Jogo de espelhos
A história do cinema ainda não começou
Quer dizer, a história do cinema só começará quando o cinema for inventado, quando a sua essência existente – a ideia de uma ilusão, uma experiência ilusória, que restitua perfeitamente a realidade – estiver tecnicamente realizada.
– O cinema ainda não foi inventado!*
Esta frase não nos vale de muito (não podemos levar isto muito a sério). Bom, pelo menos, a compreensão desta frase nos dá, a nós que sentimos o fim, a indicação do que esta outra – “A história ainda não começou!”– quis dizer, do que é estar na pré-história, no aguardo profetizado do início da história, de uma história que começará ao fim do estado atual, mas que, desde lá, desde um estar futuro, já guia a atualidade.
(*) BAZIN, André. O mito do cinema total [1946]. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. In: O que é o cinema?. São Paulo: Cosac Naify, 2014 [1985]. P. 39.
Conversões fanáticas III
O convertido fanático (o hiperreligioso moral), antes, ele estava a um passo da agressão. Para viver, precisava matar. Mas isso lhe era impedido. Transgredir ou converter-se é a alternativa disposta. Na conversão, essa sua agressividade se volta contra ele mesmo.
“É notável que o homem, quanto mais restringe sua agressividade ao exterior, mais severo, mais agressivo se torna em seu ideal do Eu”*.
Conversões fanáticas I
(*) FREUD, Sigmund. O eu e o id [1923]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: O eu e o id, “Autobiografia” e outros textos. Obras completas. Vol. 16 (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 68.
Conferir, também, a Segunda Dissertação em NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [1887].
A filosofia não serve para nada
Isso é em parte verdadeiro, em parte falso.
A filosofia não é como uma receita de bolo; algo que serve para produzir um bem querido. Um bem querido que guia, desde o fim, todo o seu fazer. A filosofia não tem fim nem guia. Nesse sentido, a filosofia não leva a nada.
Mas leva a si mesma, carrega-se. A filosofia serve sem finalidade. Como meio puro, meio sem fim. A filosofia não é um intermediário, é imediata. Não alcança o real, é o real do pensamento.
Serve a nada, serve em tudo.
Juízos (m)orais
Afinal, é com a boca que julgamos se algo é bom ou mau.
Isso é bom, quer dizer, isso é bom para comer, para estar dentro de mim, identificado comigo.
Isso é mau? Então, preciso cuspi-lo, pôr para fora, tornar estrangeiro.
Juízos morais, juízos orais.
* Conferir: FREUD, Sigmund. A negação [1925]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: O eu e o id, “Autobiografia” e outros textos. Obras completas. Vol. 16 (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 278.
Info
Pensamento-cinema IV, curso de extensão em filosofia.
Inscrições e informações:
http://goo.gl/forms/5ijZJdpX7p
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Negação e ciência
Mas, “tomamos a liberdade, na interpretação, de ignorar a negação e apenas extrair o conteúdo da ideia”*.
Assim, é pela sua negação que conhecemos o acontecimento.
Um repórter advertido lhes perguntaria: “O que você considera o mais improvável naquela situação?”**. Então, receberia a resposta que deseja: – o mais improvável é... [exatamente isso que ocorre].
(*) FREUD, Sigmund. A negação [1925]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: O eu e o id, “Autobiografia” e outros textos. Obras completas. Vol. 16 (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 276.
(**) Ibidem.
“É nessa contradição, sempre apenas em uma contradição, que eu posso viver.”
“Ele costumava dizer que esperaria o fim do mundo; nesse momento, ele encontraria, sim, um momento de tranquilidade, logo antes do fim, depois de haver despachado as últimas contas, para dar, ainda, rapidamente, uma pequena volta”*.
(*)KAFKA, Franz. Oeuvres complètes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980. [Poséidon], set. 1920. P. 553.
Serviço público II
Kafka:
É um mandato
Conforme a minha natureza, eu só posso assumir um mandato que ninguém me tenha atribuído. É nessa contradição, sempre apenas em uma contradição, que eu posso viver. Mas, sem dúvida, é assim com todo humano, pois vivendo se morre, morrendo se vive. É assim, por exemplo, que o circo é recoberto de uma lona estendida a sua volta, e que, por conseguinte, toda pessoa que não está sob esta lona nada vê. Mas, eis que alguém encontra um pequeno buraco na lona, e consegue ver do exterior. É claro, é preciso que ele seja tolerado nesse lugar. Todos nós, nós somos assim tolerados um instante. É claro – segundo “é claro”–, não se vê, geralmente, por um buraco como esse, mais que o dorso dos espectadores da última fileira. É claro – terceiro “é claro”–, escuta-se, mesmo assim, a música e ainda o rugido das feras. Até que, enfim, se caia, desfalecendo-se de terror, nos braços do agente de polícia, a quem seu serviço obriga a dar a volta ao circo, e que não fez mais que te tocar levemente no ombro, para te lembrar o que há de inconveniente em olhar, com uma atenção tão persistente, um espetáculo pelo qual tu não pagaste nada.
KAFKA, Franz. Oeuvres complètes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980. C’est un mandat [15/09/1920]. P. 549.
Aforismo é cinema
“A essência da obediência é a fuga!”
Há nessa ideia aforismática (como em toda ideia) uma espécie de elipse – no seu esplendor, algo fica encoberto. Mas o encoberto pela ideia está na ideia (se ela for verdadeira) como envolvido.
O elipsado é o que deve vir à luz na explicação (argumentação ou demonstração) da ideia. Explicação que, na expressão aforismática, se desenvolve no leitor (não no próprio aforismo), na medida em que o leitor é afetado pela ideia na leitura.
O caráter elíptico do aforismo e, simultaneamente, a sua verdade forçam o desenvolvimento da explicação no e pelo leitor.
Assim, pode-se dizer que é característico do aforismo envolver sempre a elipse.
Mas se, como alguns afirmam, a “arte da elipse” pertencesse ao cinema*, então o aforismo seria cinema.
(*) Contrariamente a Bazin. Conferir: BAZIN, André. Uma grande obra: Umberto D [1952]. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. In: O que é o cinema?. São Paulo: Cosac Naify, 2014 [1985]. P. 351.
Ontologia profunda: fora-dentro
Isso que estava para fora virou-se para dentro; ou, se você preferir, o inverso: conferir imagem aqui.
Nessa virada, podemos ter uma imagem da maneira pela qual a totalidade restante dos entes que, desde fora, limita um ente (em seu ser) – no nexus causarum* – coincide com a própria afirmação do existir – o conatus** – que, desde dentro, constitui a potência desse ente, segundo seu modo de ser singular.
Com essa mesma imagem, podemos compreender um modo de ser, um ente, como uma dobra, um vínculo dentro-fora, que permite a expressão, de uma maneira singular, da totalidade do ser.
(*) SPINOZA, Benedictus de. Ethica [1675]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677. e1p28.
(**) Ibid. e3p7.
Nessa virada, podemos ter uma imagem da maneira pela qual a totalidade restante dos entes que, desde fora, limita um ente (em seu ser) – no nexus causarum* – coincide com a própria afirmação do existir – o conatus** – que, desde dentro, constitui a potência desse ente, segundo seu modo de ser singular.
Com essa mesma imagem, podemos compreender um modo de ser, um ente, como uma dobra, um vínculo dentro-fora, que permite a expressão, de uma maneira singular, da totalidade do ser.
(*) SPINOZA, Benedictus de. Ethica [1675]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677. e1p28.
(**) Ibid. e3p7.
A verdadeira religião, religião nenhuma
A verdadeira religião não é religião alguma, mas a simples ideia da existência ou o vento.
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Podemos dizer que um aforismo coloca uma ideia. E, de fato, ele a coloca sob suspeita. O que, aliás, já é uma maneira de conhecer ou gênero de conhecimento (inkling).
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