O que aparece vem de algum lugar

No sétimo capítulo: A mulher e a criança (de Humano demasiado humano*), Nietzsche é um tanto áspero na expressão do seu menosprezo pelo engenho das mulheres. _ Veja, p.ex., 432: "As mulheres querem servir [...]".

Mas tudo o que N. por aí escreve, – e isso tem a ver com a "relatividade da moralidade" – não o escreve de um lugar utópico (lugar do não-lugar), de um ponto
infinitamente distante, suspenso na eternidade mais imóvel, para o qual todas as verticais aparecem paralelas entre si; mas sim, o faz, a partir de uma origem precisa, terrena, geográfica, de um solo, de um buraco no solo, de uma toca de toupeira, de uma perspectiva singular; a qual, devido à sua proximidade, distorce o que observa. Pudenda origo.

Veja o aforismo 380 (logo no início do mesmo capítulo): Vindo da mãe.
"Todo indivíduo [inclusive N.] traz em si uma imagem de mulher que provém da mãe: é isso que o leva a respeitar as mulheres, a menosprezá-las, ou a ser indiferente a elas em geral."

Por isso, não precisamos tomar "As mulheres querem servir [...]"
, como uma afirmação feita a partir de um referencial ideal. Ela é apenas uma afirmação de N., um indivíduo particular.

E mais...

– não só
aquele para quem algo aparece vem de algum lugar, de uma origem que se reflete no modo como as coisas lhe aparecem, mas também isso mesmo que aparece vem de algum lugar, e as duas origens ainda marcam, com sua tonalidade, o encontro.

Às vezes esse fio indelével, que vem da origem até o presente, pode resultar em um nó explosivo – quando, por exemplo, a origem do observador e do observado é a mesma, e a distância entre eles entra em colapso.

Assim foi explosivo o último encontro entre o Rei
Laio e seu filho Édipo; como matéria e anti-matéria, os dois personagens, sobrecarregados pelo mesmo oráculo maldito, atraídos um para o outro, entraram em choque. O que foi fatal para ambos.

Assim foi explosivo o último encontro de
Dorian Gray com sua verdadeira imagem.

E assim pode acontecer, a qualquer momento, na difícil abordagem de si mesmo.





(*) NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878].

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