Serviço público II

Kafka:


É um mandato 
Conforme a minha natureza, eu só posso assumir um mandato que ninguém me tenha atribuído. É nessa contradição, sempre apenas em uma contradição, que eu posso viver. Mas, sem dúvida, é assim com todo humano, pois vivendo se morre, morrendo se vive. É assim, por exemplo, que o circo é recoberto de uma lona estendida a sua volta, e que, por conseguinte, toda pessoa que não está sob esta lona nada vê. Mas, eis que alguém encontra um pequeno buraco na lona, e consegue ver do exterior. É claro, é preciso que ele seja tolerado nesse lugar. Todos nós, nós somos assim tolerados um instante. É claro – segundo “é claro”–, não se vê, geralmente, por um buraco como esse, mais que o dorso dos espectadores da última fileira. É claro – terceiro “é claro”–, escuta-se, mesmo assim, a música e ainda o rugido das feras. Até que, enfim, se caia, desfalecendo-se de terror, nos braços do agente de polícia, a quem seu serviço obriga a dar a volta ao circo, e que não fez mais que te tocar levemente no ombro, para te lembrar o que há de inconveniente em olhar, com uma atenção tão persistente, um espetáculo pelo qual tu não pagaste nada.

KAFKA, Franz. Oeuvres complètes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980. C’est un mandat [15/09/1920]. P. 549.

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