Certamente, tudo isso é muito esquemático e redutor. De fato, a relação entre cidade, guarda e liberdade é muito mais complexa.
Vejamos, por exemplo, como, no capítulo nono do Processo de Kakfa, Na Catedral, {leia aqui}, a guarda da lei está representada por um porteiro*. E o porteiro de Kafka está do lado de fora da lei, junto ao camponês, e não do lado de dentro, como pressupunha o nosso esquema de cidade. No nosso esquema, a cidade está do mesmo lado que a guarda, relativamente ao muro que a cerca.
O nosso esquema e todos os esquemas, com Kafka, tornam-se complexos. Quem conta a historieta do porteiro da lei para K. é um capelão, alguém que conhece não qualquer lei, mas a lei divina. E não é um capelão qualquer, mas o capelão do presídio. Quer dizer, alguém que anda também (segundo nosso esquema) pelo lado de fora da cidade. Alguém que entra e sai da cidade, mesmo se a cidade for como o reino de Deus. Uma figura de trânsito, análoga a de Odisseu, que pode descer aos ínferos e subir de volta.
O capelão é um porteiro da lei. Mas quando ele conversa com K., ele está do lado de dentro ou do lado de fora? Essa é a dúvida que sempre nos acossa, no romance e fora dele. Afinal, estamos de que lado do muro? Estamos no inferno ou na terra abençoada? Na prisão ou na cidade?
(*) KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1914]. P. 214 ss.
(**) P. 213.
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