Isso não aconteceria com um e-book

As velhas páginas, nas bordas, uma ou outra, estavam manchadas por gotas de sangue, ou melhor, por gotas de vinho, certamente, deixadas ali por dedos de um guloso, de um amante da vida:
– Foi assim que acabei na forca, em Havana.
– Foi muito ruim? – sussurrou Fanny.
– Não foi, não, minha pobre Fanny – disse Morten.
– Alguém mais estava com você?
– Tinha um padre jovem e gordo. Estava morrendo de medo de mim. Provavelmente lhe contaram coisas terríveis a meu respeito. Ainda assim, ele se empenhou ao máximo. Quando lhe perguntei: “O senhor poderia me conseguir, agora, mais um minuto de vida?”, ele me respondeu: “E para quê você quer esse derradeiro minuto, meu pobre filho?”...*



(*) BLIXEN, Karen. A ceia em Elsinore. Trad. Claudio Marcondes. In: Sete narrativas góticas. São Paulo: Cosac Naify, 2007 [1935]. P. 291.

Diário de Moscou XXIV


Em Moscou, ninguém parece alcançar a idade dos berlinenses. Mas eu estou entre eles. Caminhamos, bebemos juntos, lemos os mesmos livros, e trocamos ideias, como se fôssemos da mesma experiência e tivéssemos os mesmos interesses, com a mesma vida diante de nós. Quando lhes digo, por alguma razão (embora eles jamais me perguntem acerca disso), o elevado número dos meus anos, sinto como se isso lhes causasse algum embaraço ou um amargo incômodo; o idêntico embaraço e incômodo que lhes causaria uma nuvem cinza e isolada que, inesperadamente, lhes encobrisse o sol em um raro dia ensolarado de inverno. No entanto, depois de uma pequena interrupção, o lapso de um esquecimento ativo, percebo-os retomar a alegria, voltando ao que faziam: caminhar, beber, ler, ou trocar ideias.



Imaginação e necessidade


Um conceito leva a outro, necessariamente. Mas as imagens também se desdobram, umas das outras, com certa necessidade.
Vemos também a imaginação ser determinada somente pela disposição da alma (ab animae constitutione); já que, como experienciamos, [ela] segue, em tudo, as pegadas (vestigia) do intelecto; e concatena e conecta, umas às outras, as suas imagens e palavras, a partir de [uma] ordem, assim como o intelecto concatena e conecta, umas às outras, suas demonstrações.*
O encadeamento das imagens, na imaginação, frequentemente, segue os mesmos princípios do encadeamento necessário dos conceitos (ideias adequadas que as imagens envolvem e, frequentemente, ocultam).

É por isso que, Freud, para justificar a necessidade do líder – no caso, Cristo – na perseverança da massa religiosa, levando em consideração que “a desintegração de uma massa religiosa não é tão fácil de observar”, pôde recorrer à literatura, a um romance inglês “que ilustra de maneira hábil e pertinente, esta possibilidade [de desaparecimento do Cristo] e as suas consequências [lógicas]”**.

No entanto, talvez Freud não tenha, com isso, se livrado totalmente das imagens, e alcançado, através delas, o conceito de massa. Ele parece colocar toda a ênfase essencial da massa no líder. Mas, a relação da massa com o líder – é o que eu suspeito – pode ser apenas acidental (ou contingente).



(*) SPINOZA, Benedictus de. Correspondance. Trad. Maxime Rovere. Paris: GF Flammarion, 2010. Carta XVII. P. 125.

(**) FREUD, Sigmund. Psicologia das massa e análise do eu [1921]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 52, in fine.

Duas atribuições de sentido

O sentido pode ser pensado como encadeamento. Algo faz sentido quando se encadeia com outros eventos, ações, palavras e coisas.

Os sonhos mostram que também atribuímos sentido a algo independentemente do seu encadeamento com outros eventos, apenas pela sua força de presença, ou seja, pela sua afirmação no existir.




Sonho e vigília

Nos sonhos, aparecem elementos (uma cena, uma pessoa) que sabemos, sem dúvida, pertencer à vigília.

Com alguma certeza, o sequestro contrário também deve ocorrer. Elementos oníricos (uma cena, pessoa ou sentimento) são importados e se mesclam com os elementos reais da vigília.



Dois tipos de lei

Em geral, a lei é concebida como produtora de obediência. Ela tem, então, sua essência em sua finalidade.

Raramente, por outro lado, a lei é concebida como produto da liberdade. Então, sua essência se encontra em sua causa.

Estes dois tipos, a lei para obediência e a lei de liberdade, são distintos. Acontece, porém, que uma mesma lei possa passar de um tipo a outro.