O diabo e a Fortuna

O monoteísmo interpreta os acontecimentos como desdobramentos de uma só força, de um único princípio. O politeísmo, por sua vez, como o confronto no mundo de diferentes forças ou princípios.

Por isso, no monoteísmo puro, o diabo tem que ser necessariamente um desdobramento da própria divindade. Ele não possui uma força própria. Ele não é um princípio independente, mas é como uma figura que torna possível, no cosmos, a deliberação, o diálogo de deus consigo mesmo, a consciência dialógica divina. O diabo está junto à origem da dialética, quando o um se faz dois, ao negar-se a si mesmo.

A deliberação divina implica uma espécie de hesitação, uma suspensão momentânea do juízo de deus. Nada se passa. Ou tudo se passa como se o tempo parasse, como se os eventos não soubessem como acontecer, enquanto deus reflete em sua consciência.

Para manter-se estritamente monista, e não tornar-se maniqueísta, vinculando o devir ao jogo de dois princípios, um bom e outro mau, o monoteísmo precisa entender o deus que se confronta ao diabo como um subdeus. Haveria um deus que se desdobra em dois, em sua consciência dialógica, em subdeus e diabo.

Deus, como vontade, faria acontecer no mundo, conforme sua escolha entre o que lhe dispõem o subdeus e o diabo. Se deus escolhesse sempre e necessariamente conforme o que lhe dispõe o subdeus, então deus e subdeus seriam o mesmo, e o diabo apenas um apêndice.

Contudo, é um absurdo considerar a possibilidade da equivalência entre deus e subdeus. A equivalência do princípio supremo com um princípio subalterno é contraditória com a suma essência do deus único. Se deus é incomparável, não pode guiar sua escolha pelo critério de um ser inferior. Então, para manter sua supremacia absoluta sobre o cosmos, é preciso que, de vez em quando, o sumo e único deus escolha arbitrariamente segundo o lhe dispõe o diabo, que afinal de contas é apenas um aspecto da própria divindade.

Assim, do mesmo modo que a cosmologia politeísta, que submete o devir ao resultado incerto do conflito das forças primárias, a cosmologia monoteísta do diálogo entre deus e o diabo resulta num cosmos que se abre para a contingência (que no politeísmo grego é uma deusa: Tyche; e no romano, justamente, é a Fortuna).

No politeísmo, o confronto entre os deuses, entre as forças cósmicas que regem os acontecimentos no devir, terá sempre um resultado incerto, ligado às circunstâncias mesmas desse confronto. O primeiro princípio, na Teogonia de Hesíodo, é Caos (v. 116). Se não é o único primeiro princípio, pelo menos permeia tudo, desde sempre. Caos é o princípio sem princípio do cosmos. O que desarticula e reconfigura perpetuamente os outros princípios-força. Caos estabelece no cosmos o reino da contingência.

Se o resultado do conflito entre os deuses fosse necessário, se houvesse um destino pré-estabelecido de algum modo, o embate de forças seria regido por um princípio transcendente, que estaria acima das forças em jogo, uma força maior, um deus maior. E então estaríamos falando do mais puro monoteísmo. Se existe Ananke, a deusa grega da necessidade (que não aparece na Teogonia de Hesíodo) que torna trágica até mesmo a vida dos deuses do Olimpo submetidos a ela, então estamos falando de um princípio maior e acima de todos os subdeuses.

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