Acrasia democrática II

A exacerbação da miséria humana acompanhada do imperativo do crescimento econômico. A contínua precarização das condições gerais de trabalho e de existência. A aceleração exponencial da desigualdade das riquezas. A desqualificação e a homogeneização dos singulares. A irreversível poluição e destruição dos ambientes urbanos e naturais. A multiplicação do terror e da guerra. O vigor do sentimento apocalíptico. 

Estas são tendências do capitalismo globalizado que os governos democráticos, agentes das vontades populares locais, não conseguem frear, dobrar, muito menos, reverter. Essas tendências de deterioração das condições da vida sossegada, que transformam a vida no transtorno agonístico da luta individual pela sobrevivência, mostram-se como forças inflexíveis, mecânicas, dominantes, acima de qualquer vontade. Forças anônimas e incontroláveis, sobre as quais a racionalidade governamental e as vontades dos governantes não têm qualquer ascendência. Muito pelo contrário, as ações governamentais repetidamente as favorecem e reforçam.

Tudo o que se faz, no governo e na sociedade, apenas repete e acentua, aparentemente contra as nossas vontades conscientes, a velocidade e a intensidade dessas forças negadoras da vida. O sentimento apocalíptico, a grande melancolia do fim, isso é o niilismo ético-político repetido.

Tal como na psicologia individual, essas tendências incontroláveis e repetidas parecem expor, na psicologia social, a evidência de uma compulsão de repetição do desprazer, como uma pulsão de morte negadora do princípio da vida, que nos deixa diante do paradoxo de que “a meta de toda a vida é a morte”*.

Só sob a influência de uma pulsão inconsciente se explica a fraqueza da vontade democrática. A força cega e mecânica do capital subjuga as melhores intenções. Diante dela, toda consciência e toda vontade é fraca. “Chamo servidão, escreve Spinoza, a impotência humana para moderar e coagir os mecanismos afetivos. O ser humano, na sua sujeição a esses mecanismos, não tem domínio de si, é dominado pelas forças do que está disposto, em cujo poder se encontra, a tal ponto que é frequentemente forçado, apesar de ver o que é melhor para ele, a perseguir o que é pior”**.






(*) FREUD, Sigmund. Au-delà du principe de plasir. Trad. Jean-Pierre Lefebvre. Paris: Points, 2014 [1920]. Capítulo V. P. 128.

(**) Livre tradução de um trecho do início do prefácio da quarta parte da Ética de Spinoza.

Acrasia democrática

A democracia (enquanto governo), pretenso reino da liberdade, na sua impotência diante das forças mecânicas, anônimas e cegas do capitalismo, com efeito, é servidão. 

Não nos espanta que a incompetência dos governos democráticos e a fraqueza da vontade dos representantes do povo nos deixem às portas da repetição do voluntarismo, qualquer que seja, de direita, de esquerda, militar ou religioso. É preciso insistir, a crítica à acrasia do governo democrático, daqueles expertos do político que sabem o que é o melhor, mas perseguem o pior, espelha muitos pontos de uma velha crítica voluntarista que, em outras épocas, conduziu a democracia ao nazismo: “O declínio espiritual da terra está tão adiantado que as nações correm o perigo de perder o que resta de sua energia espiritual, que possibilita ver e ponderar esse declínio (tomado na relação com a história do ‘ser’). Essa simples observação não tem nada a ver com o pessimismo cultural nem com qualquer otimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a transformação do humano em massa, o ódio e a suspeita de tudo o que é livre e criativo, assumiram tais proporções sobre toda a terra que tais categorias infantis como pessimismo e otimismo tornaram-se, desde a muito tempo, ridículas”*. 

Onde a salvação está aparente, florece também o perigo.






(*) HEIDEGGER, Martin. An Introduction to Metaphysics. London: Yale University Press, 1987 [1935, 1953]. P. 38.


Reforma política, já! – III

A democracia é o tipo de governo que, por sufrágio universal, faz apelo ao povo, para a sua legitimação. No entanto, os eleitos pelo povo não governam para o povo, senão secundariamente. A força mecânica do capital se impõe sobre eles e os subjuga; a ciência econômica determina toda a arte de governar. A democracia, como seria, nas disposições atuais, qualquer outra forma de governo, é, efetivamente, o poder esperto da riqueza associado à competência experta dos economistas.

O governo dito democrático é altamente permeável às forças econômicas. Já pelo “show” do processo eleitoral democrático, absolutamente espetacular. Ora, como dizia Debord, “o espetáculo, compreendido em sua totalidade, é, ao mesmo tempo, o resultado e o projeto do modo de produção existente”*.






(*) DEBORD, Guy. La société du spectacle. 3ª ed. Paris: Gallimard, 1992 [1967]. #6. P. 17. 

Uma recente campanha do Tribunal Superior Eleitoral chega ao cúmulo de apresentar as eleições como um “show de democracia”. Conferir: https://youtu.be/z69qL9m849s.

Reforma política, já? – II

Em parte como indicava Schumpeter, a democracia atual, enquanto arte de governar, é um sistema de eleição de chefes (os muitos senhores, domini momentâneos de repartições do poder), que seleciona os mais competentes: “o método democrático, escrevia ele, é o sistema institucional de tomada de decisões políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de determinar essas decisões ao termo de uma luta concorrencial que tem como objeto o voto de um povo”*.

A competência desses chefes, porém, contrariamente ao que imaginava Schumpeter, não é a de governar, mas a de ganhar a “luta concorrencial” e a de manter-se na vitória.

A democracia é tão somente um palco para a luta de tiranos.



(*) Joseph Alois Schumpeter, em Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984 [1942]. Apud: VATTIMO, Gianni (Org.). Encyclopédie de la philosophie. Paris: Garzanti, 2002 [1981]. Démocratie. P. 376.



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A finalidade é no tempo, quer dizer, abstratamente, o que a direção, arquetipicamente, foi no espaço.


Reforma política, já?


A reforma política, já! Como se nós já soubéssemos como reformá-la, a política, quando ainda devemos construí-la, lutar por ela.

Não podemos deixar que os mesmos partidos, os mesmos parlamentares, os eleitos, os expertos, os espertos, façam a reforma.

Os únicos a ter uma resposta pronta (disponível, já) para a reforma política são aqueles que sempre têm uma carta na manga. Que são competentes em pôr cartas na manga, para recolocá-las no jogo no momento oportuno. Os oportunistas que sabem jogar o jogo.

Ora, não queremos mais jogar esse jogo!

“Não se trata mais, agora, essencialmente, de tomar parte desses jogos de poder, para fazer com que se respeite mais e melhor sua própria liberdade ou seus próprios direitos; simplesmente, não queremos mais esses jogos. Não se trata tampouco de afrontamentos no interior dos jogos, mas de resistências ao jogo e de recusa do próprio jogo”.
FOUCAULT, Michel. La philosophie analytique de la politique. Texto 232 [1978]. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François; LAGRANGE, Jacques (Orgs.). Michel Foucault: Dits et écrits. Vol. II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001 [1994]. P. 543.

Reforma política! (não já! antes, é preciso discuti-la!)

Os sistemas eleitorais e partidários, correntes em nossos regimes políticos legitimados pelo sufrágio universal (comumente chamados de democracias), permitem o acesso ao poder aos mais competentes. Essa competência, no entanto, não é a de governo, como se esperaria. Mas, a competência para disputar eleições, para brigar pelo poder, para intrigar contra os partidos adversários, para manipular e conduzir a opinião. 

O sistema eleitoral partidário faz com que sejamos governados por aqueles que desejam acima de tudo governar, e estão dispostos a lutar, a matar e, até mesmo, a morrer por isso. Isto é, por aqueles que não têm outro objetivo maior na existência, que têm um interesse claro e exclusivo em exercer o poder, e que, portanto, quando ganham as eleições, tiram para si grande proveito disso.

Para evitar essa apropriação do poder em vista desses benefícios, deveríamos ser governados por aqueles que não têm interesse em governar, porque, acreditam, não tirariam nenhum proveito pessoal do exercício do poder. Governados por aqueles que não desejam governar. Aqueles indivíduos comuns que apenas desejam beber, comer, amar e viver sossegados.

_Ora, mas tais indivíduos são certamente incompetentes para governar!

O governo dos indivíduos comuns, com seus desejos simples, talvez, seja “um remédio a um mal bem mais grave e mais provável que o governo dos incompetentes: o governo de uma certa competência, aquela dos homens hábeis em tomar o poder pela intriga”*.



(*) RANCIÈRE, Jacques. La haine de la démocracie. Paris: La Fabrique, 2005. P. 49.

Massa no cinema?

André Bazin* contestou a ideia de Rosenkrantz, que pretendia por meio dela distinguir o cinema do teatro, ao defender que, no cinema, o processo de identificação do espectador com os personagens da tela é natural e passivo, enquanto, no teatro, ao contrário, a presença dos corpos dos atores impede essa identificação imaginária natural, mas exige, para tanto, da parte do espectador, uma vontade ativa e uma inteligência consciente, a fim de abstrair a realidade objetiva dos atores.

Ainda de acordo com Rosenkrantz, a identificação imaginária dos espectadores com o herói do filme perfaz transitivamente [se A=B, se C=B, então, A=C] a identificação entre os espectadores, transformando-os em uma massa, com a homogeneização das individualidades e o rebaixamento da capacidade intelectual e da consciência*. Algo que não ocorreria no teatro, onde a identificação exige um esforço intelectual e de consciência.

Segundo Bazin, no entanto, esse critério não é definitivo; nem a distinção entre teatro e cinema, absolutamente intransponível (ele defende o trânsito de conteúdo dramático entre um e outro). Já que “o cinema dispõe de procedimentos de mise-en-scène que favorecem a passividade ou, ao contrário, excitam mais ou menos a consciência”**. Idem para o teatro, no sentido inverso. De tal maneira que, o critério inequívoco da distinção entre cinema e teatro já não se pode encontrar aí.





(*) Características atribuídas à massa por Gustave Le Bon (Psychologie des foules, 1895).

(**) BAZIN, André. Teatro e cinema [1951]. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. In: O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014 [1985]. Teatro e cinema [1951]. P. 177.

O “ideal do eu”

_O “ideal do eu”* é o eu que eu não sou, mas que desejaria ser, porque é o eu que eu deveria ser.

O “ideal do eu” é, portanto, ontologicamente, um não-ser, uma negação do eu, que envolve, politicamente, o desejo próprio numa exversão, numa captura, pela incorporação de uma exterioridade, moralmente, isto é, como expressão de um dever.







(*) Conferir: FREUD, Sigmund. Psicologia das massa e análise do eu [1921]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 67 in fine.

O documentário: a ordem e a conexão das coisas


A relação entre o filme-documentário e a ficção e a realidade pode assumir diferentes proporções, mas é impossível que o documentário não proceda a uma seleção e a um arranjo dos fatos reais; e seleção e arranjo são procedimentos que, se não distorcem completamente a realidade, inventam uma ordem (que põe os fatos reais sob uma relação hierárquica de importância) e uma conexão (que expõe a maneira pela qual os fatos se ligam uns aos outros) que é distinta da ordem e da conexão pela qual os fatos se manifestam, aparecem ou acontecem, na realidade.

De tal modo que, por mais realista que seja, todo documento de cultura, em sua elevação, como pensava W. Benjamin, lança sua sombra sobre o relevo menos elevado, ocultando assim diversos aspectos da realidade.

Mas a relação entre o documentário e a realidade é tão complexa que ocorre o documentário obter acesso a certos aspectos do real que, antes, permaneciam ocultos, sob as camadas mais aparentes do real. Como parece ocorrer no recentíssimo caso do documentário televisivo sobre a vida do milionário Mr. Durst (no final da filmagem do documento, Mr. Durst, surpreendentemente, confessa ter realmente cometido, ao longo da sua vida, os três assassinatos dos quais era suspeito).




Como é possível desejar o fascismo?


Para responder a essa questão, é preciso expor, se possível, a definição genética do desejo de fascismo.

I
O desejo de fascismo, enquanto desejo em fixidez objetal, só pode tratar-se de uma certa determinação do desejo de afirmação da vida, que, numa exversão (numa inversão para fora), passa a ter como objeto o preenchimento de uma certa falta percebida: o lugar vazio do líder-general-rei (finalmente, do deus-pai).

Esse lugar vazio é gerado e posto em evidência pelas contínuas subversões democráticas das hierarquias tradicionais e pelo nojo pavoroso que a elite sente diante da aparência cada vez mais evidente do pobre e feio.

O líder fascista é resultante de dois processos convergentes complementares. Um processo que, na crise da homogeneidade[1] mercadológica, envolve a sua parte dominante, a elite enojada, e outro que se aplica sobre a massa social heterogênea que é mercadologicamente incomensurável. Nessa convergência, desaparece o Estado enquanto princípio formal da coexistência de deveres e de direitos.

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[1] É Bataille que nos fala da “parte homogênea da sociedade”. Para ele, “homogeneidade significa comensurabilidade dos elementos e consciência dessa comensurabilidade”. BATAILLE, Georges. La structure psychologique du fascisme [1933]. Hermès, Paris, nº 5-6, 1989, p. 137-160. Disponível em: http://documents.irevues.inist.fr/handle/2042/15095. Acessado em: 09.03.2015. P. 137.

II
Quando nos tempos democratizantes, os distúrbios de todas as ordens, em todas as hierarquias, ameaçam a homogeneidade, a elite dominante (em seu caráter substancial e separado em relação à heterogeneidade da massa incomensurável, inútil, invendável e insubmissa), envolvida pela náusea pavorosa, pelo nojo e pelo ódio do contato com os dejetos heterogêneos, pode ceder, com vistas à negação da potência desses dejetos, à atração de natureza bélica e violenta de um líder, chefe de milícia, general de exército, mesmo que ele próprio pertença ao setor heterogêneo da sociedade (tanto porque ele provém de baixo, do setor miserável, vivido no ressentimento, como porque ele se coloca acima de todo o setor homogêneo). Pois o líder, é importante destacar, na salvação da homogeneidade, permanece na heterogeneidade, isto é, no elemento da violência imperativa.

III 
O alcance do controle imperativo total da massa heterogênea, massa que a elite homogênea despreza, pelo líder heterogêneo, se dá por meio da militarização ou da dominação.

IV
Quando militarizada, absorvida pelo exército, a parte da massa heterogênea, amorfa e molóide, que vem compô-lo tem sua heterogeneidade sadicamente negada, pela formação, esteticamente organizada, interiormente homogênea, de uma “ordem geométrica depurada”[1] dos seus elementos heterogêneos. 

No entanto, devido aos limites impostos pela parte homogênea da sociedade, não se pode militarizar toda a massa social heterogênea. Isso corresponderia a suprimir a substância da homogeneidade econômica (a base social homogênea, utilizada pela elite, com quem o líder pactuou), em troca da homogeneidade apenas interna do exército.

Assim, na neutralização da heterogeneidade da massa social, ela não pode ser integralmente militarizada em torno do líder. A sociedade não pode, toda ela, assumir a forma do exército.
O restante da massa social heterogênea precisa, então, ser neutralizada por meio da dominação militar. Mas, “é difícil encontrar exemplos de dominações exclusivamente militares duráveis”[2].

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[1] Ibid. P. 150. 
[2] Ibid. P. 151.

V
Como a incorporação da massa heterogênea no exército tem, necessariamente, um limite; como a dominação exclusivamente militar, por outro lado, necessariamente, dura pouco; a atração interna que o líder armado exerce sobre os membros do exército precisa ser complementada por um elemento externo de atração, que se aplique sobre a totalidade da população. Resta, então, a “atração religiosa” – pois, definitivamente, é de caráter religioso o princípio arcaico ou “a fonte da autoridade social”[1].

Quer dizer, o líder-general precisa tornar-se também um rei, cujo poder sugestivo seja o equivalente de uma emanação do poder divino – e isso se alcança somente a partir da sacralização de um elemento capaz de exercer ficticiamente algum magnetismo sacro, que transforme o general em soberano (ou em “Califa”[2], que exerce, ao mesmo tempo, o poder sugestivo militar e religioso).

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[1] Ibid. P. 151. [2] Ibid. P. 153. No Novo Mundo, poderíamos pensar em um general-ministro-evangélico.

VI
Essa sacralização do líder militar, nas circunstâncias de crise da homogeneidade, em que a elite dominante homogênea alia-se a ele, não é algo tão difícil de acontecer.

A essência da sacralidade envolve sempre um caráter dual. O sagrado envolve, ao mesmo tempo e correlativamente, dois aspetos opostos: o puro e o impuro. A antropologia social mostrou que “há, em certo sentido, identidade dos contrários entre a glória e a decadência, entre as formas elevadas e imperativas (superiores) e as formas miseráveis (inferiores)”[1]. Ambas, as formas superiores como as inferiores, o exjeto como o abjeto, são intocáveis, taboo.

Na condição pavorosa da homogeneidade, o abjeto (o objeto do ódio e do nojo) já está presente na relação com o elemento miserável, econômica e esteticamente, da massa heterogênea intocável. A condição pavorosa já coloca o sagrado, como decadência abjeta e heterogênea, em relação com o elemento homogêneo (composto tanto por dominantes como por dominados); prepara, assim, as condições do surgimento do exjeto ou da superioridade gloriosa.

Para a psicanálise social[2], essa sacralização remete à sobredeterminação do general pela figura do ideal do eu, isto é, pela figura do pai idealizado como tudo aquilo que o eu não é, mas desejaria ser, porque deveria sê-lo.

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[1] Ibid. P. 144.
[2] Conferir: FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Freud ainda trata o exército como massa, quando sua finalidade é a negação da massa. Esse equívoco será desfeito por Canetti. CANETTI, Elias; ADORNO, Theodor W. Diálogo sobre as massas, o medo e a morte. Uma conversa entre Elias Canetti e Theodor W. Adorno [1962]. Trad. Otacílio F. Nunes Jr.. Novos Estudos, São Paulo, nº 21, julho, 1988, p. 116-132. Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/v1/issues/view/55. Acessado em: 09.03.2015.

O inimigo da massa


Muito mais do que o inimigo externo, também a massa odeia e teme o seu inimigo interno. “Cada um dos membros de uma tal massa abriga em si um pequeno traidor, que deseja comer, beber, amar e ter o seu sossego”*, aliás, como normalmente todo o mundo.

Esses desejos de vida, tão simples e despretensiosos, são, porém, individuais. São a expressão mais imediata da “força natural”** de cada um para afirmar, a seu próprio modo, a sua existência singular.

É, necessariamente, na livre expressão dessas forças individuais que os membros da massa tendem a se apartar uns dos outros. Esses desejos, tão naturais e leves, tendem resgatar o indivíduo de sua igualação com os demais.




* CANETTI, Elias. Massa e poder. 4ª reimpressão. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1960]. P. 21.

** SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres V: Traité politique. Trad. Charles Ramond. Paris: PUF, 2005 [1677]. II, §5. P. 97.

Nenhum direito sem dever! Dizem os chefes de Estado


O Estado é, formalmente, uma espécie de contabilidade; o legislador-chefe, um tipo de contador. Afinal, a lei formal do Estado é “a compensação dos direitos e dos deveres”*. Nenhum direito sem dever!

Mas os direitos e os deveres, de fato, não se compensam. Eles dividem afetivamente o desejo do indivíduo, e o tornam uma figura ambígua, quase um cidadão-inimigo, um cidadão-súdito.

Enquanto gozam dos seus direitos, e usufruem da cidade política, os indivíduos sentem-se cidadãos. Por outro lado, em relação aos seus deveres, e na medida em que devem obedecer, sentem-se súditos**.

Os cidadãos são livres e membros da democracia (o reino dos desejos e de sua satisfação), que não é um tipo de Estado ou forma de governo, mas um paradoxal arranjo-desarranjo, sustentação governamental e desgoverno.

Todas os Estados são hierárquicos. E os súditos obedecem dolorosamente às suas leis.



(*) BATAILLE, Georges. La structure psychologique du fascisme [1933]. Hermès, Paris, nº 5-6, 1989, p. 137-160. Disponível em: http://documents.irevues.inist.fr/handle/2042/15095. Acessado em: 09.03.2015. P. 147.

(**) Para a distinção entre cidadão e súdito, conferir: SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres V: Traité politique. Trad. Charles Ramond. Paris: PUF, 2005 [1677]. III, §1. P. 113.

Diário de Moscou XXV: o ódio do berlinense ao moscovita em uma mesma cidade


Bataille* explicaria o ódio social aos mais pobres (que são, ao mesmo tempo, para a autocompreensão narcísica dos “normais”, os mais desarrumados e feios), como uma questão que tange ao sagrado, uma questão de taboo (proibição de tocar). Um ódio estético-teológico produzido pelo nojo que, “normalmente”, se sente com as despesas ou os dejetos improdutivos do corpo individual ou social.


(*) Cf. BATAILLE, Georges. La structure psychologique du fascisme [1933]. Hermès, Paris, nº 5-6, 1989, p. 137-160. Disponível em: http://documents.irevues.inist.fr/handle/2042/15095. Acessado em: 09.03.2015. P. 143.

Massa e poder


Em Freud*, massa e poder são pertinentes a uma mesma e única estrutura, aquela da psicologia individual do complexo de Édipo projetada ao nível sociológico.

Em Canetti**, massa e poder constituem, genealogicamente, duas séries distintas. O poder manifesto é um processo de contínua polarização das estruturas diferenciais de comando-obediência. O poder dá ordens ou, em outras palavras, ameaça de morte. A massa, por sua vez, é gerada na e pela igualação. A massa resulta de um alívio, de um gozo. O poder, pelo contrário, da dor da obediência. No limite, o poder, cuja essência é a sobrevivência, tende à aniquilação em massa. O poder absoluto é o poder de sobreviver à morte de todos os demais, os desapoderados. A sobrevivência é o poder em ato.





(*) FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

(**) CANETTI, Elias. Massa e poder. 4ª reimpressão. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1960].


Cidadão-inimigo


Há uma figura esplêndida exposta por Spinoza (no Tratado teológico-político, XVII, §1): o duplo cidadão-inimigo. Ninguém é totalmente capturado como cidadão, sem perseverar em um quê, maior ou menor, de inimizade ou resistência aos comandos do poder.

O temível inimigo existente no próprio cidadão é esse resto de potência humana inalienável e inapreensível pelo imperium.

Por sorteio, quer dizer, por necessidade


Sob o regime da igualdade, escolheremos por sorteio quem de nós nos governará. Um lance de dados. Mas, nenhuma brecha há aqui para o acaso. Os dados são lançados. Necessariamente, eles rolam livres sobre a mesa até parar em um arranjo certo.


Kkkkkkkk... Novo na WEB...

Novo expoente da sociologia, na Web...: A ética do protesto e o espírito do individualismo de massa!

P. 53: “a geração perdida, o não-sistema do humano democrático [falsamente?] acusado de individualismo de massa”.


A degeneração (a geração perdida) democrática

O “humano democrático”: o filho legítimo dessa cidade-sistema sem princípio sistemático que é a democracia sem contratos.

Para Platão: “nesta cidade, os animais que estão a serviço dos homens são mais livres que em outras [...]. É, ali, como diz o provérbio, que as cadelas se tornam absolutamente semelhantes às suas donas, e os cavalos e os burros, acostumados a se mover, com soberba, em completa liberdade, esbarram e empurram, a todo instante, o passante que eles encontram em seu caminho, se este, desatento, não se põe de lado.”*

O contrato político (sempre antidemocrático) é a alienação mesma da potência de cada um, em troca de vida, da vida dada (que já se tem). A alienação da potência de cada um constitui o poder sobre todos. Esse poder que, justamente, garante o cumprimento dos contratos (e não apenas do contrato político; também daqueles de serviço que as “bestas” estabeleceriam com seus senhores se não fossem bestas).

Porém, o humano democrático, essa espécie bestial de humanos, nada sabe nem quer saber desses contratos. Como as bestas, que são sem palavra, não cumpre promessas assim que lhe soltam os arreios.

O humano democrático, ele diz: _não tenho nada a ver com isso, com essas promessas. Não escolhi nascer, nem viver aqui-agora. Não quis esse contrato a que sou forçado. Não nasci devedor. Não devo nada. A ninguém.







(*) PLATÃO. La République. Trad. Georges Leroux. 2e ed. Paris: GF Flammarion, 2004. 563c. P. 433.

Individualização / individuação (outra distinção possível)


A individualização é um processo analítico, que parte do real, e encontra, pela análise, o indivíduo no seu fundamento.

A individuação, por sua vez, é um processo sintético. Parte do real, como fundamento ou causa, para constituir, ou sintetizar, o indivíduo como efeito.


A ontologia política que nunca alcança a justiça (meio-termo), mas visa ao excesso

Se há uma justiça natural, há uma política natural (cósmica, deontológica, a política que deve ser, aquela que põe tudo em ordem, conforme a justa natureza dos humanos). Mas, se não há uma justiça natural, então, não há como naturalizar a finalidade da política.

Individualismo de massa?


Chega-se à expressão “individualismo de massa” como diante de um oximoro. Afinal, a massa é a denegação do indivíduo; e vice-versa.

Para pensar o “individualismo de massa” é preciso partir do processo de individualização até o seu ismo.

No fim da individualização, o indivíduo se torna o fundamento do real. O centro desde o qual se desenha a circunferência, o limite e a abrangência do plano do real. O indivíduo é o centro de tudo, T.

No simples individualismo, o indivíduo a é o centro de A; o indivíduo b, o centro de B; x, de X; e assim por diante.

No “individualismo de massa”, cada indivíduo é um centro, como no individualismo simples, mas cada um é o centro de um único e mesmo círculo M. Esse é o seu aspecto de massa. 

A totalidade, no “individualismo de massa”, é amarrada não desde o centro, que é múltiplo, mas desde a sua abrangência, que é uma única.

O “individualismo de massa” é um mesmo e único círculo, uma mesma e única abrangência do real, uma realidade idêntica; círculo feito, porém, desde tantos centros quantos forem os indivíduos que compõem a massa.

Cada indivíduo-centro que compõe a massa é o ponto de sustentação do real, mas todos eles sustentam um real que, apesar de multicentral, é um único e mesmo real, homogeneizado.

Este círculo homogêneo do qual cada um, separadamente, é o centro de constituição, é, para os críticos do “individualismo de massa”, a sociedade de consumo, concebida como “o reino de um indivíduo ávido de consumir sempre mais”*, um reino de muitos reis uniformes no seu comando.

Essa crítica à sociedade do consumo confunde-se com a crítica elitista à democracia no desprezo das massas que desprezam as elites**. Contra isso, é preciso insistir na democracia como o reino da igualdade não massificada ou como o reino da complexidade sistêmica ou convergente das diferenças. Insistir que a democracia não é constituída pela massa, mas pela potência complexa da multidão.






(*) RANCIÈRE, Jacques. La haine de la démocracie. Paris: La Fabrique, 2005. P. 27.
(**) Conferir: SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. Trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

Melhores, piores


Ora, sem dúvida, os piores são sempre os mais pobres.

“Não surpreende que os representantes da paixão consumidora [e niveladora, que é responsável pela avidez individualista e igualitária que torna inviável o regime democrático], que excitam a maior indignação de nossos ideólogos [meritocratas], sejam, em geral, aqueles cuja capacidade de consumir é a mais limitada”. 
RANCIÈRE, Jacques. La haine de la démocracie. Paris: La Fabrique, 2005. P. 35.


Entre proposições, a melhor?

Nós discutimos a respeito de proposições, quando o que conta, criticamente, são as suas demonstrações, ou seja, os dispositivos de constituição das proposições.


Meritocracia, já!?


Você me diz: _a cada vez mais, estou convencido de que a democracia faliu. Precisamos de um governo geral meritocrático. Que retribua com poder desigual os esforços e valores desiguais. O único critério de igualdade deve ser a igualdade de oportunidades. Sob essa condição: aos melhores, a direção! Os piores, a seu lugar: silêncio e obediência!

Ao manter, por escrúpulo, a meritocracia como regime de igualdade de direitos, você, subrepticiamente, torna o direito equivalente à oportunidade, enquanto afasta do direito qualquer poder positivo. “Ter o direito” fica igual a “ter a oportunidade”. A oportunidade, nesse sentido, porém, é apenas uma porta, uma abertura, nada de positivo. Toda positividade, todo acesso concreto ao positivo resulta do esforço individual.

Imagem da meritocracia: uma sala repleta com muitas pessoas. Um início de incêndio*. Uma porta estreita se abre (a oportunidade igual para todos). No entanto, poucos podem passar por ela. Apenas os melhores terão sucesso.

Mas, eu lhe pergunto, as coisas já não são suficientemente assim como você gostaria que elas fossem? Já não vivemos em uma “mérito”cracia, sob alarme de incêndio? [Tudo acontece como se houvesse uma estreita porta aberta; de fato, não há nenhuma, o que aumenta o desespero de quem espera.]

E você: _não! Falta-nos a real igualdade de oportunidades. Numa sala pegando fogo, as oportunidades não são iguais, alguns serão privilegiados: os que estão mais próximos da porta que se abre, os mais fortes na luta...

E, eu: _ah, bom, mas, nesse caso, qual seria a diferença entre o mérito e a sua expressão como proximidade ou força?






(*) O fogo converte essas muitas pessoas em massa! Que, no entanto, é logo dissolvida em luta de cada um contra todos os outros pela sobrevivência. Conferir: CANETTI, Elias. Massa e poder. 4ª reimpressão. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1960]. P. 25 ss.