Vale a pena, pelo simples prazer, nesse contexto, um pequeno passeio por Pascal. Nos seus Pensamentos*, lá pelas tantas da seção 69, ele vem refletindo nesse evento meio-termo que somos.
“Dois infinitos, meio termo”. Com uma leitura muita apressada nada se entende. Com uma muito lenta, tampouco. Adiante, comentando “in vino veritas”, ele nota que sem vinho não se encontra a verdade, mas também não se encontra com vinho em demasia. (Parênteses: em que medida poderíamos definir uma leitura como um evento?)
Mas o que me parece mais atraente é que Pascal estende, na seção 72, essa mesma reflexão a uma lêndea... (é possível que ele a observe com uma lente de aumento) “que, na pequenez de seu corpo, contém partes incomparavelmente menores, pernas com articulações, veias nessas pernas, sangue nessas veias [...]; dividindo-se estas últimas coisas esgotar-se-ão as capacidades de concepção do homem, e estaremos, portanto, ante o último objeto a que possa chegar o nosso discurso”. Isto que seria o átomo, o indivisível. Mas o indivisível é apenas uma concepção humana. “Quero mostrar-lhe, porém, dentro dela [da menor coisa da natureza] um novo abismo. [...] Aí existe uma infinidade de universos, cada qual com seu firmamento, seus planetas, sua terra em iguais proporções às do mundo visível; e nessa terra há animais e neles essas lêndeas, em que voltará a encontrar o que nas primeiras observou”.
O ser humano está suspenso entre dois infinitos, um envolvente, o do enorme, outro envolvido, o do ínfimo. Não há um patamar inferior indivisível que pare o processo para o ínfimo aquém. Assim como não há um inadicionável que suspenda o processo para o enorme além.
O evento do indivíduo humano é uma faixa nesse continuum sem termos. No limite (se isso de alguma forma não constituir uma blasfêmia), reencontraríamos indivíduos humanos, como reencontramos as lêndeas, noutras faixas para baixo e para cima na escala das proporções. Um homem talvez faça parte de um outro homem muito maior que ele. Mas não necessariamente. Pode ser que um homem faça parte de uma caneta. Essa caneta de uma gigantesca árvore. Essa árvore de uma mulher enorme.
Para Pascal, o evento é uma espécie de sintonia, à qual se ajusta a percepção humana. Nossa percepção está em sintonia como uma faixa de eventos. Dentro dessa faixa, as coisas estão em proporção e são perceptíveis. Isso não impede que a proporção se encontre em outras faixas, para cima ou para baixo do infinito espectro dos eventos.
(*) PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988 [1670].
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