primeiro caso, a palavra de Deus é profética, e a acessamos se temos fé nos profetas e em seus milagres. Ou é sensível, e a intuímos, se dispomos de um sentido para o sobrenatural. Ou, no terceiro caso, é racional, e a desvelamos, se nos exercitamos e nos esforçamos para entendê-la.

As leis que Deus nos declara, quando somos diretamente sensíveis à sua voz, são leis que nos concernem apenas a nós. Não são leis universais. Deus declara a homens distintos leis particulares.

As leis declaradas pelos profetas também não são para todos. Mas apenas para aqueles que constituem o povo (os judeus; os cristãos também?*) a quem Deus escolheu falar. O reino profético não admite qualquer um como súdito.

Sem fé nos profetas sagrados e sem o ouvido sobrenatural, nos resta acesso apenas à palavra racional de Deus. A essa palavra pode ter acesso todo aquele que reconhece nos ditames da razão a lei de Deus, como sua providência. Deus governa universalmente os humanos segundo as leis de natureza, às quais podemos aceder pelo raciocínio e pela conhecimento de si.

Não depende de nós pertencer ao reino dos revelados. Não depende de nós pertencer ao reino profético. Nesses dois casos, cabe a Deus escolher seus súditos.

Mas, no terceiro caso, essa escolha nos cabe. Para nos assujeitarmos ao reino natural de Deus, basta-nos reconhecer o aspecto vinculante das leis universais de natureza, que são as virtudes morais. Estas são leis para todos os seres humanos, para todos aqueles que por sua vontade se dispõem ao exercicío, à ascese racional.

Essas leis universais de natureza, mesmo sendo divinas, não obrigam a alguma forma de culto a Deus, nem são leis de delimitação do sagrado. Não são leis que regulam a relação dos seres humanos a Deus, mas a relação dos seres humanos entre si.

Mas a vontade, em Hobbes, não é o livre-arbítrio, que permite ao ser humano racional aderir, ou não aderir, a um imperativo da razão. A vontade não é livre. A vontade é apetite, inclinação, e como tal ela é causada por uma paixão.

(*) Na versão em latim (talvez a primeira a ser redigida, embora publicada depois da versão em inglês), Hobbes diz que o povo escolhido é primeiro os israelitas, depois os cristãos). Na versão em inglês, Hobbes é mais restritivo: (Lev, II, xxxi, §4) ali somente os judeus são nomeados.

Anjos ou demônios (2)
Anjos ou demônios (1)
Hobbes (1)

Hobbes (2) – fetiche do poder e fetiche da moeda

O poder do soberano depende da soma de poderes dos sujeitos. É efetivamente a congruência dos poderes dos sujeitos (sua força física e o engenho de sua inteligência) que constitui o poder do soberano. Enquanto pessoa natural, o soberano não tem mais poder do que qualquer dos seus sujeitos. O poder soberano não possui um fundamento em si mesmo, mas nos poderes dos sujeitos.

O poder do soberano, portanto, depende do sentido do real, que é a crença no poder de punir do soberano, que por sua vez depende do poder efetivo, mas pulverizado, dos sujeitos. O único ser do poder soberano é o poder reunido do ser dos sujeitos.

O poder do soberano se assenta sobre o campo de virtualidades que ele mesmo estrutura. Quando se esfacela o real, isto é, a solidez da crença das subjetividades nesse campo de virtualidades, esfacela-se também o poder do soberano. O soberano não pode tão eficazmente realizar o campo de virtualidades. O que induz um círculo vicioso contrário ao círculo virtuoso de formação e de estabilidade do poder soberano e da comunidade política.

No ideal de funcionamento da política hobbesiana, o poder soberano sequer se manifesta, isto é, não precisa realizar o campo de virtualidades, não precisa mais punir. No seu desfuncionamento, no processo de sua dissolução, pelo contrário, o poder soberano é levado a constantes esforços de realização de suas promessas e ameaças. Quando essa capacidade de realização é tensionada, o poder soberano começa a falhar.

Esse processo de constituição e dissolução do poder soberano é muito semelhante ao mecanismo da moeda.

A moeda tem sua origem na letra promissória: na promessa de futura retribuição, em medida equivalente, feita por um particular a outro particular, no mecanismo de transferência da propriedade de uma mercadoria.

A moeda como tal surge quando essa promessa de retribuição não está mais ordenada a uma pessoa particular, quando não cabe mais a nenhuma pessoa determinada a obrigatoriedade de cumprir a promessa de retribuição, e quando qualquer um pode se assim desejar realizar essa promessa. A indeterminação do pagador da promessa (que é a indeterminação da mercadoria que se troca pela moeda) é o que constitui a liquidez da moeda. Mas a moeda só adquire seu pleno caráter social, quando a comunidade organizada passa a arrogar-se o monopólio da emissão da moeda. E o valor da moeda só se sustenta, quando a comunidade organizada, em última instância, pode cumprir a promessa de pagamento inscrita na moeda.

Essa semelhança entre o mecanismo de poder e o mecanismo da moeda, fundados na crença, talvez explique por que Hobbes usa, no inglês, commonwealth (riqueza comum), para o latim civitas (cidade, Estado).

Hobbes (1)
Hobbes (3)

Hobbes (1) – governar os outros

Governar para Hobbes (Leviatã_1651: II, XXXI, 2) é dirigir os sujeitos, estabelecendo o campo de virtualidades e realidades de suas ações.

O campo de virtualidades são as promessas e as ameaças do soberano. As virtualidades são constituídas pelos imperativos hipotéticos que ameaçam punir os injustos e prometem vingar os injustiçados.

As realidades são o sentido firme que os sujeitos encontram como efeito de suas ações, sentido que é adquirido pela efetividade das recompensas e das punições do soberano.

A realidade, portanto, é um efeito, que depende da certeza ou da crença na concretização da reação do soberano.

O sentido do real, no governo hobbesiano, está vinculado a essa crença dos sujeitos no poder do soberano para realizar o campo de virtualidades.

O sentido do real, em Hobbes, é o que assegura o sentimento de paz e concórdia entre os homens, articulado com o medo das punições e a esperança das recompensas. A paz e a crença de paz no futuro estão na base do processo civilizatório. Não há civilização sem garantia da paz.

Quando o soberano falha e não cumpre promessas e ameaças, quando o campo de virtualidades não se realiza, o sentido do real fraqueja. O real se esfacela. A civilização perde seu ponto de apoio. A barbárie emerge.

Hobbes (2)