Baixio das bestas

Saí da sala de cinema, pensando não ter gostado do filme. Essa miséria tão nua, essa fratura tão exposta, essa sonoplastia tão deficiente... Depois, porém, a opinião mudou. Mas já não se trata tanto de gosto, de satisfação, de comprazer. Novamente, está o cinema envolto com a nudez das vidas, com as questões da imanência. "Por aqui as coisas se fazem, por aqui também elas vão se desfazendo" – frase que lembra, e deforma ligeiramente, o provérbio "aqui se faz, aqui se paga". A cana devasta a terra que a produz. A cana consome o homem que a consome. O suco da cana torcida, pela boca, penetra na garganta, e tudo é um só, a usina e o pescoço torcido do homem. A cana é moída, as mulheres e os homens são moídos, e tudo retorna ao pó, de onde novamente brotam. De repente, porém, em meio a esses ciclos sem saída, no meio do eterno retorno do mesmo, o ator nos olha nos olhos e diz: "no cinema, a gente faz o que quer". E isso talvez queira dizer que, no mundo da vida, espectador, aí no seu mundo, aqui no nosso mundo, as coisas sejam ainda mais cíclicas, ainda mais presas em si mesmas.

Um filme importante para pensarmos o que é esse bio dos biocombustíveis, que vida é essa que aí se queima.

InformaçãoBLOG (IV)

A informaçãoBLOG não tem contrário, não tem oposto. Não há negação da informaçãoBLOG. Não há des-informaçãoBLOG, ou melhor, tudo aí é desinformação. Estamos na plena desinformação. E isso requer, no contato com ela, uma atitude, que pode ser ou de plena entrega, como o papel-no-vento, ou de recuo, como o pé-atrás. O recuo crítico não é exatamente a dúvida ou a desconfiança, como a desinformação não é exatamente a mentira. Pode haver o pé-atrás com confiança. Até mesmo o papel-no-vento tem sua sombra, apenas um pouco mais indefinida e imprevisível. O ser-diante-e-com-a-informaçãoBLOG é como a sombra do papel-no-vento.

Conferir a seção XVI, no link: DEBORD, Guy. Commentaires sur la société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992 [1988].

O comentário

Extremamente mal tratado, vilipendiado, tem sido o comentário. Comentar seria inútil, pouquíssimo criativo, sinal de heteronomia. Mas o comentário é a própria história da filosofia. Sem o comentário, haveria apenas acúmulo de páginas, as bibliotecas seriam como a Internet, não existiriam a imprensa nem as livrarias. O comentário filtra, seleciona, coleciona, amalgama, divide, mistura, embaralha, explica, reduz, multiplica, exagera. O comentário é o carnaval do pensamento, o eterno retorno da mesma palavra. Não nos envergonhemos, nós, os comentadores. Sem o carnaval, não haveria história. Isso parece irônico, mas não é. Mas então, por que sem carnaval não haveria história? Bom, fui longe demais. O carnaval não tem nada a ver com o comentário. Retiremos essas últimas frases, e prossigamos com o elogio. O comentário é a própria história da filosofia. Sem o comentário, não existiria a imprensa, haveria apenas acúmulo de páginas díspares, todas diferentes umas das outras. Não haveria repetição, ordenamento, compartilhamento. O comentário é o cilindro de uma máquina impressora. O comentário manteve Platão, Descartes e Kant vivos, presentes. Só é carnaval, porque agrupa aqueles verbos todos: filtra, seleciona, coleciona... Essas ações todas, toda essa atividade parece uma dança sem lei, um carnaval, uma euforia de fim de mundo, antes do retorno por vir e iminente da ordem, tão ansiada.

Ciência por semelhanças (II)

Já havia anoitecido. Estacionei o carro, na faixa contrária, com duas rodas sobre a calçada. Coisa rápida, o tempo de comprar alguma coisa, na padaria, logo em frente. De volta no carro, dei partida no motor, liguei os faróis, o pisca-pisca, e olhei pelo retrovisor. Bem à vista, no centro do espelho, vi um carro estacionado, com duas rodas sobre a calçada, na faixa contrária, faróis acesos e pisca-pisca ligado. Por um breve instante, breve mesmo, mas que durou o suficiente para que eu não o esquecesse mais, pensei tratar-se do meu próprio carro. Lá estava eu, aliás, o carro onde eu me encontrava, refletido no retrovisor do meu próprio carro.

Ciência por semelhanças (I)

A janela estava aberta, e o sol da tarde, o calor, acho que foi isso, teve um efeito sobre a capa de plástico do grande dicionário, na pequena mesa de apoio, ao lado de meu lugar de trabalho. Quando, ao final da tarde, fechei o volume, percebi que o plástico, com o qual eu costumo encapar, para protegê-los, os livros que utilizo com freqüência, havia, provavelmente devido ao calor, se deformado, e apresentava ondulações, mais ou menos regulares e concêntricas, semelhantes a impressões digitais, a uma só grande impressão digital. Como se um grande dedo houvesse imprimido suas linhas no plástico da capa do dicionário. A semelhança era tanta, que me fez pensar, provavelmente devido ao sol da tarde, que o calor, sim o calor, pudesse ser a causa dessas linhas tão particulares que apresentamos em nossos dedos. O calor, no momento de nossa concepção, nos deixaria essas marcas indeléveis nas pontas dos dedos. E talvez outra coisa, talvez a nossa pele possuísse exatamente essa estrutura, essa mesma estrutura das móleculas que formam o plástico da capa, o qual, encontrando-se em condições próximas de temperatura, de pressão, àquelas do instante da formação de nossas mãos, reagisse, deformando-se e corrugando-se, tal qual nossa pele, tal qual a fina epiderme de nossos dedos fetais, sob a força e o calor do útero. Fiquei preso a essas comparações e a todas considerações que delas derivavam, por alguns minutos, até ouvir o chamado do telefone, na sala ao lado, e me levantasse para atendê-lo.

Versos anônimos

tu me tues
je me tue
je te tue


Encontrei esses versos anônimos, rasurados a lápis sobre uma folha de papel, amarelada pelo tempo, posta entre duas páginas de uma tradução francesa de A Metamorfose, de Kafka, volume esquecido numa prateleira da empoeirada biblioteca da Aliança Francesa do centro da Cidade. Fiquei encantado com eles, surpreendentemente atraído, talvez pela caligrafia falha, quase desaparecida já, talvez pelo papel de qualidade, áspero ao toque, talvez por encontrá-los sem saber de onde vinham, talvez por toda a situação que eu vivia então, a minha volta ao Centro, depois de tantos anos, o almoço de família, o calor, a poeira da biblioteca.

O que se pode esperar?

Não vou procurar dar uma resposta a essa questão (que pretensioso seria), mas interrogá-la. "O que se pode esperar?" Seria essa uma questão fundamentalmente religiosa? O que se pode esperar de quê? Da vida, do futuro, do destino, do destino do mundo, de Deus? Trata-se de uma inquietude do ser humano, que desvia de si a questão do futuro, e interroga a Deus?

O que vem é determinado pelo que faço hoje? Há uma relação de causalidade entre o presente, e através dele, entre o passado e o futuro? Ou, pelo contrário, pode-se esperar qualquer coisa? Ou, pelo contrário, o que vem, o futuro que vem, não está de modo algum vinculado ao presente, é puro acaso? E se não é um puro acaso, pode ser uma oferta completamente gratuita? E se o que vem, assim do nada, vem como oferta, será uma oferta que posso aceitar ou recusar? Ou o que virá virá como imposição, como um destino incontornável, do qual eu não conseguirei, qualquer que seja ele, me livrar? E se é puro acaso, ou pura gratuidade, o que virá, por que devo pensar nele, agir no presente como se o futuro dependesse disso? E se é puro acaso o que virá, qual é o sentido do presente?

Devo aceitar a idéia de uma determinação do futuro pelo presente, então, apenas como uma idéia reguladora, que me sirva pelo menos de orientação? Ou, pelo contrário, devo regular-me pela idéia de que meu futuro é livre de qualquer determinação passada?

Mas por que me perguntar, afinal, sobre o que posso esperar? O que quero negociar no presente com tal pergunta? Meu esforço na retidão de minha conduta, meu empenho em desviar-me do pecaminoso, o qual eu, no fundo, desejo entretanto carnalmente? Essa pergunta pelo que pode acontecer cava em mim até um fundo, em que reconheço a minha verdade de pecador, de hipócrita, de simples negociador, de alguém incapaz de agir por princípios, independentemente das conseqüências?

Através da urgência dessa pergunta pelo que podemos esperar, podemos nos ver a nós mesmos impossibilitados de lidar com nosso presente, tal como ele deveria ser, autenticamente, se estivesse livre da pergunta pelo futuro? A emergência da questão pelo futuro já não compromete a autenticidade e a pureza do presente?

34ºC, hoje, na Lagoa

Esta talvez seja uma notícia. – Pleno inverno e 34º em Florianópolis. Contados, cada um deles (dos graus) por um vendedor-produtor de artesanato, conhecido meu, que trabalha nos fins de semana, na pracinha da Lagoa. A notícia acaba aqui.

Aquecimento global – essa é a expressão da certeza, em que a certeza se expressa. Talvez seja, certamente é, um vício meu (o contrário de uma virtude), cacoete do ofício ou do desemprego, mas sempre duvido das certezas. Entretanto – entenda-me bem –, realmente está ocorrendo um aquecimento global, os glaciares estão realmente encolhendo, o gelo dos pólos está derretendo de verdade. Se confio no testemunho do artesão da pracinha da Lagoa, também confio no testemunho da mídia. Negar o aquecimento seria uma espécie de revisionismo do presente, que tentasse ler de outro modo a história do presente, para refutar o crime da humanidade contra si mesma e contra tudo que a envolve e acolhe – o suicídio, homicídio e matricídio diário com o qual convivemos. Tudo isso, toda essa monstruosa destruição do vegetal, do animal, do mineral, está acontecendo, é real.

Entretanto não vejo certeza nisso, nem evidência. Justamente porque a pretensão de certeza e de evidência estão na origem de toda essa destruição. Buscar, no aquecimento global, certeza e evidência é continuar no mesmo plano daquilo que está na origem histórica do aquecimento, como condição de sua possibilidade. A certeza encobre ou destrói o incerto que não é evidente; e a evidência encobre ou destrói o ambíguo que é incerto.

Romance

Qual a vantagem do romance sobre o ensaio? Leia-se Les bienveillantes, de Jonathan Littel, Gallimard, 2006, prix Goncourt. O que faz Littel de seu personagem, o Dr. Aue? O que Littel tem que fazer de seu magnífico Dr. Aue beira o ridículo.

Retiremos os personagens do romance, a falsa impressão de vida, os personagens e suas peripécias, o trabalho sobre os sentimentos, esses operadores de identificação, pretensa vivificação do ensaio, retiremos os personagens, e o que resta de um romance? Um ensaio.

O ensaio é essa síntese do romance: é o romance sem personagens. A trama permanece, como pura trama de proposições, sem personagens. A lógica da trama do romance, no ensaio, é a lógica argumentativa. O personagem é a possibilidade da presença do público leitor no interior do romance; ou o comprometimento do autor de romances com seu público. Os personagens são recipientes para os leitores, armadilhas em que os leitores e os autores de romances são apreendidos. O ensaio, por sua vez, compromete-se com outra coisa, seja o que for; às vezes, a verdade, mas não necessariamente, às vezes, a ficção, quando as proposições apoiam-se umas nas outras e em nada mais.

Em algumas partes do livro de Littel, Dr. Aue é como o personagem de um ensaio – embora o ensaio não tenha personagens, ele pode ter um perfil, um estilo, uma perspectiva, até mesmo um nome, porém, jamais ser um reflexo em um espelho de leitor –, seco, nu, vazio, sem alma; em outras, como personagem de uma armadilha – ele aparece como em uma história em quadrinhos, em uma fotonovela. Isso é o que faz do romance um dos inversos da informacãoBLOG. O romance estabelece a relação de sujeito a sujeito, essa é a sua principal função – enfatizar a comunicabilidade entre interioridades. Mas a comunicabilidade, em si mesma, é a prova cabal da impossibilidade da interioridade.

Por que o drama trágico não é mais, ou não é ainda, um romance? Porque os personagens da tragédia, secos demais, nus demais, escapam, para nós, hoje, da identificação, tornam-se arquétipos. O SS-Obersturmbannführer, dr. Aue, é uma possibilidade vivificável, plausível, e se quer assim; Medéia ou Antígona, não.

InformaçãoBLOG (III)

A informação exerce sua tensão máxima, exercita sua potência, não quando preenche, mas quando estabelece uma lacuna, uma diferença. Por isso, a informaçãoBlog precisa ser dialógica, isto é, encontrar o seu lugar próprio em que cria a mudança, outro nome para a diferença.
A diferença não é o contraditório estabelecido. E o supra-sumo do dialógico, o diálogico mais informativo, não é o que se estabelece entre posições contraditórias, mas entre posições heterogêneas. Foucault, por exemplo, insiste muito nisso*. Ele opõe a heterogeneidade à contradição, a lógica da estratégia à lógica dialética. Num discurso dialógico a heterogeneidade não implica a incompatibilidade, a exclusão do avesso, como inimigo. No discurso dialógico o elemento heterogêneo, a possibilidade existencial do outro, dos outros, da pluralidade como potência, é incluída na própria estratégia de formulação da informação.
Portanto, a informaçãoBLOG encontra sua maximização no seu limite, no seu limiar que é um seu fundamento, o comentário. O que não deixa de ser uma apologética do comentário. Sem comentário, sem heterogeneidade, a informaçãoBLOG é manca, coxa.

(*) Essa insistência é talvez mais evidente em Naissance de la biopolitique, p. 44.

Filosofar é pensar a diferença entre o homem e o animal


Poderíamos dizer – por que não? – que toda filosofia é a reflexão da diferença possível ou essencial e irredutível, entre o homem e o animal. Se pensa a diferença, ela não pensa
exatamente a identidade, quer dizer, ela não pensa aquilo que faz com que o homem seja idêntico a si mesmo, a própria essência do homem. Mas quando pensa a essência do homem, em si mesma, se insiste nisso, ainda assim é filosofia, é uma antropologia filosófica. Mas pode pensar essa essência enquanto diferença. Quando pensa a diferença, pode pensá-la como divina, assim é teologia: o homem enquanto homem é um animal que se diviniza. Como diferença racional, se torna iluminista, e no limite filosofia crítica. Pode pensá-la como diferença específica dentro de um gênero comum, sendo então história natural ou lógica natural. Mas pode não aceitar a idéia do gênero comum, e pensar a diferença a partir dos próprios termos e da mecânica das noções, quando é filosofia da linguagem. Quando entende a diferença como um modo de vida a ser praticado, é existencialista. Quando pensa o sistema das diferenças, é estruturalista. Quando pensa a igualdade e não a diferença entre o homem e o animal, é filosofia da finitude ou biopolítica. E se não pensa nada disso, o que é a antiforma desse pensamento, é metafísica.