Acrasia democrática II

A exacerbação da miséria humana acompanhada do imperativo do crescimento econômico. A contínua precarização das condições gerais de trabalho e de existência. A aceleração exponencial da desigualdade das riquezas. A desqualificação e a homogeneização dos singulares. A irreversível poluição e destruição dos ambientes urbanos e naturais. A multiplicação do terror e da guerra. O vigor do sentimento apocalíptico. 

Estas são tendências do capitalismo globalizado que os governos democráticos, agentes das vontades populares locais, não conseguem frear, dobrar, muito menos, reverter. Essas tendências de deterioração das condições da vida sossegada, que transformam a vida no transtorno agonístico da luta individual pela sobrevivência, mostram-se como forças inflexíveis, mecânicas, dominantes, acima de qualquer vontade. Forças anônimas e incontroláveis, sobre as quais a racionalidade governamental e as vontades dos governantes não têm qualquer ascendência. Muito pelo contrário, as ações governamentais repetidamente as favorecem e reforçam.

Tudo o que se faz, no governo e na sociedade, apenas repete e acentua, aparentemente contra as nossas vontades conscientes, a velocidade e a intensidade dessas forças negadoras da vida. O sentimento apocalíptico, a grande melancolia do fim, isso é o niilismo ético-político repetido.

Tal como na psicologia individual, essas tendências incontroláveis e repetidas parecem expor, na psicologia social, a evidência de uma compulsão de repetição do desprazer, como uma pulsão de morte negadora do princípio da vida, que nos deixa diante do paradoxo de que “a meta de toda a vida é a morte”*.

Só sob a influência de uma pulsão inconsciente se explica a fraqueza da vontade democrática. A força cega e mecânica do capital subjuga as melhores intenções. Diante dela, toda consciência e toda vontade é fraca. “Chamo servidão, escreve Spinoza, a impotência humana para moderar e coagir os mecanismos afetivos. O ser humano, na sua sujeição a esses mecanismos, não tem domínio de si, é dominado pelas forças do que está disposto, em cujo poder se encontra, a tal ponto que é frequentemente forçado, apesar de ver o que é melhor para ele, a perseguir o que é pior”**.






(*) FREUD, Sigmund. Au-delà du principe de plasir. Trad. Jean-Pierre Lefebvre. Paris: Points, 2014 [1920]. Capítulo V. P. 128.

(**) Livre tradução de um trecho do início do prefácio da quarta parte da Ética de Spinoza.

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