13

A morte é como um cão indolente, deitado à beira da rua. Nos vê passar de um lado para o outro. Apenas nos acompanha do olhar. E um dia, zac... Mas, afinal, o que me dá de pensar na morte?

Sobras do almoço

Talvez o característico da filosofia não seja a unidade de objetos, conceitos, métodos, mas a atitude. E qual seria essa atitude? Talvez, a de alguém que, ao aproximar-se, questiona-se profundamente: “Afinal, o que é isso?”

Essa aproximação do filósofo, na verdade, é um distanciamento. O filósofo aproxima-se, distanciando-se. Não pode se fundir com aquilo do que se aproxima. Precisa estabelecer e guardar entre si e seu objeto uma distância. Mesmo que essa não seja uma distância realmente possível – por exemplo, quando o filósofo se questiona sobre a existência, sendo ele mesmo um existente. Ou quando se questiona sobre o ser humano, sendo ele mesmo um humano. De todo modo, ele se aproxima e se distancia para poder ver o que é visível para todos. A pretensão do filósofo não é ver o que ninguém vê, mas dizer algo sobre o que é visível para todos nós. Para nós que estamos tão perto, tão imersos nesse visível, que experimentamos esse visível numa proximidade tal, que não dizemos mais nada sobre ele.

A atitude do filósofo seria basicamente essa:

Estabelecer, em relação a algo de que se aproxima, uma distância, uma abertura, e preencher, e cobrir essa distância com uma fala, uma expressão, um saber, que não simplesmente repita, ou complemente, mas inove a percepção, a visão, que temos desse algo.

O problema da filosofia é que esse algo de que se aproxima não pré-existe à abordagem do filósofo, mas se configura e toma forma junto com o seu pensamento e discurso. Freqüentemente, então, o objeto da Filosofia não lhe precede.

Os problemas filosóficos são como as sobras do almoço dos filósofos.

12

A finitude absoluta é a finitude sem fim.

Em si e para si

Recebi um e-mail com uma advertência que me deixou perplexo. Segundo a mensagem, três passos (pequenos comandos) podem salvar uma vida. É que não se reconhece de pronto uma vítima de AVC (acidente vascular cerebral). Uma pessoa pode ter um pequeno desmaio, uma pequena queda, levantar-se, continuar aparentemente normal, como se nada houvesse ocorrido, e mais tarde, subitamente, morrer.

Mas um AVC causa danos imediatos, que podem ser identificados com essas três orientações:
  1. Peça que a pessoa SORRIA;
  2. Peça que a pessoa LEVANTE AMBOS OS BRAÇOS;
  3. Peça que a pessoa PRONUNCIE UMA FRASE SIMPLES (coerente) (por exemplo: "Hoje está um dia ensolarado").
Agora, fico pensando, como devo agir eu comigo mesmo? Já que vivo a maior parte do tempo sozinho, sem ninguém por perto. Tenho que me fazer eu mesmo as três injunções, se de repente me perceber caído no chão, ou se duvidar de alguma coisa, ou até mesmo, sem duvidar de nada, de vez em quando, para garantir (alguma coisa pode ter acontecido sem que eu perceba).

Assim, de tempos em tempos, sorrir, levantar os braços, pronunciar uma frase simples. Três coisas que só podem fazer bem, para quem vive. Sorrir por graça e da graça, levantar os braços e esticar o corpo, pronunciar uma frase que faça algum sentido.

Mas, em mim e para mim, como saber que eu realmente estou sorrindo? Que meus braços estão realmente para cima, e não tortos para o lado e desencontrados? Que estou dizendo alguma coisa com sentido e não um disparate?

Então, é melhor, de vez em quando, dar uma descidinha na rua, e perguntar a um passante qualquer, se realmente sorrio, se meus braços realmente estão alinhados acima da minha cabeça, se o que eu digo faz algum sentido para ele (bom, talvez possa e deva evitar esta última pergunta).

Alcyon alba

A bactéria branca Alcyon alba continua a forçar para cima os preços do óleo bruto. E não há previsão de controle. Para evitar a contaminação, vários poços e reservas, até agora sem contágio, foram momentaneamente selados. O que fez baixar a produção e subir os preços, ainda mais.

Vários petroleiros chegam ao destino com sua carga completamente atingida e inutilizável. A bactéria quebra as longas moléculas orgânicas, consumindo a energia química molecular para se reproduzir. Após a meiose, as bactérias se encadeiam umas às outras formando longos fios celulares, torcidos sobre si mesmos, que mantêm a viscosidade do óleo. O resultado do processo é uma substância oleosa e viva, sem valor energético apreciável e totalmente branca. O calor resultante não inibe a multiplicação exponencial da bactéria, pelo contrário, a favorece. Na superfície do óleo branco, forma-se uma fina camada de poeira, composta por células bacteriais em estado de ressecamento, facilmente removida pela mais leve brisa.

Alguns cargueiros, adaptados com câmaras de frio, conseguiram transportar o ouro negro, apesar de contaminado, durante vários dias, sem deflagrar o início do processo vertiginoso de reprodução bacterial. O refino do óleo, se feito no prazo correto e sob condições higiênicas precisas, consegue salvar até 60% da carga. Há esperanças de que se logre, com o aprimoramento de técnica específica, aumentar essa taxa até 80%, no correr dos anos. A tendência sinalizada será aproximar as refinarias dos campos de petróleo, em terra ou em mar, fazer o refino imediatamente após extração, e só transportar o produto refinado.

Apesar do contágio se fazer principalmente por via aérea (o mapa genealógico de ocorrências da poeira bacterial segue exatamente o percurso das correntes aéreas planetárias), algumas reservas subterrâneas foram contaminadas. Não há, até o momento, indícios confirmados de sabotagem terrorista. Acredita-se que a contaminação subterrânea tenha ocorrido pelo manejo dos campos de extração com sondas contaminadas. Embora o processo de reprodução bacterial seja muito mais lento antes da extração, a contaminação dos campos pode apresentar algum risco no futuro.

O mapa genealógico bacterial indica que o fenômeno teve sua origem nas cercanias de Buenos Aires, na Argentina. Provavelmente trata-se de um bolor, que se forma naturalmente do envelhecimento, em ambientes exageradamente úmidos, de uma antiga tinta de impressão, à base de óleo vegetal, oriunda da China, muito utilizada na impressão tipográfica de romances populares, no início do século XX, na Argentina. Esses exemplares teriam desaparecido, sem causar maiores danos, se não tivessem sido conservados, intocados, em bibliotecas municipais da periferia de Buenos Aires. Um programa nacional recente vem revitalizando essas bibliotecas, renovando o acervo, e destruindo por incineração, após digitalização, os volumes de muito pouco uso. Há suspeitas de que a mutação do bolor natural tenha ocorrido pela exposição da tinta chinesa ao raio laser, durante a digitilização.

O voto: um comportamento, duas atitudes (IV)

Aquela dupla atitude subjetiva possível, diante da urna, está nas linhas e entrelinhas do texto de Rousseau*.

Quando eu voto segundo meus interesses particulares, voto como homem individual (elemento agente no liberalismo). Quando voto pensando no que entendo ser o interesse comum – não segundo o meu particular, mas segundo aquilo que entendo ser o interesse de toda a comunidade, e que eventualmente pode contrariar o meu –, voto como cidadão (elemento agente no republicanismo).

A soma dos votos dos homens expressa a vontade de todos; a dos cidadãos, a vontade geral**.

De fato, o animus do votante é incontrolável. Pode-se exigir que o indivíduo vote, mas é impossível obter que vote como cidadão e não como simples homem (nem mesmo se concebemos a existência de uma aparelho ideológico de educação cívica).

Por isso, nossas eleições jamais expressam a vontade geral (se é que ela pode ser sequer imaginada).

Normativamente, segundo Rousseau, o fazer parte de uma comunidade política exige uma transformação do indivíduo. De homem que naturalmente é deve transfigurar-se em cidadão. Essa transformação seria a função do aparelho educacional.

Por isso, a teoria de Rousseau envolve um moralismo e uma exigência de virtude. De virtude cívica, bem entendido. Por isso, Rousseau diz que o indivíduo, ao fazer parte da comunidade política, perde sua liberdade natural (limitada só pelas suas forças), transfigurando-a em liberdade civil (limitada pela vontade geral) e em liberdade moral (pois a condição política torna o homem mestre de si, ao recompor-se como cidadão)***.

A condição de possibilidade da vontade geral está na base social, feita de homens individuais. Para que a distância entre homem e cidadão seja transponível, Rousseau sabe que deve partir de uma sociedade não muito díspare, plural. Proximidade de costumes, idéias, religião, riquezas. Ora, nossas sociedades são tudo menos isso. Quando ativo, o substrato de nossa política é a diferença, a pluralidade. Quando passivo, o substrato de nossa política é a sociedade de massa, inerte, amorfa, portanto, sem vontade.


O voto: um comportamento, duas atitudes (I)
O voto: um comportamento, duas atitudes (V)


*ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social [1757]. In: Oeuvres complètes. Vol. III. Ecrits politiques. Paris: Gallimard, 1964.
** Ibid (II, iii, 371).
*** Ibid (I, viii, 365).