O viver-poeta é, para um-Nietzsche, “permanecer conscientemente na inverdade”*. Encostado a isto, “Um poeta poderia dizer que Deus instalou o esquecimento como guardião na soleira do templo da dignidade humana”**.
Temos aqui uma interpretação prometeica do Diante da Lei de Kafka (Prometeu é o atado-desatado que sabe dizer o acontecimento antes que ele aconteça). Mais uma amostra de que a parábola kafkiana, como outros eventos, não surge no tempo.
De Kafka, a resposta que tantas interpretações buscam é correlativa à questão: por que o camponês não entrou ou não pôde entrar no templo da lei?
Entre as inúmeras respostas, temos a de Michael Löwy: o camponês permaneceu diante da lei, porque ele não ousou empurrar, evitar, contornar o guardião, e forçar sua passagem. Mas Löwy assemelha o paraíso à lei, o que não é, por si, algo evidente.
E temos a resposta de Nietzsche: o camponês permaneceu até a morte diante da lei, porque ele não soube esquecer (deixar de viver) sua origem indigna, natural, necessária, e continuava atado a ela. O camponês é quem permanece inconscientemente na verdade, ele vive na verdade e não a esquece, como a esqueceu o cidadão, que permanece na inverdade, inconscientemente.
Temos aqui três modos de ser possíveis, o do camponês, o do cidadão e o do poeta. O quarto modo de ser, resultado de uma outra combinação, é o único oculto, porque impossível, intolerável, humanamente insuportável, aquele em que se permanece conscientemente na verdade.
(*) NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878]. Aforismo 34.
(**) Ibid. Aforismo 92.
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