O fogo do inferno

Temos as descrições de Dante. Mas Dante passa por elas fisicamente incólume. Temos as de Joyce*. Ainda mais sensíveis, a meu ver. Tudo sentimos, embora nada vejamos, pois o inferno são trevas. “Colocai o vosso dedo por um momento na chama de uma vela e sentireis a dor do fogo. Mas o nosso fogo terreno foi criado por Deus para benefício do homem, para manter nele a centelha de vida e para ajudá-lo nas artes úteis, ao passo que o fogo do inferno é de uma outra qualidade e foi criado por Deus para torturar e punir o pecador sem arrependimento”*.

Ou seja, o fogo da vela não é propriamente o fogo inferno, e o fogo do inferno não é propriamente o fogo da vela. O fogo do inferno não é fogo, ou só o é de modo eminente. Sobre o modo eminente de ser, há um belo áudio de Deleuze.

Para o “ImamKhomeini, é a fé no inferno (e, então, não a fé em Deus) que nos faz buscar o caminho de Deus, sem pecado. “É possível que alguém considere verossímil a existência do fogo do inferno e a eventualidade de nele queimar eternamente, e ainda assim ofender a Deus?”**.

Spinoza lida com o inferno de uma outra maneira. Spinoza reconhece que, sem a crença em um Deus onividente, onipresente e onipotente, não há por que o vulgo não tomar o caminho do pecado. “III. {é um dogma da fé} Ele estar presente em todo lugar, ou tudo Lhe estar exposto: {pois} se acreditassem esconder-Lhe as coisas, ou fosse ignorado Ele tudo ver, {então} da eqüidade da Sua justiça, que tudo governa, seria duvidado ou ignorado” ***.

Mas aquele que evita o pecado tendo em vista o mal, que sobre si incidiria caso pecasse, não está livre. Aquele que age bem de modo a evitar o mal, a punição, o fogo do inferno, permanece escravo, porque age negativamente. Só aquele que age bem pelo amor do bem {ou pela fé em Deus} é livre ****. Um modo de dizer que a liberdade negativa (de agir enquanto não há uma interdição) não é uma verdadeira liberdade. Ou a liberdade é agir para evitar o mal, mas apenas de modo eminente. A verdadeira liberdade é agir por amor ao bem, embora isso, praticamente, nos seja inacessível, inapreensível, incognoscível.

Aliás, e talvez tenha alguma coisa a ver com tudo isso, Ch. Dickens fala de uma centelha de vida: "Ninguém tem a mínima consideração pelo homem {o canalha Riderhood}: com todos eles, ele tem sido objeto de repúdio, suspeita e aversão {ninguém se importaria se fosse queimar no inferno}; mas a centelha de vida dentro dele é curiosamente separável dele mesmo, e eles têm profundo interesse nisso, provavelmente porque aquilo é vida, e eles {como Riderhood} estão vivos e devem morrer" (citado por Agambem, que cita Deleuze, que cita Dickens...).

Para resumir, eu diria: o fogo do inferno é eminentemente, e de modo inverso, o que a centelha da vida é propriamente.

Agora, para compreendermos Spinoza, é preciso captar, se for possível, o modo de ser EMINENTE como IMANENTE. O modo eminente de Deus, para Spinoza, não é transcendente. Deus e o modo eminente de ser não estão além-mundo. Assim como o fogo do inferno não está, ou não estaria.

(*) JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Trad. José Geraldo vieira. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 [1914]. Cap. III, pp. 134 ss.
(**) KHOMEINI, Ruhullah. Islam and Revolution: Writings and Declarations of Imam Khomeini (1941-1980). Trad. Hamid Algar. North Haledon: Mizan Press, 1981. P. 354.
(***) SPINOZA, Benedictus de. Tractatus theologico-politicus. Hamburgi: apud Henricum Künraht, 1670. Cap. XIV, p. 163.
(****) Ibid. Cap. IV, p. 52.

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