Em nome da dor humana

Conversávamos sobre psicanálise, sobre os estranhos pressupostos do método psicanalítico. Seu defensor, depois de reconhecer as dificuldades da psicanálise como conhecimento, saiu com esse argumento: – pelo menos, disse, com fundamentos sólidos ou sem, ciência ou não, a psicanálise muitas vezes funciona, mitiga o sofrimento de muitos humanos.

Obviamente, esse argumento é insustentável. Várias drogas aliviam a dor momentaneamente, enquanto aprofundam a doença. Não podemos agir cegamente, em nome da dor humana... se nosso problema é a verdade cristalina e última.

Mas o argumento é realmente insustentável? Sim, se nosso problema for, de fato, a verdade ou a cura última. Não, se nosso problema for, justamente, a dor humana. Enfim, se realmente a psicanálise alivia a dor humana, então, ora... o que podemos discutir?

Nosso mundo é um mundo de sofrimento. Não só – está certo –, mas há muita, muita gente, aqui, agora, que sofre. Um pouco menos de sofrimento já seria um bem enorme. Além disso, nesse mundo, a psicanálise é uma coisa de nada, serve ou não serve para muitos poucos, e... não polui. Podemos deixar a psicanálise para lá, em nossa margem de tolerância, se temos algo mais sério a fazer.

Mas... E se, em nossa seriedade, nos propuséssemos a isso – a só agir para diminuir a dor humana – como principal objetivo do que fazemos, afinal, continuaríamos pensando?

Anjos ou demônios (2)

Entretanto, pensar ou discorrer sobre nossa natureza angelical ou demoníaca não pertence, segundo Espinosa, à metafísica, mas à teologia. Para Espinosa, nas Cogitata*, anjos são assunto da teologia. À metafísica pertence somente o que pode ser conhecido naturalmente, isto é, mediante a luz natural. Se tomamos exclusivamente essa afirmação, existe todo um campo do conhecimento, o revelado, que extrapola o conhecimento natural, alcançável pelo homem, por si mesmo.

(*) SPINOZA, Baruch. Pensamentos metafísicos [1663]. Trad. Marilene de Souza Chauí. In: SPINOZA, Baruch. Espinosa. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Pp. 25-101.


Essa descontinuidade entre metafísica e teologia, talvez possa desaparecer diante de um segundo movimento da crítica do conhecimento humano, o perpetrado por Kant, que estabelece a distinção entre a metafísica e o conhecimento científico baseado na experiência do mundo.

Quando Kant afirma que não há intuição intelectual, afirma entre outras coisas que não podemos intuir (perceber para conhecer) intelectualmente a Deus. A revelação, portanto, ou passaria por uma experiência de mundo, e assim não seria mais totalmente revelada – pois toda experiência de mundo carrega consigo a forma das categorias a priori do nosso entendimento –, ou não possuiria propriamente um conteúdo de conhecimento, sendo simplesmente o dom da fé em uma idéia da razão.

Anjos ou demônios (1)

Anjos ou demônios? (1)

Se fosse fazer alguma metafísica, diria que nós, os humanos, somos feitos de anjos, espíritos sutis encarnados. As crianças seriam mais anjos do que os adultos. Ao longo de nossas vidas, no convívio com a carne, haveria uma corrupção de nosso elemento angelical, até a morte e a redenção final. Ou diria, talvez, exatamente o oposto. Somos feitos de demônios, espíritos pesados encarnados. Os adultos seriam mais demônios do que as crianças, porque mais possuidores de suas carnes. Ao longo de nossas vidas, a carne se corromperia cada vez mais, até a morte, quando se libertaria finalmente do demônio que a possuira.

Anjos ou demônios (2)

Máquina – Rudimentos da economia (VII)

A máquina não trabalha. Trabalham o corpo e a matéria que estão em relação com a máquina.

A máquina é uma mercadoria que produz mercadorias, mas não é uma ferramenta. A ferramenta, no seu uso, consome apenas o trabalho do corpo. A máquina, por sua vez, consome também o trabalho de uma matéria, como energia.

A ferramenta transforma a matéria com uso da energia de um corpo. A máquina transforma a matéria também com uso da energia material.

A máquina processa indistintamente a energia, seja material ou corporal. Diante da máquina, matéria e corpo possuem a mesma função.

Energia – Rudimentos da economia (VI)

Os corpos trabalham. Quando o corpo trabalha, usa a sua energia corporal.

Algumas matérias-primas e matérias trabalham.

O trabalho da matéria é a energia material. Quando trabalha, a matéria transforma-se em energia e em dejeto.

A energia material pode ser usada imediatamente ou acondicionada como mercadoria.

A energia é uma matéria e é uma mercadoria.

Entre a Utopia e o Lugar-comum

Quando se quer produzir um movimento, esboçar algo de novo, na vida ou na idéia da vida, é incrível a facilidade e a rapidez com que, ao invés de nos deslocarmos, nos desgarramos completamente. Quando se tenta dar nova faceta positiva ao real, tão fácil se chega à Utopia. Isso se deve a que, entre a Utopia e a plenitude opaca do real, entre o desvario visionário e a resignação cega, reside uma estreita e instável faixa de possibilidades. Tão fácil escorregar para um ou outro lado. Tão rapidamente deslizamos para a esterilidade do não-lugar, do sem sentido, tão prontamente reconhecemos nossa impotência em inovar, e permanecemos na mesmice do mesmo.

Para evitar a Utopia, com certeza, os saltos não podem ser grandes. Para evitar o Lugar-comum, entretanto, é preciso insistir no salto, na mínima incorporação sintética de uma outra realidade possível.

A atitude filosófica de crítica diante do real, exige a mesma atitude diante do irreal. Imaginação, fantasia, sonho, poesia precisam passar pelo crivo da crítica, e ainda assim ultrapassar, mediante a própria crítica, a cortina de ferro do real. Por isso é tão difícil e delicado pensar uma inovação plausível.

O meu gato

Quando começo a pensar sobre o meu gato, não sobre o ser, o mundo ou sobre o gato em geral, mas sobre aquele gato ali, então há nisso uma espécie de estoicismo, de filosofia helenista, não? Uma busca de tranqüilidade para a alma.

Dejeto – Rudimentos da economia (V)

Quando a matéria de uma mercadoria perde seu valor de uso, torna-se dejeto. Durante todo o processo econômico da matéria, produz-se dejeto.

O dejeto de uma mercadoria pode servir de matéria para uma outra mercadoria.
Nesse caso, o dejeto possui valor de uso, e eventualmente valor de troca, quando envolvido como matéria em uma outra mercadoria.

Quando o dejeto perde todo valor de uso ou de troca, sai do ciclo econômico, e se torna dejeto-último. No início da transformação econômica das mercadorias está a matéria-prima; no fim, o dejeto-último.

Todo processo econômico, por mais circular, é um processo de uso, de desmaterialização da mercadoria.

O uso da mercadoria, a desmaterialização, satisfaz a necessidade do corpo. Entretanto a necessidade do corpo em geral se renova, enquanto a matéria jamais se recicla completamente, há sempre um dejeto.

Esse descompasso entre a circularidade quase completa da necessidade do corpo, alimentada pela desmaterialização da mercadoria, e a linearidade do processo de transformação da matéria é o que produz indefinidamente o acúmulo do dejeto-último.

A economia é um processo de satisfação de necessidades, de desmaterialização, e por isso, de produção de dejeto-último.

Matéria-prima – Rudimentos da economia (IV)

A essência econômica da matéria-prima é a disponibilidade.

A matéria-prima está à disposição, e enquanto tal não é efeito de nenhum acúmulo de trabalho. Por isso a matéria-prima não é uma mercadoria, embora possua valor de uso.

Um corpo pode usar a matéria-prima para satisfazer imediatamente sua necessidade.

Um corpo pode usar a matéria-prima, acondicionando-a, para acumular seu trabalho. Nesse processo a matéria-prima torna-se a matéria ou parte da matéria de uma mercadoria.

Quando envolvida em uma existência de mercadoria, a matéria-prima torna-se simplesmente matéria.

A matéria-prima, em estado de disposição, antes de acumular o trabalho de um corpo, não é uma ferramenta, pois não é uma mercadoria, embora possa ser usada para produzir mercadorias.

A matéria-prima que, pelo acúmulo de trabalho, se transforma em matéria que pode ser utilizada na produção de outras mercadorias, se transforma, ao mesmo tempo, em ferramenta.

Nem toda matéria é uma ferramenta. Há matérias que só são usadas imediatamente.

Toda ferramenta é uma matéria, pois a ferramenta tem sempre um uso.

Há duas formas de materialização da matéria-prima. (1) A matéria-prima transforma-se em matéria, mediante o trabalho de um corpo, que nela se acumula, transformando-a em mercadoria. (2) A matéria-prima à disposição torna-se mercadoria, também, mediante a apropriação, isto é, mediante a relação que se estabelece entre ela e um corpo, que a defende contra outras relações de apropriação. Assim, a matéria-prima ganha um valor de troca.

Quando é apropriada, quando possui um valor de troca, a matéria-prima à disposição transforma-se em mercadoria, por ter acumulado o trabalho de apropriação.

Ferramenta – Rudimentos da economia (III)

A ferramenta é uma mercadoria, tem um valor de uso para o corpo e, se apropriada, tem um valor de troca na sua relação com outras mercadorias.

Nem toda mercadoria, entretanto, é uma ferramenta, pois, diferente das outras mercadorias, o corpo não só usa a ferramenta imediatamente, para satisfazer imediatamente uma necessidade, mas também a usa para auxiliá-lo a acumular seu trabalho, a transformar seu trabalho em mercadoria.

A ferramenta é uma mercadoria que produz outras mercadorias.

Exemplos: uma escova de dentes, como uma maçã, é uma mercadoria, mas não uma ferramenta.

O uso da ferramenta, como de qualquer outra mercadoria com valor de uso, requer algum trabalho do corpo.

O corpo proprietário da ferramenta pode usar o trabalho de outros corpos, no uso da ferramenta, para a produção de mercadorias. Nesse caso, o corpo que trabalha com a ferramenta é o corpo trabalhador. No campo, o corpo trabalhador é o camponês; na oficina, o operário.

A mercadoria que o corpo trabalhador produz com seu trabalho não é necessariamente propriedade de nenhum corpo. Em geral, ela é totalmente ou parcialmente apropriada pelo proprietário da ferramenta.

A ferramenta trabalha? Não, o corpo que usa a ferramenta trabalha. A ferramenta apenas expande, quantitativamente ou qualitativamente, a capacidade de trabalho do corpo.

Outras BLOGinformações sobre economia

Propriedade – Rudimentos da economia (II)

A propriedade é uma relação, seja entre dois corpos diferentes, seja entre um corpo e uma mercadoria.

Como relação entre dois corpos, a propriedade é a apropriação de um corpo por outro. O corpo apropriado é o corpo escravo. O corpo que se apropria é o corpo do senhor de escravos. Todo esforço finalizado do escravo, toda satisfação produzida por ele, seja imediata, seja mediada pela mercadoria, é apropriada pelo senhor do seu corpo.

Sendo a propriedade uma relação entre dois corpos diferentes, um corpo não é propriedade de si mesmo, não faz sentido falar do corpo como escravo de si.

Como relação entre um corpo e uma mercadoria, a propriedade é a apropriação da mercadoria acumulada pelo trabalho. O corpo que se apropria da mercadoria é o corpo proprietário. Todo proprietário é um corpo que se apropriou de uma mercadoria.

Entre a mercadoria e quem trabalhou por ela não há necessariamente uma relação de propriedade.

Quando o corpo se apropria do acúmulo do seu próprio trabalho, a mercadoria que produz é sua propriedade, quer dizer, pode ser usada para satisfazer suas necessidades, ou trocada pelo trabalho de outros corpos, acumulados ou não.

A apropriação é a defesa de uma mercadoria, por parte de um corpo, em detrimento do seu livre uso por outros corpos. Para que a operação da troca seja possível, já é necessária a apropriação. Não é possível trocar uma mercadoria que não tenha um proprietário.

Assim, quando a mercadoria tem valor de troca ela é propriedade de um corpo, que se apropriou dela. A mercadoria apropriada perde seu valor de uso indeterminado. Seu valor de uso é determinado pela sua relação ao corpo que apropriou-se dela.

O proprietário pode usar ou trocar a mercadoria por ele apropriada. Se a mercadoria é dinheiro, o proprietário só pode trocá-lo.

O proprietário pode trocar seu dinheiro pelo trabalho de um outro corpo, do qual ele não é proprietário. Trabalho que, dependendo da situação, ele acumula na forma de mercadoria, ou usa imediatamente para satisfazer-se.

Quando se troca a mercadoria, troca-se também a relação de propriedade da mercadoria de um corpo a outro.

Próxima informação da série: a ferramenta.
InformaçãoBLOG anterior: a mercadoria e o trabalho.

InformaçãoBLOG (V)

O estilo da informaçãoBLOG não é a notícia do fato, não é a ficção, mas o ensaio. A característica do ensaio é a conexão intuitiva, imaginária, mas provável ou possível, entre proposições, parágrafos, sugestões. Quase-facticidade, quase-ficcionalidade. A informaçãoBLOG é a operação do fato pela ficcionalidade e a operação da ficção pela facticidade. O ensaio não é uma demonstração, que percorre os degraus até o topo da tese, quase sem descontinuidade, mas um raciocínio que salta. O salto é o movimento que dá o ritmo ao ensaio. O ritmo é aquilo que nos prende. O salto encobre o saltado, que permanece não percorrido. O que nos prende ao ensaio é o que ele apresenta nos saltos, mas não enumera, o que permanece encoberto. A positividade da informaçãoBLOG está nessa sua negatividade.
> Sobre o ritmo...

Trabalho e mercadoria – Rudimentos da economia (I)

O trabalho é um esforço finalizado do corpo, visa a produzir imediatamente ou mediatamente a satisfação de uma necessidade.

Quando a satisfação, alcançada pelo trabalho, não é imediata, aparece a mercadoria. A mercadoria é acúmulo de trabalho. O trabalho acumula-se na mercadoria na forma de uma satisfação potencial. É devido a essa potência de satisfação que a mercadoria se valoriza.

O consumo é o uso da mercadoria, é a atualização da sua potência, quer isto produza ou não satisfação.

Uma mercadoria tem valor de uso ou valor de troca. O valor de uma mercadoria é uma relação. O valor de uso da mercadoria é a relação entre sua potência de satisfação e a necessidade de um corpo. O valor de troca da mercadoria é a relação entre a sua potência e as potências de outras mercadorias.

Quando a mercadoria circula, ao longo de trocas sucessivas, sem ser consumida, ela torna-se moeda. Quando a moeda perde por completo seu valor de uso, quando não serve para mais nada além de possibilitar uma troca, torna-se dinheiro.

O dinheiro é a mercadoria sem seu valor de uso, é a mercadoria em seu puro valor de troca.

O dinheiro é a forma mais abstrata da moeda; a moeda, a forma mais abstrata da mercadoria; a mercadoria, a forma mais abstrata do trabalho.

Trabalho acumulado é mercadoria, mercadoria que se troca é moeda, moeda sem valor de uso é dinheiro.

Dinheiro é trabalho acumulado que se troca e não se usa.

Exemplo: Respirar é trabalhar. Respirar é um trabalho que produz satisfação imediata. Como não é um acúmulo de trabalho, o ar disponível não é mercadoria. Respirar o ar disponível não é consumir. Acondicionar o ar é um trabalho que não produz satisfação imediata, o ar condicionado é uma mercadoria.

Toda mercadoria com valor de uso possui uma matéria. A matéria é o que é usado em uma mercadoria.

O dinheiro existe, mas não tem matéria.

Biografia

A filosofia, malabarismo do pensar, matemática dos conceitos? Com certeza, mas não só isso. A filosofia é, também, acondicionamento, produção de uma maneira de viver. É viver a vida de uma certa maneira, no jogo do que está aí com o pensável e o articulável em discurso. Filosofar é insistir, no mínimo retrospectivamente, também pelo pensamento e fala, nessa enorme e irredutível diferença entre a biografia, a escrita da vida, e a mera vida vivida.

É possível discernir entre a maneira de viver do filósofo e as outras biografias. O filósofo inscreve sua biografia, em sua própria vida, como fazem muitos outros, mas o filósofo – e isso é tudo o que o caracteriza e diferencia – vive sua vida em referência a uma doutrina.

Valter e Saura

Valter é um amigo de infância. Mudou-se para Florianópolis, sem que eu soubesse, uns dez anos antes de mim. Encontramo-nos aqui por acaso, há pouco mais de um ano, com grande surpresa para nós dois. Vive de um pequeno comércio de relógios, nos fundos de uma galeria. Tão ao fundo, que eu me pergunto como os clientes sabem de sua existência. De todo modo, a loja não parece carecer de movimento. Valter passa seus dias, ali, entre as prateleiras espelhadas apinhadas de modelos japoneses, suíços semi-falsificados, chineses. Às vezes, passo por lá, para lhe dizer bom-dia. Foi assim que fiquei conhecendo sua história. Permito-me trazê-la a público, modificando os nomes e algumas outras coisas. Valter casou-se com Saura, uma angolana de origem portuguesa, que havia vindo sozinha para o Brasil, em 1976. O pai, dono de fazenda, e o resto da família, apesar da guerra, permaneceram por lá. Logo que chegou ao Rio, encontrou o jovem Valter, apaixonaram-se um pelo outro, e casaram-se em poucos meses. Sua vida, juntos, contou-me Valter, sempre foi cercada de alegrias, filhos, amigos, parentes. Apesar da diferença cultural (os pais de Valter, no início, se mostraram receosos com o casamento binacional), entendiam-se perfeitamente. Mudaram-se para Florianópolis, por opção própria, para levar uma vida mais tranqüila e menos atribulada que a do Rio. Saura jamais retornou a Angola. Em 2002, recebeu um telegrama dos irmãos anunciando a morte do pai. Esse foi o evento que transformou as suas vidas. Não foi exatamente a tristeza que corroeu a sua felicidade conjugal, mas as estranhas e rigorosas práticas de luto, que a religião de Saura lhe exigia. Valter não sabia disso, nem jamais desconfiara, nem podia ter imaginado, Saura era adepta de um esotérico culto familiar, misto de cristianismo com tradições remanescentes de antigas tribos africanas. Estranho culto aquele, lamentava-se Valter, suas regras radicais, não tinham tido qualquer efeito sobre Saura durante todos aqueles anos de felicidade, ele nem sabia de sua existência, era uma estranha religião do luto, que só era disparada pela morte de um familiar. Enquanto o pai fora vivo, nada, sequer uma prece, nenhuma restrição alimentar. Primeiro Valter pensou tratar-se do choque da notícia, mesmo se Saura não demonstrasse qualquer distúrbio emocional com ela. Não, não se tratava de emoção, Saura não parecia cumprir todas aquelas prescrições por dor, todos os seus gestos eram o de uma pessoa resignada com os acontecimentos. De fato, parecia agir por puro dever religioso. Mesmo assim Valter pensava que aquilo fosse logo terminar. Além do quê, Saura se recusava a lhe dar qualquer explicação, já que para ela tudo aquilo pertencia aos ritos misteriosos e sagrados que não podia revelar a estranhos à família, como Valter. Passaram-se os primeiros meses, o primeiro ano, e nada da situação se abrandar, pelo contrário, a cada dia, uma nova excentricidade passava a fazer parte do costume, dos hábitos repetivivos, dos gestos, dos modos austeros do ascetismo de Saura. Isso foi lhes envenenando a vida.

Ritmo


papai pode

dalai lama

(para perceber todo o seu efeito coativo, repetir algumas vezes a leitura em voz alta dos dois versos, marcando uma pequena pausa entre eles)

O que nos engata no mecanismo destes dois versos, como uma engrenagem na outra, é essa espécie de mímica do espírito, empatia de movimento, mimetismo da forma, à qual não só a rima, mas também o ritmo nos impele. Esses dois versos de rima só interna, de sentido totalmente desconexo, engatam-se um no outro, e nos carregam nesse engate, apenas pelo ritmo. Dessa forma, o ritmo nos subjuga. Pode ser até que nos acalme, divirta; de todo modo, o ritmo nos afeta. Por isso diz Nietzsche que "o ritmo é uma coação"*; e Ricardo Reis que, devido ao ritmo, a poesia é mais disciplinada que a prosa, mais disciplinadora**. Nisso, o ritmo talvez seja superior ao sentido, e com certeza o é à rima. Sentido, rima e ritmo, três elementos da poesia, três operadores de nossa adesão ao texto, à fala e ao real, três agenciadores de nosso assujeitamento ao mundo.

(*) NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1882]. #84, Da origem da poesia.
(**) PESSOA, Fernando. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. Pp. 297-298.