Dose de mentira


A liberdade de um corpo é uma certa quantidade, que se mede pela dose de verdade que ele suporta. Mas também a mentira não é ilimitadamente suportável. A partir de uma certa dose, que depende do corpo, o corpo precisa expeli-la também.

O recurso contra a verdade é o narcótico, a ilusão, a fantasia, a magia, às vezes o humor. O recurso contra a mentira, sempre, a revolta, a nudez, a exposição à morte, às vezes o humor.

Agora, seria preciso pensar um corpo sem verdades e sem mentiras. Puro humor?




Diário de Moscou XXXIV – O manifesto moscovita se explica


Para falar segundo uma fórmula que sabemos ser excessiva: – nós, do MIVDCATCFDF, estamos cansados de ser razoáveis...

Falar não excessivamente exprime uma opinião razoável (nos termos de Aristóteles: uma verdade grosseira, imprecisa, aproximada, 1094b20), não narcísica (ou mágica) que leva em consideração, de maneira constitutiva, a opinião de muitos outros (1098b25-30).

Com uma formulação excessiva, não razoável e mágica, queremos apenas dar expressão a uma ideia outra. Nosso propósito, portanto, não é nos dirigir à verdade, mas à gente razoável.

A ideia que exprimimos criticamente – não à guerra, não ao petróleo, não à melancolia! – e positivamente – viva a democracia, a energia solar e a alegria da vida em comum! – é certamente excessiva, no sentido de que ela não encontra, na situação atual, suas condições existenciais.

Mas a ideia oposta (a civilização da guerra, do petróleo e da tristeza) é tão excessiva quanto aquela que propomos, e pela qual manifestamos, no sentido de que ela está rapidamente perdendo suas condições existenciais no ser, em direção ao nada, pois ela é certamente inadequada.

“A gente de França deve...” antes de ser uma fórmula do dever é uma forma mal-expressa do manifesto. Diríamos: “A gente de França, nós iremos...”, se nós, moscovitas, pudéssemos, também nesse caso, empregar a primeira pessoa do plural.



Diário de Moscou XXXIII – Manifesto moscovita

Os moscovitas-internacionalistas-verdadeiros-democratas-comunistas-ateus-trágicos-cínicos-felizes-de-frança, MIVDCATCFDF, têm isso para si certo: ao mostrar a sua absoluta inadequação ao que acontece com a gente em França e no mundo, a gente de França deve forçar o atual governo francês a “abdicar” de seu posto a seu favor, para que a gente de França estabeleça uma reforma política (democrática: não à guerra!), econômica (comunista: não ao petróleo e derivados!) e ética (eudaimonista: não à melancolia!). Sob o calor dessa situação? Não, mas dentro de duas semanas ou dois meses.





Diário de Moscou XXXII – Moscovitas do Mercado

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Ontogênese da paixão pela justiça social

Para Freud, o desejo de equidade (tratamento igual) e o esforço dos indivíduos na reivindicação e implantação de uma justiça social é, no seu dinamismo ontogenético, uma “formação reativa” derivada de uma conclusão dos jogos de potência (dynamis): “Quando não se pode ser o favorito, então nenhum dos outros deve ser favorecido”*.



(*) FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu [1921]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 81.

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O real é como um canal (olho-ouvido) pelo qual perpassam, em seu modo material (imagens-sons), verdades eternas evanescentes.



A essência do documentário II


A questão da essência do documentário: – o que é um documentário? O que faz do cine-documentário algo específico e distinto do restante do cinema?

Há o cinema. Há, primeiramente, a ficção, como gênero cinematográfico.

A ficção fílmica envolve a imaginação, a fantasia e, no espectador, um certo esquecimento do real, uma entrega momentânea ao devaneio, à ilusão. A ficção é mais ou menos independente do modo como as coisas realmente acontecem. Há um relativo descompromisso com a verdade, diante da ênfase colocada nas questões plásticas ou estéticas.

Há, por outro lado, o documentário. Então, deve haver algo de específico ao documentário, que o torne distinto da ficção, que faça do documentário um segundo gênero de cinema.

Isso aparece imediatamente no material do documentário. Esse material é a verdade da realidade. O cine-documentário (à diferença do cinema-ficção) filma/mostra a realidade, o real. O documentário espelha o real.

*

Temos, então, no documentário, uma composição feita com um material imagético bruto (imagens e sons) captados diretamente do real.

Muito bem. Porém, nessa composição que é o documentário, esse material bruto captado precisa ser capturado.

A composição do documentário é uma elaboração do real, na medida em que é uma elaboração do seu material imagético bruto sob algum princípio de realidade, que dá alguma coesão e coerência ao que se filma e se mostra.

Esse princípio de realidade, o documentarista, na medida em que ele se destina à verdade, o pressupõe como constituinte do real e, ao mesmo tempo, do filme.

No filme, o princípio de realidade orienta a seleção dos planos filmados, a montagem.

De alguma maneira, o documentarista, na sua busca de inteligibilidade do real, na busca da coesão e da coerência das imagens e sons, submete o material bruto a esse princípio de realidade pressuposto.

Às vezes, também, é no próprio material imagético bruto que o cineasta-documentarista encontra, descobre, esse princípio de realidade.

*

A captação e a composição do material imagético bruto ou real de imagens e sons documentais indicam uma captura do real (que é muito mais do que uma simples captação).

Sob análise, poderíamos dizer que essa captura se efetua sob dois operadores.

Um operador sensível, imagético ou plástico, atuante nas escolhas de enquadramento, de iluminação, de captação do som, de trilha sonora, na seleção plástica e na justaposição, repetição, afastamentos das cenas e dos planos.

E um operador inteligível ou cognitivo, atuante na inteligibilidade, na interpretação, na ordenação e na articulação do material imagético, sob algum princípio de realidade, para a produção da verdade.

Certamente, eles não são dois operadores distintos, mas, antes, dois aspectos da operação fílmica do documentário revelados pela análise.

*

Esse elemento operador plástico somado ao operador cognitivo constituem o que poderíamos chamar de elemento estético incontornável ao documentário (que envolve um princípio plástico e um princípio de inteligibilidade).

Que esse elemento estético seja incontornável quer dizer que ele pertence à essência do documentário.

O reconhecimento desse elemento estético, como uma operação sobre o real que é distinta da própria realidade, nos deixa, perigosamente, muito próximos da ficção.

Mas, por que perigosamente? Por que sentimos aí algum perigo? Porque todo elemento ficcional (próprio à ficção, à imaginação e distinto da própria realidade), constatado no documentário, o coloca sob suspeita, gera desconfiança.

Nós acreditamos que o documentário espelha o real e, por isso, não aceitamos que o documentário manipule o real. Uma manipulação artística do real, uma técnica de manipulação do real: isso é a ficção, não o documentário!

*

Quando, para nós espectadores, está disposta e estabelecida, a priori, antes da própria experiência fílmica, a afirmação: “– isto é um documentário”, nós entramos na sala de cinema sob o selo de um pacto. O espectador entra com sua confiança na peça documental; e o documentarista, com o compromisso com a verdade.

DOCUMENTARISTA: – Isso é um documentário! Isso é a verdade do real!
ESPECTADOR: – E nós acreditamos! Em primeira ordem... até segunda ordem...

Esse pacto de realidade é colocado sob suspeita (ou até mesmo totalmente suspenso) com a evidenciação dos elementos estéticos. Quando o espectador percebe a aspereza dos operadores plásticos e cognitivos empregados na técnica do documentarista, ele se retira do pacto, parcialmente ou integralmente, colocando em cheque o caráter de veridicção do documentário.

De maneira geral e no limite, essa evidenciação dos elementos estéticos coloca em risco o próprio status de documentário, fazendo o filme bascular do gênero documentário para o gênero da ficção, isto é, do segundo para o primeiro gênero de cinema.

Assim, à medida que o espectador aprimora sua ciência cinematográfica, à medida que para ele se tornam evidentes os elementos estéticos (plásticos e cognitivos) incontornáveis ao documentário, até mesmo nas suas espécies mais imediatas (nas captações fílmicas supostamente menos mediadas por esses elementos estéticos) como na reportagem de atualidade ao vivo, mais ele desqualifica o caráter documental do documentário.

O espectador compreende que esse elemento estético está presente desde o momento da captação em imagens e sons dos fatos reais, por exemplo, já no enquadramento. Nessa medida, toda captação do real já se mostra como uma abstração da complexidade real, como um recorte intencional de algo que o documentarista quer mostrar. Nessa medida, em toda captação e composição do real no material imagético já está em jogo uma interpretação do real, distinta do próprio real, que evidencia uma vontade de saber, que é também uma vontade de poder sobre o real.

Isso faz de toda captação do real uma captura (uma apropriação, uma tomada de posse). Nessa captura, enreda-se eventualmente o espectador.

Na gênese do documentário, inexoravelmente, encontra-se, então, esse elemento estético, esse elemento de invenção que pode ser dito ficcional. Isso quer dizer que a essência do documentário é uma quimera? Que ela não existe? Que tudo no cinema é ficção?

*

De toda maneira, há nesse elemento estético do documentário, precisamente no operador cognitivo do material imagético bruto, algo que, talvez, possamos resguardar, se nós abandonarmos a nossa ideia mais imediata de que o documentário filma o real, de que o documentário espelha, numa mostração, o real.

Podemos resguardar, no operador cognitivo, no princípio de realidade utilizado, posto em prática, posto em filme, pelo documentarista, na produção cinematográfica da verdade, um elemento próprio, específico, essencial, do documentário.

É preciso, então, nos inclinarmos para esse princípio de realidade que permite e orienta a filmagem do real, desde a captação das imagens e sons e a sua seleção, até a montagem, que justapõe, articula, potencializa esse material bruto.

Eu entendo que esse princípio de realidade que se põe em jogo no documentário (e não na ficção) é o que a filosofia (e a epistemologia) chama de uma teoria da verdade.

Podemos pensar que a essência do documentário envolve, geneticamente, uma teoria da verdade determinada, e que o documentário a filma, isto é, que o documentário põe em filme, ao pôr em prática, essa teoria.

Esse pôr em prática, em filme, essa teoria da verdade determinada, envolve, certamente, uma técnica específica, uma técnica de filmagem, uma técnica de montagem. Essa técnica não nos parece algo diferente dessa teoria da verdade, mas se confunde totalmente com ela.

Portanto, a teoria da verdade em jogo no documentário é, ao mesmo tempo, uma teoria, posta em prática, sobre a maneira de se produzir verdadeiramente a verdade. Uma teoria da verdade que é, simultaneamente, uma teoria da técnica da produção fílmica da verdade, uma técnica do documentário.

Essa teoria da verdade filmada, que é também uma técnica de produção da verdade, é a essência do documentário.

*

Essa teoria da verdade constituinte da essência do documentário, por sua vez, coloca o documentário numa relação essencial com a essência da filosofia.



Pensamento-cinema 5, 1ª lição: DOC/o real e a verdade


Depois da lição introdutória, proferida por Adriano Mansanera,
a primeira lição do curso Pensamento-cinema 5 ocorrerá nesta

QUARTA, 4/11/2015, às 19h, no CineSESC.
Tema: DOC/o real e a verdade.
Apresentação: Leon Farhi Neto

pensamentocinema.blogspot.com.br

Metafísica e animismo


A filosofia moderna diz que, até Kant, vivíamos (os metafísicos) sob o império de um certo animismo.

Quer dizer, compreendíamos o mundo externo, metafisicamente, por meio de uma exteriorização (projeção sobre o mundo) da nossa própria organização psíquica.

Por isso e desde então, nos caberia: “recolocar [de volta] na alma humana o que o animismo nos ensina a respeito da natureza das coisas”*.



(*) FREUD, Sigmund. Totem et tabou. Trad. Serge Jankélévitch. Paris: Payot, 1965 [1913]. P. 141. Peço perdão pela inserção, entre colchetes, do pleonasmo.

Spinoza e os outros: três liberdades

A liberdade, para Spinoza, tem três aspectos: o ético, o político e o econômico.

DEFINIÇÕES

A liberdade ética é alcançada pelo ser humano que é conduzido pela reta visão da própria mente e, não, cegamente, pelo jogo variável e instável dos afetos.

A liberdade política, quando não há obediência a um outro.

A liberdade econômica, por sua vez, é a liberdade de não ser servo/escravo, ou seja, a liberdade de produzir a sua própria utilidade e não apenas a utilidade de um outro.

PROPOSIÇÃO

Estas três liberdades estão articuladas de tal maneira que é impossível alcançar a liberdade ética, sem alcançar, simultaneamente, as outras duas.

DEMONSTRAÇÃO

O ser cativo é, ao mesmo tempo, o ser que serve a um outro e não a si próprio, que obedece o que lhe comanda um outro e o que se deixa guiar pelos afetos.

O grau zero de liberdade parece ser a liberdade econômica. Se produzo o que me serve, sou economicamente livre, mesmo eventualmente obedecendo às ordens de alguém. Mas não posso ser politicamente livre e, ao mesmo tempo, servo. Já que servir aos outros, sem obedecer-lhes, é um contrassenso (está em oposição com o desejo que somos).

No entanto, pergunto-me, posso ser politicamente livre (fazer de tudo, sem obedecer a ninguém) sem ser eticamente livre, isto é, sendo guiado, não pelos próprios olhos da mente, mas pelos afetos? Bom, parece que não. Já que o jogo dos afetos está ligado à relação de um ser com os outros.





Valor, ética e moral


O valor está onde o desejo se investe, não ali onde o desejo deve investir-se. Portanto, o valor é uma questão de ética (uma potência), não de moral (não uma finalidade).


Democracia - 1 = autocracia

Curiosamente, de todos os regimes da vida em comum, o que está mais próximo (e não, como era de se esperar, o mais distante) da democracia é exatamente o seu oposto, a autocracia.

Pois na democracia todos são iguais, e na autocracia todos são iguais menos um (e o mesmo). Uma mínima (em quantidade) distinção.

Qualitativamente, porém, o salto é gigantesco. Já que: a democracia é o regime das diferenças iguais; a autocracia, o regime do mesmo diferente.


Ser e nada, existência e morte


A questão fundamental da metafísica e portanto da filosofia, para Heidegger, a questão leibniziana: “por que há entes e afinal não antes o nada?”, afirma que pensar o nada (apesar de ilógico para o lógico) é uma condição sem a qual não se pode pensar os entes na sua totalidade, o ser da totalidade dos entes, o ser, a realidade do ser. Apenas o nada nos coloca verdadeiramente diante da realidade do ser. Da mesma maneira: pensar a nossa própria morte (e é isso que parece em jogo para cada um de nós) nos coloca a realidade da nossa própria existência. 

Mas, quando experimentamos radicalmente a verdade de que a morte é a realidade da nossa existência, então, mortais, como que nos retiramos de entre os entes em suas relações causais e em sua densa plenitude sem vazio, e a liberdade (essência da verdade) nos toma e nos abre para uma tomada de decisão acerca dos entes.

Para Spinoza, por outro lado, a ideia que exclui a existência do nosso corpo (a ideia de nossa morte do corpo, que é também a ideia da morte de nossa alma), não pode ser dada em nossa mente, mas é contrária a ela (e3p10).

Até posso ter adequadamente a ideia da morte, mas não adequadamente (em verdade) a ideia da minha própria morte.


Inscrições


Tudo começa com um ideal: você quer transformar o mundo, escrever a história e, assim, inscrever-se nela como sujeito. As dificuldades trágicas logo surgem. Inimigos, obstáculos e muros insuperáveis. A história só se escreve pelos vencedores inscritos. Finalmente, então, o desejo de fazer história leva você, tão logo possa, a passar para o outro lado do muro. Não lhe sendo possível escrever a história, você se inscreve sob os vencedores.

Mais uma manifestação do narcisismo ferido, secundário, reacionário.




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O nômade passa por nós, e ficamos com a impressão de que fomos passados para trás.




O que nos resta de Auschwitz?

Auschwitz é um signo para todo evento da história do narcisismo fabricado, a história mortífera da negação identitária do outro. O que nos resta depois desse campo?

Não tanto um jardim (um território), mas uma terra (um elemento): o indefinido riso, o riso não intencional, o riso de nada. Ou será isso, ainda, um retorno, uma reação ainda encoberta do narcisismo?



O narcisismo ontológico e o narcisismo reacionário (o que nos resta?)


O narcisismo (compreendido como o feliz, primário e indefinido afeto de infinitude ou plenitude) é anterior ao afeto do trágico (compreendido como uma disposição do corpo, em geral, melancólica, ligada ao conhecimento de que há uma realidade implacavelmente insubmissa ao nosso desejo, em seu exemplo máximo: a nossa morte absoluta, nossa finitude, nossa descontinuidade).

O trágico, como conhecimento da finitude da nossa própria existência – e é por meio dele que tomamos consciência de nós mesmos e dos outros –, como parte do jogo de todas as outras coisas existentes, assim, vem denegar, ou suspender, o narcisismo primário; porém, talvez, nunca o negue, ou suprima, definitivamente. Apenas, o faz atuar de outros modos, secundários.

Esse narcisismo denegado (redefinição do desejo ontológico indefinido, pleno, ao qual nada falta, como desejo de infinitude ou de reconstituição da continuidade), por exemplo, atua na fabricação de escapatórias fantasiosas ou mágicas para aquele princípio de realidade trágico, entre outras: a moral universal, o além-mundo, os misticismos, as religiões, as fantasias megalomaníacas, as filosofias.

Primeiro, então, o narcisismo ontológico, na base do ser; em seguida, diante da morte, o reconhecimento trágico do real; finalmente, o retorno do narcisismo, como narcisismo ferido, secundário, fabricado.

Esclarecer, enfim, apareceu-nos simplesmente como o desembaraçar-nos dos nós que nos prendem a essas fabricae reacionárias (razão-facão).

Em seu entusiasmo inicial, na luta destruidora contra o narcisismo fabricado, o Esclarecimento (Aufklärung), no entanto, pressupôs uma realidade de fundo – um lugar e uma força que seriam capazes de acolher e conter o seu avanço destruidor. E, assim, mostrou o seu próprio aspecto narcísico: a fé na capacidade da ciência humana e nas verdades eternas ao alcance do humano. O Esclarecimento revelou-se, ele mesmo, como “retorno do reprimido”. Mas o narcisismo secundário é sempre, por definição, reacionário.

A consequência do Esclarecimento, dessa metamorfose do desejo narcísico, na sua megalomania mortífera, foi a própria destruição da sua fantasia e o reconhecimento do perigo do retorno narcísico, na negação identitária do outro. Gulag/Auschwitz/Hiroshima. Reencontramo-nos entregues a nada. 

Desembaraçamo-nos de tudo; e o último Esclarecimento nos conduziu ao niilismo melancólico do trágico. A aceitação do trágico é, com efeito, a solução ao perigo das fantasias narcísicas. Mas, a melancolia, é ela o afeto que nos resta? O que nos resta de Auschwitz?

Veja: o trágico (ideia e afeto) não suprime tudo, ainda há uma ontologia, uma base do ser, aquele desejo primário ao qual nada falta. Será para nós possível partir desse desejo primário, não para reagir ao trágico, mas para suprimir a melancolia? 



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Entre o infinito (o narcisismo) e o finito (o trágico), Spinoza inventou o indefinido. (e3p8)



Razão-facão


Os primeiros Aufklärer tiveram essa ideia “iluminada” de que um complexo supersticioso (fabrica imaginária) encobria a realidade à percepção humana. Para eles, nós, o vulgo, percebemos o real como que através de nuvens, esses vapores intricados da superstição.

Eles pretendiam usar a faculdade humana da razão para limpar a sua via de acesso ao real (como fosse um facão, desbastando-lhes o caminho através das florestas dos seus novíssimos impérios coloniais).

O real, para esses esclarecidos, era como um fundo permanente, sempre ali, acessível ao intelecto corrigido, livre das superstições.

Mas, com efeito, o que é esse real cru? O que é esse fundo permanente de realidade livre de imaginação? O que é essa carne viva? Se desbastamos todas as excrescências imaginárias que obstruem (ou constituem) nosso regime mental, afinal, o que nos resta?

O que aqueles esclarecidos e velhos europeus atingiram ao final de sua empresa de desvelamento da realidade? Não estão eles, ainda, e como todos, intrincados em sua própria fabrica? A realidade não é esse princípio mesmo da fabricação?



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Em relação à filmagem, a fotografia é um ganho de tempo, que perde a duração.



Pensamento e língua II


A filosofia, idealmente, alcança um pensamento que está acima das línguas: o conceito, isto é, um pensamento que pode ser dito em uma ou outra língua sem prejuízo de seu conteúdo e verdade. Se não for assim, trata-se de poesia. Poesia é o pensamento preso a uma língua.

Na poesia, a língua importa. Mais que tudo? Mais que o próprio pensamento?

Bom, há filosofia que se importa com a língua. Ela diz: não é em qualquer língua que a ideia verdadeira se deixa expressar autenticamente! E há quem diga que só se pode filosofar em grego ou em alemão... Ha, ha! Isso me faz rir! O riso é apenas um desdobramento corporal de um afeto de rejeição... mas envolve-desenvolve reflexão...




Pensamento e língua


Poesia é o pensamento preso a uma língua. Ou uma língua que pensa; uma língua, ao pensar.




Entre documentário e filosofia II


O documentário é uma espécie de filosofia empírica, cuja experiência se limita à imagem visual e sonora.




Entre documentário e filosofia


Nossa missão (como documentaristas-filósofos) é a verdade. Isso, frequentemente, porém, é uma submissão.





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Corrupção (essa da qual tanto se fala) é uma contra-ação capaz de obter renda sem dispor de capital.




Viver sem valores


Não desejamos servir aos valores... como servos dos valores estabelecidos.

Viver sem valores, então? Mas isso pode nos levar ao niilismo melancólico (nada vale! snif...).

Viver sem valores (sem o “desejável”, sem o “bom” em si) quer dizer viver sem valores dados, em uma existência-vida afirmativa de seu valor próprio, e no qual se alegra. O valor, de fato, nunca nos é dado, o valor nunca está pronto. O valor é algo que se constitui, se produz, pelo processo do desejo. – O desejo se engana? E nós estamos servos de um valor de fora. – O desejo entende com clareza o seu valor imanente e o que ele constitui como sendo bom? E nos tornamos livres.





Do ser ao nada: o consumo


Desejo de consumir: uma pulsão nadificante em que se engaja nosso ser, potência, desejo (que leva o consumível, puro algo, a nada). O ser engajado em nada. O nada engajando o ser. Esse desejo de tudo, que é desejo do nada, afirma: isso é a vida! E a meta de todo ser é o nada! (Freud: “a meta de toda a vida é a morte”.)





Natureza ou essência humana para Platão e Spinoza

A essência humana para Platão é uma ideia eminente. Quer dizer, cada um de nós, humanos, em relação a ela, está em falta. Nossa existência atual é privada de um tanto de ser ou de realidade correspondente a essa falta.

Em Spinoza, nada disso. A essência humana, ontologicamente falando, não é nada senão o que é comum a esses entes mais ou menos reciprocamente semelhantes a quem chamamos de seres humanos. Mas, relativamente a cada um de nós humanos mais ou menos semelhantes, esse comum está sempre aquém do seu ser. Na sua singularidade radical, nenhum indivíduo humano se explica completamente, essencialmente, pelas propriedades que tem em comum com outros indivíduos humanos.

Quer dizer, se, para Platão, estamos sempre em falta com relação à ideia do humano, para Spinoza, pelo contrário, estamos singularmente sempre em excesso em relação a ela.
















PS: OPS!: em Platão, a relação das almas humanas às ideias é de semelhança: no elemento do divino (não a de mímese ou a de participação, a alma não copia uma ideia, nem participa de uma ideia de alma). Assim, não podemos falar de uma ideia (ou essência) de alma. Com certeza, no entanto, podemos falar de uma idéia de corpo humano. E, em relação a essa ideia de corpo, tudo o que foi dito, acima da fotografia, fica válido.

Philautia ou o curto-circuito do amor

Passar através do interdito, para além do Eu... na direção da continuidade...

Mas se, nessa passagem, o interdito é apenas denegado, suspenso (como a lei num estado de exceção) então já não se trata dessa experiência de si que é a philautia, mas de transgressão (ou erotismo).




A essência do documentário

Uma teoria da verdade talvez seja a possibilidade de estabelecermos a comunidade entre a realidade e o cinema. Uma teoria da verdade talvez seja o elo estabelecido, ou que se estabelece, no documentário, entre os fatos reais e os elementos estéticos incontornáveis do cinema. Uma teoria da verdade que é, simultaneamente, uma teoria sobre a maneira de se produzir verdadeiramente a verdade. Uma teoria da verdade que é, também, uma técnica do documentário. 

O cinema documentário filma uma teoria da verdade.



O que o resultado esconde

No resultado, parece que o processo genético se termina e desaparece da vista. Ficamos com essa impressão. Um resultado destacado. Solto do seu devir. Como uma mágica. Um milagre. Um fetiche. Mas, de fato, a gênese nunca para, é contínua, no resultado e através dele. A gênese não é o primeiro livro, ao qual se seguiria um segundo. Sem início, a gênese perpassa eternamente.





Idem

O que é a identidade? O recorte, o critério, o cânone, do próprio e do alheio. Eu, outro. E também do autêntico e do inautêntico. Esse recorte frequentemente assume a forma do interdito.

Assim, passar através desse recorte e desse interdito, para além do Eu, constitui uma experiência de si: que: sob o impulso erótico: é o amor de si (a philautia).



2º gênero de c.

Chama-se o documentário de “segundo gênero” do cinema. Essa rotulação me chamou a atenção. Lembrou-me o segundo gênero de conhecimento em Spinoza: aquele das noções comuns. O cinema como meio de conhecimento. Do qual o documentário é um segundo movimento. Para Marina Goldovskaia, “o documentário é antes de tudo [isto é, essencialmente] um movimento que vai do não conhecer ao conhecer”*.








(*) GODOLVSKAIA, Marina. A jornada do documentário [2006]. Trad. Fábion Bonillo. In: LABAKI, Amir (Org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015. P. 200.

Soberania

Quem ainda crê em soberania?
Em suas diferentes formas: s. individual, s. racional, s. nacional, s. popular, s. do legislativo, s. do livre-arbítrio, s. subjetiva, s. do sujeito, s. consciente, s. da consciência, s. política, s. criadora, s. natural, s. por direito, s. da decisão...

s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s.



Pelo entre... a via – II

Vem se delineando um horizonte: uma divisão do universo afetivo, uma linha divisória do pensamento. Um entre (o erotismo, e tudo o que tem a ver com o amor, a libido, o desejo) abre/aparta/distancia a analítica da finitude (da descontinuidade) da analítica do narcisismo (da continuidade).


Ora essa, a imbecillitas!

Contemplar a sua própria imbecillitas!? Que tristeza!! Uma tristeza que se chama humildade (humilitas, e3p55s, escólio da proposição 55 da parte 3 da ética de Spinoza).

Pela alegria bem distribuída (hilaritas), é esse o princípio afirmativo da vida (melancholiam expellere, e4p45s)!

Perseguir, portanto, a via oposta: pensar a partir da sua própria potência, e afirmar-se nela. Isso é a philautia, o amor de si. Mas se cuidar, para se manter na prudência da dose certa desse narcisismo (secundário, como diria Freud).





A democracia: o quantum de liberdade que um corpo social pode...


O imperium [a organização política do corpo social; a relação de potências transcrita em relações de poder sob a operação da imaginação] se define pela potência da multidão. Esta organização de poder será tão democrática quanto livre for a multidão. Logo, será tão democrática quanto a multidão suportar da sua própria realidade sem fantasiar, delirar, sem cair em melancolia.




Pelo “entre” – uma ontologia do entre, da relação



Spinoza:

Nossa mente singular é essencialmente uma relação singular de ideias (como um filme é essencialmente uma relação de imagens), uma relação que não está em uma ou outra ideia, mas entre ideias.

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Exemplo disso: https://www.youtube.com/watch?v=WSPHp42RvOI&list=PLcWoNlKpLdigf_MdKkrl4n4DLKRqA1KuK&index=20
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Dziga Vertov: “ligações visuais entre os assuntos”. “Uma CINE-COISA” se define pelo “VER DA MONTAGEM”.*

(*) VERTOV, Dziga. Pronunciamento em um debate [1923]. Trad. Luis Felipe Labaki. In: LABAKI, Amir (Org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015. P. 38.
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Artavazd Pelechian:
Uma das teses fundamentais de Eisenstein: um plano, chocando-se com outro plano, dá à luz uma ideia, uma apreciação, uma conclusão. As teorias da montagem dos anos 1920 atêm-se sobretudo à relação entre planos adjacentes. Eisenstein chamava isso de “ponto de junção”; Vertov, de “intervalo”.
[...] eu me convenci de que o que me interessava era outra coisa, de que a essência e a ênfase do trabalho de montagem consistem, para mim, não na colagem dos planos, mas em sua descolagem.
[...] o mais interessante começa não quando uno dois fragmentos, e sim quando os desuno e coloco entre eles um terceiro, um quinto, um décimo fragmento [...] criar entre eles uma distância.**
(**) PELECHIAN, Artavazd. Montagem distancial, ou teoria da distância [1972]. Trad. Luis Felipe Labaki. In: LABAKI, Amir (Org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015. P. 172.