Como é possível desejar o fascismo?


Para responder a essa questão, é preciso expor, se possível, a definição genética do desejo de fascismo.

I
O desejo de fascismo, enquanto desejo em fixidez objetal, só pode tratar-se de uma certa determinação do desejo de afirmação da vida, que, numa exversão (numa inversão para fora), passa a ter como objeto o preenchimento de uma certa falta percebida: o lugar vazio do líder-general-rei (finalmente, do deus-pai).

Esse lugar vazio é gerado e posto em evidência pelas contínuas subversões democráticas das hierarquias tradicionais e pelo nojo pavoroso que a elite sente diante da aparência cada vez mais evidente do pobre e feio.

O líder fascista é resultante de dois processos convergentes complementares. Um processo que, na crise da homogeneidade[1] mercadológica, envolve a sua parte dominante, a elite enojada, e outro que se aplica sobre a massa social heterogênea que é mercadologicamente incomensurável. Nessa convergência, desaparece o Estado enquanto princípio formal da coexistência de deveres e de direitos.

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[1] É Bataille que nos fala da “parte homogênea da sociedade”. Para ele, “homogeneidade significa comensurabilidade dos elementos e consciência dessa comensurabilidade”. BATAILLE, Georges. La structure psychologique du fascisme [1933]. Hermès, Paris, nº 5-6, 1989, p. 137-160. Disponível em: http://documents.irevues.inist.fr/handle/2042/15095. Acessado em: 09.03.2015. P. 137.

II
Quando nos tempos democratizantes, os distúrbios de todas as ordens, em todas as hierarquias, ameaçam a homogeneidade, a elite dominante (em seu caráter substancial e separado em relação à heterogeneidade da massa incomensurável, inútil, invendável e insubmissa), envolvida pela náusea pavorosa, pelo nojo e pelo ódio do contato com os dejetos heterogêneos, pode ceder, com vistas à negação da potência desses dejetos, à atração de natureza bélica e violenta de um líder, chefe de milícia, general de exército, mesmo que ele próprio pertença ao setor heterogêneo da sociedade (tanto porque ele provém de baixo, do setor miserável, vivido no ressentimento, como porque ele se coloca acima de todo o setor homogêneo). Pois o líder, é importante destacar, na salvação da homogeneidade, permanece na heterogeneidade, isto é, no elemento da violência imperativa.

III 
O alcance do controle imperativo total da massa heterogênea, massa que a elite homogênea despreza, pelo líder heterogêneo, se dá por meio da militarização ou da dominação.

IV
Quando militarizada, absorvida pelo exército, a parte da massa heterogênea, amorfa e molóide, que vem compô-lo tem sua heterogeneidade sadicamente negada, pela formação, esteticamente organizada, interiormente homogênea, de uma “ordem geométrica depurada”[1] dos seus elementos heterogêneos. 

No entanto, devido aos limites impostos pela parte homogênea da sociedade, não se pode militarizar toda a massa social heterogênea. Isso corresponderia a suprimir a substância da homogeneidade econômica (a base social homogênea, utilizada pela elite, com quem o líder pactuou), em troca da homogeneidade apenas interna do exército.

Assim, na neutralização da heterogeneidade da massa social, ela não pode ser integralmente militarizada em torno do líder. A sociedade não pode, toda ela, assumir a forma do exército.
O restante da massa social heterogênea precisa, então, ser neutralizada por meio da dominação militar. Mas, “é difícil encontrar exemplos de dominações exclusivamente militares duráveis”[2].

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[1] Ibid. P. 150. 
[2] Ibid. P. 151.

V
Como a incorporação da massa heterogênea no exército tem, necessariamente, um limite; como a dominação exclusivamente militar, por outro lado, necessariamente, dura pouco; a atração interna que o líder armado exerce sobre os membros do exército precisa ser complementada por um elemento externo de atração, que se aplique sobre a totalidade da população. Resta, então, a “atração religiosa” – pois, definitivamente, é de caráter religioso o princípio arcaico ou “a fonte da autoridade social”[1].

Quer dizer, o líder-general precisa tornar-se também um rei, cujo poder sugestivo seja o equivalente de uma emanação do poder divino – e isso se alcança somente a partir da sacralização de um elemento capaz de exercer ficticiamente algum magnetismo sacro, que transforme o general em soberano (ou em “Califa”[2], que exerce, ao mesmo tempo, o poder sugestivo militar e religioso).

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[1] Ibid. P. 151. [2] Ibid. P. 153. No Novo Mundo, poderíamos pensar em um general-ministro-evangélico.

VI
Essa sacralização do líder militar, nas circunstâncias de crise da homogeneidade, em que a elite dominante homogênea alia-se a ele, não é algo tão difícil de acontecer.

A essência da sacralidade envolve sempre um caráter dual. O sagrado envolve, ao mesmo tempo e correlativamente, dois aspetos opostos: o puro e o impuro. A antropologia social mostrou que “há, em certo sentido, identidade dos contrários entre a glória e a decadência, entre as formas elevadas e imperativas (superiores) e as formas miseráveis (inferiores)”[1]. Ambas, as formas superiores como as inferiores, o exjeto como o abjeto, são intocáveis, taboo.

Na condição pavorosa da homogeneidade, o abjeto (o objeto do ódio e do nojo) já está presente na relação com o elemento miserável, econômica e esteticamente, da massa heterogênea intocável. A condição pavorosa já coloca o sagrado, como decadência abjeta e heterogênea, em relação com o elemento homogêneo (composto tanto por dominantes como por dominados); prepara, assim, as condições do surgimento do exjeto ou da superioridade gloriosa.

Para a psicanálise social[2], essa sacralização remete à sobredeterminação do general pela figura do ideal do eu, isto é, pela figura do pai idealizado como tudo aquilo que o eu não é, mas desejaria ser, porque deveria sê-lo.

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[1] Ibid. P. 144.
[2] Conferir: FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Freud ainda trata o exército como massa, quando sua finalidade é a negação da massa. Esse equívoco será desfeito por Canetti. CANETTI, Elias; ADORNO, Theodor W. Diálogo sobre as massas, o medo e a morte. Uma conversa entre Elias Canetti e Theodor W. Adorno [1962]. Trad. Otacílio F. Nunes Jr.. Novos Estudos, São Paulo, nº 21, julho, 1988, p. 116-132. Disponível em: http://novosestudos.uol.com.br/v1/issues/view/55. Acessado em: 09.03.2015.

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