Oximoro da escravidão


  1. Sepulto vive quem é a outro dado.
  2. E quem ao outro que há em si, sepulto
  3. Não poderei, Senhor, alguma vez
  4. Desalgemar de mim as minhas mãos?*


Gostaria de propor uma interpretação deste fragmento poético póstumo de Pessoa.

(1) Sepulto viver é viver encoberto. Sepulto viver é viver morto. Quem sepulto vive é o vivo morto, oximoro da escravidão. Está como morto quem é dado a outro, quem pertence a outro, e não a si – o escravo do outro.

(2) Mas também age como morto, não vive, não é livre, quem está sepulto sob o outro que há em si, quem se submete a esse sujeito em nós, que é outro e que nos submete – o escravo de si.

(4) Acontece que o escravo do outro é sempre o escravo de si e, o que dá no mesmo, o escravo de si é sempre o escravo do outro. O outro em si, o si que é outro, é o sujeito cuja forma da subjetividade, cujo modo de subjetivação, deriva do modo de assujeitamento próprio ao mecanismo de poder histórico em que está inserido. A servitude voluntária, a escravidão completa, é a coincidência plena do sujeito próprio ao modo de assujeitamento histórico-político com o sujeito próprio ao modo de subjetivação. Esse é o vivo morto, o que já não é humano.

No humano, no vivo vivo pleonástico, permanece a potência da diferença entre as duas configurações do sujeito. Não se trata de uma diferença plena, em que uma imagem é disposta ao lado de outra que lhe é diversa, mas de um diferencial, de um limite de diferença, de uma irredutibilidade, de um limite infinitesimal de incongruência entre as duas figuras do sujeito.

A essência do humano é essa diferença consigo mesmo, o sujeito infinitesimal.

(3) No poema de Pessoa, entretanto, o clamor de liberdade não se dirige a Si, mas ao Senhor. Mas isso é história para outra conversa.

(*) PESSOA, Fernando. Poesias coligidas. Inéditas 1919-1935. Poema 564, p. 499 [1921]. In: Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.

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