No capítulo XVII, da terceira parte do seu Guia para os perdidos, Maimonides (1135-1204) discute as cinco teorias acerca da providência divina conhecidas até então. Quatro são positivas; uma, negativa.
1. A teoria negativa diz simplesmente que não há qualquer providência. Tudo o que acontece no universo e tudo o que ocorre, para qualquer ser humano, é devido ao acaso puro.
Maimonides diz que, entre os judeus, alguns ateus defenderam tal teoria. Mas ele a atribui propriamente a Epicuro.
2. A segunda teoria, a primeira positiva, Maimonides diz ser a de Aristóteles. Há providência, mas apenas parcial. Uma parte do universo vincula-se à providência, enquanto a outra é abandonada ao acaso.
A parte universal sob o governo direto de Deus é a celestial. A abandonada ao acaso é aquela abaixo da esfera da lua, o corpo celeste mais próximo a nós.
Deus governa o que é permanente e de movimento constante, deixando ao acaso desregrado a variação e a duração do aleatório individual.
A influência da providência divina, na esfera sublunar, assegura permanência e imortalidade até o nível das espécies, mas deixa os indivíduos à sua sorte.
De fato, nem mesmo os indivíduos foram inteiramente abandonados.
Aquela porção de matéria prima purificada e refinada, ao receber a faculdade de crescer, foi provida com propriedades que a permitem durar um certo tempo na existência, atraindo o útil, repelindo o inútil.
A porção de matéria prima sujeita a um desenvolvimento ainda mais acentuado foi provida com outras propriedades para sua proteção e preservação: ela recebeu uma nova faculdade, a faculdade da sensação, para se mover na direção daquilo que é favorável ao seu bem-estar e na direção contrária ao que é desfavorável.
A porção de matéria prima ainda mais refinada foi provida com a faculdade intelectual. Com esta faculdade, ela possui uma propriedade especial pela qual cada indivíduo, de acordo com o grau de sua perfeição, é apto a gerir, calcular e descobrir o que é favorável para a sua existência temporária e, ao mesmo tempo, para a permanência da espécie.
Todos os outros movimentos, entretanto, feitos pelos indivíduos de cada espécie, são acidentais e não o resultado de lei e de conduta divinas.
Neste aspecto, segundo Maimonides, Aristóteles não vê diferença alguma entre o que acontece a um punhado de formigas e o que acontece a um punhado de homens pios. Não discrimina o que se dá a uma mosca que cai numa teia de aranha daquilo que se dá a um profeta que se encontra com um leão selvagem no deserto.
Para resumir, a opinião de Aristóteles é a seguinte: _tudo o que é constante na natureza está em estreita relação com a providência divina. Mas o que não é constante não segue lei certa, e é resultado do acaso.
3. A terceira teoria é aquela à qual aderem os maometanos Ashariyah. De acordo com eles, tudo no universo é resultado de vontade, intenção e leis. Nada é deixado ao acaso.
Tudo, absolutamente tudo, no espaço e no tempo, acontece segundo o decreto prévio de Deus, no lugar e no instante previamente determinados por Deus.
Os Ashariyah são então compelidos a assumir a predestinação de todo movimento e repouso dos seres vivos e a reconhecer que não se encontra no poder dos humanos fazer ou deixar de fazer qualquer coisa.
Segue-se disso, segundo Maimonides, a inutilidade dos preceitos, pois as pessoas, às quais as leis são dadas, são incapazes de fazer qualquer coisa, nem fazer o que a lei lhes obriga, nem deixar de fazer o ela os proíbe.
De acordo com esta teoria, apesar de tudo ser predestinado, as ações divinas não possuem uma causa final, nenhum modelo ou fim que as guie.
Tudo no universo acontece segundo a vontade de Deus, mesmo as injustiças e os pecados, mesmo as recompensas para os ímpios e as punições dos pios. Ocorre até mesmo Deus infligir dor a seres humanos bons e justos. Desgraças desse tipo, como tudo no universo, os Ashariyah atribuem à vontade de Deus.
4. Para a quarta teoria, o ser humano possui uma vontade livre. Com isso, a lei que comanda e proíbe, pune e recompensa torna-se inteligível e tem razão de ser.
Todas as ações de Deus são devidas à sabedoria. Não há injustiça em Deus e ele não aflige os bons.
Os Mu’tazila professam esta teoria. Eles defendem que Deus está ciente de tudo, inclusive do vento que faz cair a folha da árvore, e que Sua providência se estende sobre todas as coisas do universo.
Esta teoria implica alguns absurdos e contradições.
Os absurdos são os seguintes. Aqueles que nascem defeituosos ou o massacre dos inocentes acontecem, segundo a sabedoria divina, sem porém nós sabermos como, para o bem dos deficientes e dos injustiçados. Estes desgraçados não sofrem nenhuma punição divina, mas gozam da sua bondade, em vista de uma vida futura. Até mesmo as moscas e os carrapatos massacrados receberão numa vida futura a recompensa por sua morte prematura.
Eles se contradiziam porque criam que Deus tudo sabe, enquanto, por outro lado, também, que o ser humano tem a vontade livre. Basta refletir um pouco, escreve Maimonides, para descobrirmos a contradição que há nisso.
Para os Mu’tazilites, Deus não inflige dor arbitrariamente, mesmo quando aflige os justos, mas por sabedoria. Todo ser afligido por alguma dor neste mundo terá sua recompensa na vida futura.
5. Segundo a quinta teoria, a vontade do ser humano é perfeitamente livre. Mas para tanto é preciso uma dose de acaso. Essa é a teoria dos judeus ou da lei mosaica.
O ser humano faz o que está em seu poder, segundo sua natureza, sua escolha e sua vontade. E sua ação não se deve a nenhuma faculdade criada com esse propósito. Todas as espécies animais irracionais também dispõem de vontade livre.
É da vontade divina todos os seres vivos se moverem livremente. Ninguém entre os judeus nega isso.
Outro princípio mosaico fundamental é que o incorreto não pode ser creditado a Deus de modo algum. Todo os males e as aflições, assim como todas as felicidades, são distribuídos com justiça infalível.
Toda a mínima dor de qualquer ser humano lhe é infligida por razão de algum pecado seu, enquanto todo seu prazer decorre como recompensa por alguma boa ação.
Tudo nos negócios humanos acontece segundo o mérito. Tudo é conduzido com justiça. Deus só pune aqueles que merecem.
A opinião própria de Maimonides é uma subespécie desta quinta teoria.
Segundo ele, na porção sublunar do universo, a providência divina se estende apenas sobre os indivíduos da espécie humana. Apenas para a humanidade a variação das fortunas individuais, os bens e os males incidentes, é resultante da justiça divina. No tocante aos outros indivíduos, ele concorda com Aristóteles. Se uma folha cai com o vento, não é por intervenção divina, mas por puro acaso.
MAIMONIDES, Moses. The Guide for the Perplexed. Trad. M. Friedländer. 2 ed. New York: Dover Publications, 1956 [1881, 1904].
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