Vida humana e vida de deus

Tínhamos perguntado se aquela vida confortável de bebê nos seria suficiente, e ouvido a resposta de Spinoza a respeito de uma vida humana como verdadeira vida da alma virtuosa, ou seja, uma alma que pensa. A vida virtuosa não perde nada daquela alegria, muito pelo contrário. Porém, uma vida humana virtuosa tira sua alegria, não só do corpo, mas do vigor do pensamento entre amigos. Na sua ética, para a suma felicidade, a filosofia é fundamental.

Epicuro parece nos dar uma outra resposta num fragmento chamado “O grito da carne” – “não ter fome, sede nem frio, aquele que tem estas coisas – e a esperança de as ter – pode rivalizar (com Zeus) em felicidade”*.

Ora, muitos de nós alcançamos atender, e esperamos poder atender sempre, aos sinais sonoros da carne, mas, mesmo assim, não podemos rivalizar com a suma felicidade de uma vida divina.


Isao que, para Epicuro, complica a nossa vida humana é justamente a nossa humanidade, a possibilidade que temos para formar ideias confusas sobre a vida, sobre o mundo, sobre os deuses, enfim, o véu imaginário especificamente humano que, no entremeio, nos cobre a face e não nos deixa perceber a vida como de fato é. Essas confusões da alma nos fazem doentes. Dispondo de tudo o que precisamos para viver como deuses, imaginamos nos faltar tudo, e multiplicamos nossos desejos de prazeres imaginários.

Assim, para viver uma vida de deuses, enquanto humanos, os bens do alimento e da vestimenta não nos bastam, precisamos de um bem maior, a prudência (phronêsis), na medida em que só a prudência pode estabelecer uma estratégia de vida que pratique uma diferenciação dos desejos e dos prazeres respectivos e a independência (autarkeia), não a abstenção, em relação aquilo que não é necessariamente desejável.

Para chegar a prudência é preciso filosofar. Mas a filosofia nunca será, para Epicuro, um bem em si mesma. Ela o é apenas na medida em que nos cura da nossa doença da alma, do nosso imaginário amedrontado, ao apresentar a natureza, os deuses, a morte, como de fato são. Mas nada além disso. É preciso saber também se desvencilhar da ‘vontade de verdade’ (um termo que não é de Epicuro), da ideia de que a verdade vem acima de tudo.


(*) Épicure: Lettres et Maximes. Trad. Marcel Conche. Paris: PUF, 1987 [-300]. Sentences Vaticanes, §33. P. 255.

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