Dois tipos humanos: o simples e o complexo?

O contraste na civilização não se dá, de fato, entre os tipos humanos simples e complexos; os primeiros, vinculados a mentalidades e comportamentos humildes, tradicionais, pouco elaborados; os segundos, a uma mentalidade e comportamento urbanos, que se complicaram, porque foram expostos às grandes contradições que constituem o mundo moderno.

O contraste na civilização se dá entre o tipo de humano simples e o tipo de humano normatizado; este último, vinculado a mentalidades e comportamentos disciplinados, enquadrados em normas, relativas à regularidade dos diversos papeis funcionais que compõem um sistema de diferenças estabilizado.

Não, portanto, entre o simples e o complexo, mas entre o simples e o normatizado.






Da urgência das urgências para a vida

A questão mais urgente para o indivíduo, certamente: – vale a pena continuar a viver? essa vida merece ser vivida?

No entanto, temos, não exatamente uma questão, mas um problema no ralo, a água do chuveiro não escoa, e inunda o banheiro e, logo, o assoalho do quarto, que demora dias para secar. Isso é realmente urgente. Essa urgência suspende a urgência menos imediata de nossos outros problemas e questões sem respostas. Ou, talvez, um vazamento de gaz no fogão seja ainda mais urgente. E, assim, essas urgências imediatas nos ajudam a viver e a decidir como viver.




A taxa crescente do desemprego

Inegavelmente, temos uma crise no emprego. Mas a crise também se encontra na nossa incapacidade de julgar o que o emprego e o desemprego de fato significam. Somente uma sociedade (dirigida por um partido) de trabalhadores (ou por um partido de “industriais” – industriais e trabalhadores são pólos de uma mesma relação) encara o aumento do desemprego (numa sociedade que mesmo assim pode garantir a satisfação das carências básicas) como problema e não como um plus de liberdade. O que podem, afinal, fazer de si humanos liberados do trabalho que se autocompreendem como essencialmente dedicados ao trabalho?

1958: “– O que se nos depara, portanto, é a possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente, nada poderia ser pior.”*

2018: Pela renda mínima universal...



(*) ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 [1958]. P. 13.

O antirrei

Quando nasceu, todos, mas cada um a seu modo, segundo a sua própria imagem, tinham certeza de que estavam diante de um futuro rei.

Ele, pelo contrário, percorreu toda a sua vida, e dedicou todo o seu reinado, para provar que estavam todos enganados.


Falhar: fala-filho


Falar é pôr um filho no mundo. Fazer um filho, por sua vez, é pôr uma fala no mundo. Fala e filho são falhas no mundo, que de outro modo seria sem falhas, sem filhos, sem falas.






Diário de Moscou XXXV


Como um moribundo, com seu último fôlego, que basta para não mais do que três palavras...