O narcisismo ontológico e o narcisismo reacionário (o que nos resta?)


O narcisismo (compreendido como o feliz, primário e indefinido afeto de infinitude ou plenitude) é anterior ao afeto do trágico (compreendido como uma disposição do corpo, em geral, melancólica, ligada ao conhecimento de que há uma realidade implacavelmente insubmissa ao nosso desejo, em seu exemplo máximo: a nossa morte absoluta, nossa finitude, nossa descontinuidade).

O trágico, como conhecimento da finitude da nossa própria existência – e é por meio dele que tomamos consciência de nós mesmos e dos outros –, como parte do jogo de todas as outras coisas existentes, assim, vem denegar, ou suspender, o narcisismo primário; porém, talvez, nunca o negue, ou suprima, definitivamente. Apenas, o faz atuar de outros modos, secundários.

Esse narcisismo denegado (redefinição do desejo ontológico indefinido, pleno, ao qual nada falta, como desejo de infinitude ou de reconstituição da continuidade), por exemplo, atua na fabricação de escapatórias fantasiosas ou mágicas para aquele princípio de realidade trágico, entre outras: a moral universal, o além-mundo, os misticismos, as religiões, as fantasias megalomaníacas, as filosofias.

Primeiro, então, o narcisismo ontológico, na base do ser; em seguida, diante da morte, o reconhecimento trágico do real; finalmente, o retorno do narcisismo, como narcisismo ferido, secundário, fabricado.

Esclarecer, enfim, apareceu-nos simplesmente como o desembaraçar-nos dos nós que nos prendem a essas fabricae reacionárias (razão-facão).

Em seu entusiasmo inicial, na luta destruidora contra o narcisismo fabricado, o Esclarecimento (Aufklärung), no entanto, pressupôs uma realidade de fundo – um lugar e uma força que seriam capazes de acolher e conter o seu avanço destruidor. E, assim, mostrou o seu próprio aspecto narcísico: a fé na capacidade da ciência humana e nas verdades eternas ao alcance do humano. O Esclarecimento revelou-se, ele mesmo, como “retorno do reprimido”. Mas o narcisismo secundário é sempre, por definição, reacionário.

A consequência do Esclarecimento, dessa metamorfose do desejo narcísico, na sua megalomania mortífera, foi a própria destruição da sua fantasia e o reconhecimento do perigo do retorno narcísico, na negação identitária do outro. Gulag/Auschwitz/Hiroshima. Reencontramo-nos entregues a nada. 

Desembaraçamo-nos de tudo; e o último Esclarecimento nos conduziu ao niilismo melancólico do trágico. A aceitação do trágico é, com efeito, a solução ao perigo das fantasias narcísicas. Mas, a melancolia, é ela o afeto que nos resta? O que nos resta de Auschwitz?

Veja: o trágico (ideia e afeto) não suprime tudo, ainda há uma ontologia, uma base do ser, aquele desejo primário ao qual nada falta. Será para nós possível partir desse desejo primário, não para reagir ao trágico, mas para suprimir a melancolia? 



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