Valter e Saura

Valter é um amigo de infância. Mudou-se para Florianópolis, sem que eu soubesse, uns dez anos antes de mim. Encontramo-nos aqui por acaso, há pouco mais de um ano, com grande surpresa para nós dois. Vive de um pequeno comércio de relógios, nos fundos de uma galeria. Tão ao fundo, que eu me pergunto como os clientes sabem de sua existência. De todo modo, a loja não parece carecer de movimento. Valter passa seus dias, ali, entre as prateleiras espelhadas apinhadas de modelos japoneses, suíços semi-falsificados, chineses. Às vezes, passo por lá, para lhe dizer bom-dia. Foi assim que fiquei conhecendo sua história. Permito-me trazê-la a público, modificando os nomes e algumas outras coisas. Valter casou-se com Saura, uma angolana de origem portuguesa, que havia vindo sozinha para o Brasil, em 1976. O pai, dono de fazenda, e o resto da família, apesar da guerra, permaneceram por lá. Logo que chegou ao Rio, encontrou o jovem Valter, apaixonaram-se um pelo outro, e casaram-se em poucos meses. Sua vida, juntos, contou-me Valter, sempre foi cercada de alegrias, filhos, amigos, parentes. Apesar da diferença cultural (os pais de Valter, no início, se mostraram receosos com o casamento binacional), entendiam-se perfeitamente. Mudaram-se para Florianópolis, por opção própria, para levar uma vida mais tranqüila e menos atribulada que a do Rio. Saura jamais retornou a Angola. Em 2002, recebeu um telegrama dos irmãos anunciando a morte do pai. Esse foi o evento que transformou as suas vidas. Não foi exatamente a tristeza que corroeu a sua felicidade conjugal, mas as estranhas e rigorosas práticas de luto, que a religião de Saura lhe exigia. Valter não sabia disso, nem jamais desconfiara, nem podia ter imaginado, Saura era adepta de um esotérico culto familiar, misto de cristianismo com tradições remanescentes de antigas tribos africanas. Estranho culto aquele, lamentava-se Valter, suas regras radicais, não tinham tido qualquer efeito sobre Saura durante todos aqueles anos de felicidade, ele nem sabia de sua existência, era uma estranha religião do luto, que só era disparada pela morte de um familiar. Enquanto o pai fora vivo, nada, sequer uma prece, nenhuma restrição alimentar. Primeiro Valter pensou tratar-se do choque da notícia, mesmo se Saura não demonstrasse qualquer distúrbio emocional com ela. Não, não se tratava de emoção, Saura não parecia cumprir todas aquelas prescrições por dor, todos os seus gestos eram o de uma pessoa resignada com os acontecimentos. De fato, parecia agir por puro dever religioso. Mesmo assim Valter pensava que aquilo fosse logo terminar. Além do quê, Saura se recusava a lhe dar qualquer explicação, já que para ela tudo aquilo pertencia aos ritos misteriosos e sagrados que não podia revelar a estranhos à família, como Valter. Passaram-se os primeiros meses, o primeiro ano, e nada da situação se abrandar, pelo contrário, a cada dia, uma nova excentricidade passava a fazer parte do costume, dos hábitos repetivivos, dos gestos, dos modos austeros do ascetismo de Saura. Isso foi lhes envenenando a vida.

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