Como escrever um aforismo
Estamos diante de uma impossibilidade. Um tratado sobre aforismos só poderia se escrever aforisticamente. Mas, aforismos juntos jamais se constituiriam como um tratado.
Impostura
A postura
(a imposição e a indisposição) de um filósofo percebe-se por aquilo que ele
considera ser a questão fundamental da filosofia em geral (dessa atividade que
consiste em se colocar questões de modo até mesmo doentio).
Para o filósofo rico, governante,
aristocratizante, a questão é:
– por que
há o ente e não antes o nada?
Para o filósofo pobre, governado,
democratizante (em suma, cristão e escravo), a questão é:
– por que,
afinal, há tal ordem estabelecida e não antes a desordem?
Avaliar-se
Para o professor, o pior momento do ensino, o
momento mais dolorido, é corrigir os trabalhos dos seus alunos. É aí que ele percebe
o quanto ele mesmo é imbecil.
Conversões fanáticas II
Ainda estou com o problema do naufrágio-conversão insistente em ocupar-me a alma (quando tenho tantas outras coisas pendentes para me ocupar).
Mas, em que momento, precisamente, acontece a conversão do náufrago? Depois ou antes da sua salvação?
Com Zenão de Kition, vimos, a ordem aparente foi a seguinte: naufrágio-salvação-conversão. Ele salvou-se, antes de converter-se.
Mas, em que momento, precisamente, acontece a conversão do náufrago? Depois ou antes da sua salvação?
Com Zenão de Kition, vimos, a ordem aparente foi a seguinte: naufrágio-salvação-conversão. Ele salvou-se, antes de converter-se.
Na conversão pós-salvação, escapar do naufrágio é, para o náufrago, com certeza, uma espécie de salvação milagrosa. E o milagre, um elemento da causa da sua conversão fanática.
Já com o personagem de Proust, não fosse ele quem ele é, a ordem aparentemente teria sido outra: naufrágio-conversão-salvação. A conversão se daria antes (como elemento causal) da sua salvação:
Entretanto, para o convertido fanático, “esperar dele um milagre” sem hesitar – isto é, a conversão – já é a própria salvação. Com efeito, para o convertido, a verdadeira salvação não é a sua sobrevivência física, mas a conversão da sua alma.
Já com o personagem de Proust, não fosse ele quem ele é, a ordem aparentemente teria sido outra: naufrágio-conversão-salvação. A conversão se daria antes (como elemento causal) da sua salvação:
Quando nos vemos à beira do abismo e parece que Deus nos abandonou, não hesitamos em esperar dele um milagre.*
Entretanto, para o convertido fanático, “esperar dele um milagre” sem hesitar – isto é, a conversão – já é a própria salvação. Com efeito, para o convertido, a verdadeira salvação não é a sua sobrevivência física, mas a conversão da sua alma.
Na questão naufrágio-conversão, a salvação não é um terceiro termo.
Por isso, repito: – não dê imediatamente fé à fé de um náufrago.
(*) PROUST, Marcel. A fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2012 [1923]. P. 37.
Por isso, repito: – não dê imediatamente fé à fé de um náufrago.
(*) PROUST, Marcel. A fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2012 [1923]. P. 37.
ENTRE
“Ela tinha a inteligência mais curta do que um
skindapsos”*.
Skindapsos, como blituri, é uma
palavra grega sem significado. Na frase falada, porém, tudo significa. O
significado preenche tudo (salvo o “rio sem fim” do entre).
(*) Frase atribuída a Zenão de Kition. LAÊRTIOS, Diôgenes. Vie et doctrines des philosophes illustres.
Trad. diversos. Paris: Le livre de poche, 1999 [250]. VII, 15. P. 800.
Pelo espaço ENTRE
No nosso mundo econômico bio-espetacular, não há sobreposição nem intervalo entre as vidas, os corpos, as imagens, as mercadorias.
Tudo se engata com justeza no espaço-tempo, ponta com ponta, ponteiro com ponteiro (para que não haja um caminho através).
Somente um Pessoa e uma filosofia para explorar o espaço entre.
Versos de Cancioneiro*:
“Entre o luar e a folhagem” (p. 166)
“Entre o luar e o luar” (p. 169)
“Entre o que vivo e a vida”
“Entre quem estou e sou” (p. 170)
“Entre o sono e o sonho”
“Entre mim e o que em mim é o que eu me suponho” (p. 171)
Pelo espaço entre, “corre um rio sem fim”.
(*) PESSOA, Fernando. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
Tudo se engata com justeza no espaço-tempo, ponta com ponta, ponteiro com ponteiro (para que não haja um caminho através).
Somente um Pessoa e uma filosofia para explorar o espaço entre.
Versos de Cancioneiro*:
“Entre o luar e a folhagem” (p. 166)
“Entre o luar e o luar” (p. 169)
“Entre o que vivo e a vida”
“Entre quem estou e sou” (p. 170)
“Entre o sono e o sonho”
“Entre mim e o que em mim é o que eu me suponho” (p. 171)
Pelo espaço entre, “corre um rio sem fim”.
(*) PESSOA, Fernando. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.
Mediante decreto
Mediante decreto da cidade, o estrangeiro Zenão de Kition foi homenageado, por sua virtude e por exortar os jovens cidadãos a se tornarem virtuosos, com uma coroa de ouro e com uma tumba aos custos da cidade*.
É ao menos curioso, se não problemático, quando a política presta honras ao uso refletido que um humano faz de sua vida (à sua ética).
Mas uma coisa é a relação de Atenas com o estoicismo, outra, a de X com k, isto é, a relação geral que uma constituição política mantém com uma moralidade.
É ao menos curioso, se não problemático, quando a política presta honras ao uso refletido que um humano faz de sua vida (à sua ética).
Mas uma coisa é a relação de Atenas com o estoicismo, outra, a de X com k, isto é, a relação geral que uma constituição política mantém com uma moralidade.
(*) Conferir: LAÊRTIOS, Diôgenes. Vie et doctrines des philosophes illustres. Trad. diversos. Paris: Le livre de poche, 1999 [250]. VII, 10. P. 796.
Conversões fanáticas
Disseram-me: – passei pelo pior; no mais baixo, encontrei o melhor.
De fato, os naufrágios frequentemente conduzem a uma conversão fanática.
Por isso, penso que, na sua conversão, Zenão de Cítio – “Na verdade, este naufrágio conduziu-me a um bom porto” –, teve sorte. “A Fortuna agiu bem ao nos empurrar para a filosofia”*.
O problema é que a conversão pós-naufrágio nem sempre se abre para um porto bom. Os náufragos sobreviventes costumam despertar em estranhas praias, com estranhas crenças...
(*) LAÊRTIOS, Diôgenes. Vie et doctrines des philosophes illustres. Trad. diversos. Paris: Le livre de poche, 1999 [250]. VII, 4. P. 792.
Por isso, penso que, na sua conversão, Zenão de Cítio – “Na verdade, este naufrágio conduziu-me a um bom porto” –, teve sorte. “A Fortuna agiu bem ao nos empurrar para a filosofia”*.
O problema é que a conversão pós-naufrágio nem sempre se abre para um porto bom. Os náufragos sobreviventes costumam despertar em estranhas praias, com estranhas crenças...
(*) LAÊRTIOS, Diôgenes. Vie et doctrines des philosophes illustres. Trad. diversos. Paris: Le livre de poche, 1999 [250]. VII, 4. P. 792.
Acordo incondicional
“Pensar
é estar doente dos olhos”*.
“Não pense, veja!”**
Estamos sempre
de acordo com os poetas. Então, quando os poetas contrapõem o “ver” ao
“pensar”, e valorizam o primeiro gesto acima do segundo, eles não podem estar
pensando (ou vendo) o mesmo que nós vemos, ao lermos: – Ver é pensar.
(*) PESSOA, Fernando. Obra
poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. O guardador de rebanhos
(Alberto Caeiro). P. 205.
(**) “Denk nicht, sondern schau!”. WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen. Frankfurt:
Suhrkamp, 2003 [1941]. #66. P. 56.
O invisível não existe
Podemos, num abuso, levar esta afirmação ao seu paroxismo (paradoxal para um teísta): – “o invisível não existe”.
Paradoxo do qual a ciência moderna nos liberta: o invisível pode deixar traços, sintomas, no visível.
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