A essência extensiva da economia

O movimento e o repouso dos pequenos modos para e na intensificação do nobre – isso é a “essência” extensiva do que chamamos de economia.

O movimento e o repouso dos pequenos modos: toda outra noção, de carência, de clientela ou de fabricação, por exemplo, lhe são, então, acidentais. Para e na intensificação do nobre: e toda nobreza é, então, uma nobreza econômica.


Movimento e repouso dos pequenos objetos

A circulação, muito veloz e seguida de repouso, dos pequenos prazeres efêmeros, na sua alternância de fortuna com as dores, também tão pequenas e efêmeras, põe em dúvida a existência da beatitude eterna – e até o seu valor.

Tudo, absolutamente tudo, resplandece como pequeno e efêmero, no seu movimento, no seu repouso. Não há sumo objeto.
 

“g” ou sobre o cansaço na filosofia

A filosofia não diz o verdadeiro do falso, nem o certo do incorreto.
A filosofia não nos cansa.

Não é um gênero, mas uma espécie de cangaço.


111


A cifra é, juntamente, o enigma que mantém oculto o real e a chave que permite o seu deciframento.

A essência do real

A realidade do real também é real (não subjaz, não está por trás, nem para além do real).


O que significa “Filosofia”?


Positivamente: uma atitude crítica refletida em discurso acerca das condições das articulações e conexões dos mecanismos (ontológicos, políticos e éticos) que constituem o real.

Negativamente: uma atitude crítica refletida em discurso que desarticula e desconecta toda pretensão filosófica positiva, ou que toma toda filosofia, primeiramente, como uma ficção.

Diário de Moscou XIX

De Moscou até a Sibéria, há apenas uma linha reta traçada no mapa das afecções.

Entretanto, mesmo ali, há, como sempre há, um ínfimo espaço reservado para a pequena felicidade. Não se trata da reserva de um lugar vazio, desocupado, mas da reserva de um espaço de reviramento possível. Reviramento no qual os afetos e as imagens podem se encadear de uma outra maneira, a qual nos alegra, ao invés de nos entristecer.

A tradução definitiva


Podemos abandonar mais esse ideal redutor de que deve haver uma única tradução, a melhor, e portanto definitiva, de um texto em língua estrangeira.

E assumir, como um bem e não como um mal, que toda tradução dá expressão e força a um desejo do tradutor, e é dirigida a um público, ou que cada circunstância de enunciação exige a sua tradução.


Esterilidade ou fertilidade? III



Maquiavel escolhe a fertilidade natural com alguma esterilidade, alguma inibição provocada, artificial. Os ascetas, a esterilidade, pura e simplesmente (isto é, a esterilidade natural e provocada).

Não haveria uma outra escolha possível que fosse, pura e simplesmente, pela fertilidade? Uma fertilidade fértil, natural e artificial, sem qualquer situação inibidora? 

Seria essa a condição divina:
Ética 1, proposição 16: “A partir da necessidade da natureza divina, devem se seguir infinitas coisas de infinitos modos, isto é, todas as coisas, as quais possam cair sob o intelecto infinito.”*



(*) SPINOZA, Benedictus de. Ethica [1675]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677.

Esterilidade ou fertilidade? II



Maquiavel, como vimos, escolhe a fertilidade. Mas há os que escolhem a esterilidade.

Os espíritos ascéticos, como reação às condições de vida difíceis a que se encontram submetidos por necessidade, escolhem buscar condições ainda mais estéreis para a vida, porque somente ali, segundo eles, podem reencontrar a sua potência.

Quer dizer, os ascetas provocam o aumento de sua potência, procurando, ou provocando, condições ainda mais inóspitas e inibidoras. Entretanto, presos, como são, a uma atitude de reação e negação de uma potência outra que os oprime, desde o início, no mundo do qual eles escolhem se retirar, não percebem que as condições de esterilidade que procuram constituem um limitador, um inibidor, da sua potência própria e impedem a sua exuberância.


Esterilidade ou fertilidade?



Qual seria a melhor condição para a afirmação de uma potência ou de uma virtude, a condição de esterilidade ou a condição de fertilidade?

A vida num ambiente estéril, rude e impróprio à vida fácil requer o exercício contínuo, permanente, do esforço, da concentração das forças, da prudência, da inteligência, dessas coisas que constituem a atualidade de uma potência, mas que, por outro lado, se a exigem, também a limitam, ou inibem.

A vida num ambiente fértil, favorável e próprio à facilidade do viver, tende à tranquilidade, ao gozo do existente, à dispersão, ao amolecimento dos músculos e dos espíritos, à sonolência, a todas essas coisas que enfraquecem o tônus de uma potência, mas que, por outro lado, se invertidas nessa sua tendência, se colocadas à serviço, podem (porque não constituem em si mesmas uma limitação) levar à exuberância da potência.

Resposta de Maquiavel (ao problema que ele mesmo coloca):
“Portanto, como só o poder dá segurança aos homens, é necessário fugir a essa esterilidade da terra e pôr-se em lugares fertilíssimos, onde, podendo os homens ampliar-se graças à uberdade do solo, eles consigam defender-se de quem os ataque e oprimir quem quer que se oponha à sua grandeza.”*
Entretanto, para que isso funcione assim, é preciso, segundo Maquiavel, ordenar uma zona de esterilidade na própria fertilidade, não tornando a fertilidade estéril, mas solicitando, pelo comando, continuamente, o exercício da potência como se fora num ambiente estéril.

Fazer com que os humanos exercitem, na fertilidade, sua potência, como se estivessem num ambiente estéril – essa é, para Maquiavel, a condição da exuberância da potência.






(*) MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF, revisão de Karina Jannini (e levemente alterada por mim). São Paulo: Martins Fontes, 2007 [1517]. I, 1. P. 10.



Notas à margem do rio IV

Anota-se:

_ Aos insetos, a sensualidade!*




(*) DOSTOIEVSKI, Fedor. Les Frères Karamazov. Le Livre de Poche: Paris, 2010. P.123.




Notas à margem do rio III

Você faz ou deixa de fazer alguma coisa.
E, então, poder afirmar (como um inseto embriagado e delirante) que:
 _ Agora, o mundo engajou-se em uma nova direção!*




(*) DOSTOIEVSKI, Fedor. Les Frères Karamazov. Le Livre de Poche: Paris, 2010. P.120.

Notas à margem do rio II

Então, a voz escatológica de uma profecia (que paira desde a sua enunciação até a sua realização, durante milênios, como se fosse uma verdade eterna) o redime:

_ As relações sociais não são nada, se esvaziadas de amor*.




(*) ZU-EN LY (1203), mas na medida em que um ideograma possa ser traduzido.

Notas à margem do rio

Um cansaço das forças toma o indivíduo? O passo precisa ser amplo para saltar o mundo? Nada há a ser feito? Você se submete? Ou nem se submete, mas foge? Você adoraria fugir ou poder fugir? Adoraria poder não estar aqui? Ficar quieto e poder não dizer nada? Tudo lhe parece utópico? Ou apocalíptico? O que eu faço aqui? Você gosta? Você gostaria? Silêncio. Amor ou horror ao silêncio?

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“Os mosquitos estão me pecando”.
Quando for preciso, leia com toda a atenção.


Exercício de linguagem III

Ora, o esquecimento*, para Nietzsche, é uma força [digestiva] ativa (não uma fraqueza humana) que, ao apagar de nossas consciências os nossos assentimentos e as promessas que fizemos, nos deixa livres, como são livres os jovens para afirmar o novo de novo.

Mas, o espírito-livre, em sua liberdade de pensamento, não se esquece de que tudo é uma ficção e um produto da história. Isso, porém, paradoxalmente, é o que o impede de pensar verdadeiramente, ou seja, de ser livre para afirmar sem receio, sem a coerção de sua consciência comprometida, um conceito novo ou uma ontologia nova. 

Por isso, nós, os espíritos-livres, somos fracos de espírito.



(*) NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [1887]. II, 1. P. 47.

Aos solavancos


O desejo, além de ser a locomotiva do trem que somos, funciona também como uma espécie de chave de linha férrea. Ele se cola (e nos cola, porque somos todos desejo: trens constituídos só de locomotivas), facilmente, ao desejo de um outro, e, com isso, nosso trem como que descarrilha (um solavanco dá o sinal disso), e passa a correr em outros trilhos.

Atenção, então, aos solavancos!

Porém, são também os solavancos os indicadores de que nos recolocamos (de volta?) sobre o nosso trilho próprio.



Exercício de linguagem II



Nietzsche parece tomar nosso exercício de linguagem como ontologia: “não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo”*.

Esqueceu-se do que nos disse Foucualt, “...que toda ontologia seja analisada como uma ficção”**?

Mas, aí, teríamos de interpretar o que esquecer significa para Nietzsche.




(*) NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [1887]. I, 13. P. 36.

(**) FOUCAULT, Michel. Le gouvernement de soi et des autres: Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Seuil/Gallimard, 2008 [1983]. P. 285.

Por que nos colocamos questões morais?


Até mesmo andando de bicicleta podemos nos colocar questões morais.

Por que, afinal, valorizo passar pelo lado do caminho que é, num trecho de não mais do que um metro, revestido por uma cerâmica vermelha, e tão suave para o giro do pneu, apesar de que, por esse lado, sempre me vejo diante da ameaça de me chocar contra os galhos expandidos de uma mangueira de praça?

Teleologia e racionalidade

Imagem: – humanos (famintos, às vezes, obesos) girando em largas voltas; motocicletas-corpos, num puro giro sem finalidade. Pura ação humana, sem fim.

Contra-dito: toda ação visa a um fim.

Questão: – como abrir mão da finalidade sem se tornar irracional, ou como não reduzir a racionalidade à finalidade, ou como andar em linha reta e com direção sem porém ter uma meta?



Exercício de linguagem

Exercício: – nomear (apreender na linguagem, pelo nome) sempre pelo verbo, ou seja, não como se nomeia uma coisa, mas como se dá nome a uma ação.

A ação, não é função (que visa a um fim), é (puro meio sem fim) a produção de efeitos que se explicam apenas pela natureza da coisa (do “coisar”) apreendida. Mais fundamentalmente, é expressão.

Vassoura, vassourar. “Vassourar” não diz a função da vassoura, nem diz exatamente como a vassoura produz efeitos no real que se explicam só pela sua natureza, mas é uma expressão do todo, do todo que se manifesta num “agir” determinado. “Vassourar” é um modo pelo qual o “todar” se singulariza numa ação, na ação de vassourar desse jeito (ou, menos virtuosamente falando, com essa vassoura aí).

E, assim – branquear, bicicletar, relojar –, todas as coisas são ações, que exprimem, ao infinito, a natureza verbal, ou pelas quais a natureza verbal se exprime infinitamente.



Antifuturismo


Vivas ao futuro (pois é uma força de desprendimento)!
Ao mesmo tempo, eu te diria: – não pense no futuro!
Mas, isto poderia significar, apenas: – sim, vá lá, e quebre a cara do sujeito que você agora odeia.


Contra o copyright



Como disse Carl Schmitt*, os conceitos da política moderna têm, todos, sua origem na teologia. Apropriação do sagrado, pelo secular. Mas, por exemplo, a política secular apropria-se, sem transformá-la, da relação de poder teológica da soberania. Pura apropriação. Nesse aspecto, segundo Agamben**, a modernidade seculariza o sagrado, mas não o profana.

A profanação, ainda segundo Agamben, é, propriamente, uma apropriação transformadora (o gesto típico de Debord). A profanação apropria-se do sagrado, o traz novamente para o âmbito do uso, mas suprime na coisa profanada a sua anterior finalidade sagrada. A coisa profana, enquanto permanece profanada, torna-se um puro meio sem fim***. Como o Césio 137, nas mãos das crianças de Goiânia.




(*) SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
(**) AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmanm. Belo Horizonte: Ufmg, 2007.
(***) BENJAMIN, Walter. Critique de la violence [1921]. Trad. Maurice de Gandillac. In: Oeuvres I. Paris: Gallimard, 2000.

Permanecer grudado à curva ou seguir pela tangente?


Permanecer grudado à curva [real do trajeto] ou seguir [na fantasia] pela tangente?

Grudado ao chão, no sabor ou dessabor de cada gomo da terra. Isso é o que é. Disso é que se dispõe. Nada mais, nada menos. Ser a própria tendência centrípeta que nos faz aderir ao real.

Pela tangente, pelo contrário, se mostram à imaginação as tendências centrífugas. A fantasia. A esperança. Também, é verdade, o delírio, a insanidade, a transcendência.

Pense-se bem, e, grudados à curva do chão, na nossa velocidade, esta se torna uma falsa alternativa.

As coisas estão mudando, e para todos

As coisas estão mudando, e para todos. Essas mudanças externas induzem modificações diversas nas disposições atuais dos corpos e do meu.

Eu tenho uma ideia dessas modificações em meu corpo, que me afetam de uma maneira singular, determinada pela natureza própria do meu corpo.

Sou consciente do meu afeto. Mas, inconsciente dos afetos dos outros, me pergunto: – como se modificam os corpos dos outros, como suas almas percebem (e sentem em seus corpos) essa mudança das coisas?


Individuação


O indivíduo é uma região perpassada por intensidades que circulam também no não-individual: “uma agonia tão grande”; “uma felicidade inexprimível”. E, nessa perpassagem, o indivíduo se desregionaliza (se transforma no que não é, ou seja, pensa).


Diário de Moscou XVIII

Qual seria a medida do meu egoísmo? Seria tão grande a ponto de obstruir toda a visão que eu possa ter para além dele ou sobre ele na sua totalidade?

Diário de Moscou XVII


Perguntaram-me como eu me sentia (ou teria sido uma voz interior?).

– Sinto uma tristeza infinita, respondi, que se refere, não a um objeto atual, mas à poeira cósmica resultante de um acontecimento fundamental que se esfarelou, perdendo sua capacidade de agir sobre o universo, há muito, muito tempo atrás.

...e lembro-me de Benjamin: 
“Quieto, vamos”, disse ela, acariciando-lhe a cabeça. “Quieto. A Dilsey está com você.” Mas ele berrava devagar, impotente, sem lágrimas; o som desesperado e denso de todo o sofrimento mudo que há sob o sol.*
...e, novamente, de Benjamin:
Ele tem seu rosto voltado na direção do passado. Ali, onde nos aparece uma cadeia de acontecimentos, ele só vê uma única catástrofe, que, sem cessar, acumula ruínas sobre ruínas, e as precipita a seus pés.**








(* ) FAULKNER, William. O som e a fúria. Trad. Paulo Henrique Britto. São Paulo: Cosac Naify, 2012 [1929]. P. 348.

(**)  BENJAMIN, Walter. Sur le concept d’histoire [1940]. Trad. Maurice de Gandillac, revista por Rainer Rochlitz. In: Oeuvres III. Paris: Gallimard, 2000. Tese IX. P. 434.

Provavelmente, sim; isto é, talvez, não


O conhecimento estatístico, que remete ao 5º modo de conhecer, não é suficientemente percebido na parte de desconhecimento que ele comporta. Por isso, o filósofo-que-vem (que prefere manter-se no anonimato), quando confirma um dado estatístico, o assere da seguinte maneira:
“Provavelmente, sim; talvez, não.”
(ou, como diria o filósofo-que-foi, Epicuro: as coisas-que-ocorrem ocorrem em parte necessariamente, em parte ao acaso, mas, também em parte, elas dependem de nós).

A invenção do tempo II


Já lemos acerca do tempo, da temporalidade, como um artifício existencial humano. Temporalidade, uma categoria existencial, portanto; mas não um transcendental da experiência; e, sim, uma invenção, uma ficção coletiva da imaginação humana, uma noção criada em comum, que nos serve de princípio de inteligibilidade (epistemológico), de operacionalidade (político-pragmático) e de compreensão de si (subjetivador).

Proust: “...como o porvir é o que ainda não existe apenas no nosso pensamento, ele nos parece ainda modificável pela intervenção in extremis da nossa vontade”*.

O tempo (o jogo presente do passado sobre o futuro e do futuro sobre o passado) abre, na imaginação, o espaço disposto-durante (o dispositivo-aí que dura em transformações e metamorfoses) para a ação humana sob o regime da vontade.

(*) PROUST, Marcel. Albertine disparue. Col. Folio Classique. Paris: Gallimard, 2009 [1923]. P. 4. Aqui, a tradução de Drummond, ao contrário do habitual, parece-me, ainda nos deixa em um sutil equívoco: “...sendo algo que só existe em nosso pensamento, o futuro nos parece ainda modificável pela intervenção in extremis da nossa vontade”.

Fofocas literárias

Quem disse “cada homem é árbitro de suas próprias virtudes mas homem algum deve prescrever o que é bom para outro homem”*?

(*) Certamente não foi, como se poderia crer: FAULKNER, William. O som e a fúria. Trad. Paulo Henrique Britto. São Paulo: Cosac Naify, 2012 [1929]. P. 197. Ou é ele quem tudo diz?


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Assalta ao viajante o desejo de rotina, como uma sombra que deseja o próprio objeto do qual ela se projeta.


Os instintos: a consciência


Acostumamo-nos, historicamente, a contrapor a consciência aos instintos, a interpretar a força da consciência como contraposta a dos instintos, a deixarmo-nos guiar pela voz da consciência antes do que pelas vozes dos instintos.

Numa dupla volta da consciência, na consciência da consciência, será preciso, talvez, interpretar a consciência como um instinto. Interpretá-la ao jeito de um impulso tão cego, tão perigoso e tão ameaçador para a nossa existência, quando dominante, quanto qualquer outro instinto.

Conforme o prudente, a voz da consciência: uma voz entre outras.

Para ceder um exemplo: “Como o sofrimento vai mais longe em psicologia do que a [própria] psicologia!”*.





(*) PROUST, Marcel. Albertine disparue. Col. Folio Classique. Paris: Gallimard, 2009 [1923]. P. 3. Ou, na tradução mais perfeita de Carlos Drummond de Andrade: “Como, em psicologia, o sofrimento vai mais longe do que a psicologia!”

– Ah! Entendi! – II

Algo parece ter sido explicado.
Mas podemos entender – e nos entender –, também, sem explicações.




Pigmalião ou: – por que os artistas amam suas obras?


Na sua resposta à questão do título, Aristóteles explica o amor à existência (o conatus de Spinoza) não como conservação, mas como desdobramento da potência.

Por que os artistas amam suas obras?

Ora, diz Aristóteles, os artistas amam suas obras porque:
• a existência é para todos os homens digna de ser escolhida e amada [todos amamos existir];
• nós existimos, diz Aristóteles, por razão da atividade (viver e agir) [existir é atividade; e a atividade é coextensiva com o existir];
• [logo: todos amamos a atividade];
• a obra (ergon) é um produto da atividade (energeia);
• [se amamos a atividade, amamos o que lhe é semelhante, e seus desdobramentos se lhe assemelham – assim, amamos o que a nossa atividade produz, amamos as nossas obras];
• logo, todos amamos as nossas obras (porque amamos a existência).

E Aristóteles complementa: “e isso tem raízes profundas na natureza das coisas, pois o que o artista é em potência, sua obra o manifesta em ato”.

Nisso tudo, Spinoza apenas corrigiria esta noção de potência em Aristóteles. A potência das coisas da natureza, em Spinoza, não se opõe ao ato, como em Aristóteles. A potência, em Spinoza, é sempre atual. Ela é o que ela é.


ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Col. Os Pensadores. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim a partir da versão inglesa de W. D. Ross. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. IX, 7, 1168a5-a10. P. 167.


A forma do dinheiro

Em Aristóteles, 1164a, “A forma do dinheiro – à qual tudo é referido, pela qual tudo se mede”, leia-se por “tudo”: todas as coisas referenciáveis e todas as coisas mensuráveis – isto é, tudo isso que se pode perscrutar e fixar com o olhar; tudo isso que se coisifica (reifica) como objeto teórico.


Antifilosofia


Uma atitude de filosófo contra a filosofia: – agir e pensar, portanto, existir, no mesmo nível dos outros entes.



O filósofo vai ao cinema


Se é verdade que a filosofia contaminou ou colonizou a vida, ou seja, se é verdade que cada um de nós adquiriu um pouco dessa atitude desconfiada diante do que é (ou do que é dito ser ou do que parece ser) (e precisa ir ao cinema para poder, sem culpa, entregar-se ao sonho), então, só um outro modo de ser filósofo pode nos livrar dessa contaminação ou colonização.

Mas, temos necessariamente de nos deslocarmos da atitude filosófica para uma atitude natural, se desejamos existir no mesmo nível dos outros entes? A filosofia tem, realmente, que deixar tudo como está?


Argumentação cética a partir do engano


Uma vez, concedamos, já nos eganamos completamente. Então, como nós podemos saber, ao certo, que não estamos enganados também desta vez?


Tendências

Tudo são tendências (ladeiras, canaletas, resistências, escapes, indicadores magnéticos de caminhos, vetores de força agindo sobre outras tendências, sobre movimentações fortes, sobre deslocamentos energéticos ou sobre capacidades de trabalho). Essas tendências não são independentes umas das outras. Interagem. Acordam-se. Agrupam-se. Reforçam-se. Neutralizam-se. Decompõem-se.


Elucubração e guerra

– Você fala disso e daquilo, como se a guerra não estivesse acontecendo.

Mas a guerra está aí, e tudo o que eu falo é um pedaço de arma ou um estilhaço dessa guerra.

Ontologias como discurso sobre o real?


A língua e o que com ela se diz, o discurso, não são uma espécie de supra-realidade ou uma bolha imaterial no real material. O discurso não fala do real. Ele é real, na medida em que é efetivo, isto é, produz efeitos reais.


Filosofia como doença e como cura

O princípio de causalidade é um princípio ontológico ou epistemológico? A causa natural é algo real ou uma maneira de interpretarmos o real, ou de o conhecermos, ou de lidarmos com ele, no uso da vida?

Estas questões permanecerão sem uma resposta definitiva: alguém diz isto; um outro, aquilo. Elas pressupõem o ontológico e o epistemológico, o real e o intelectual, o natural e o humano, como dois âmbitos de existência distintos. Essa separação, porém, é um ato ideal da filosofia, um distúrbio da vida e do pensamento, que, porém, só pode ser revertida filosoficamente.

A filosofia é como o pharmacon, ao mesmo tempo veneno e antídoto.




– Ah! Entendi!


Segue-se a uma asserção: – Ah! Entendi!

O que isso, então, quer dizer? Que eu conheci a causa (eu, agora, sei a razão da coisa asserida) e estou aliviado? Que eu conheci o significado (eu, agora, sei o que a asserção quer dizer)?


Tudo é questão de método – VII

Quando o terreno (mesmo no pensamento) está difícil, vá devagar, sem se afligir pela demora. Ou passe rapidamente, sem olhar para nada, até chegar em outro lugar.



Incompreensível ou não confiável?

ELE me olha, com suas mãos calejadas, para mim, sentado à escrivaninha, luz acesa, um livro aberto, algumas folhas de anotações, algumas canetas como instrumentos – isso não pode ser trabalhar – que mundo, afinal, essa atividade produz?

Isso não é apenas incompreensão dele, mas uma desconfiança.


Conexões de segunda ordem

Posso falar das conexões que uma coisa constitui (só assim a conheço).
E posso falar das conexões que uma outra coisa constitui. Isso também me é autorizado. 




Mas não posso falar de qualquer conexão de conexões sem que seja considerado louco? Só posso falar das conexões de primeira ordem?

– Não se confunda: isso não quer dizer que não haja conexões de segunda ordem, apenas que você não pode falar delas.

Quem me confunde é você. Você quer me deixar com coisas na mão. Quer salvar as coisas, a qualquer custo. Veja, as coisas estão sempre em relações, conexões, estados de coisas. Perscrutá-las com o olhar, e querer fixá-las, apenas nos deixa diante de outras relações. E essas relações não são fortuitas, elas têm força, na verdade, são tendências.

Da relação para a coisa

Você quer retroceder da relação entre coisas para a coisa? Não adianta; na coisa isolada, você só encontrará a relação entre as suas partes.


•)••)•••)

Quando falamos de uma coisa, na verdade, falamos da relação de uma coisa com outra.




E quando perscrutamos a relação, a fixamos como se fosse uma coisa (isto é, a colocamos em relação com outra).


E, assim, ao infinito.




A vida, na semana que vem


Poderíamos levar a vida de tal modo como faz o filósofo. Afinal, na sua espontaneidade, o filósofo livre, o filósofo que vem, deixa absolutamente de lado os velhos problemas. Ele não fica (como creem alguns) falando das mesmas questões de sempre, apenas de maneira distinta, colocando-as e resolvendo-as com novas palavras e ideias. O filosófo que vem tem diante de si um panorama livre, ele está numa paisagem que vem.

Por isso, queremos viver filosoficamente.




Complexo do professor

O complexo do professor seria esse: – ele se sentir, em todo lugar, como se estivesse em uma sala de aula.


O logos do antropós

Os antropólogos (ainda mais quando agem e pensam filosoficamente) parecem estar acima do humano. Pois parecem dispor do humano como se o humano fosse um objeto disposto diante deles, manipulável e, nessa manipulação, observável.

Mas os antropólogos não são deuses, nem suas ideias imortais. Suas próprias mãos (as que manipulam) deixam suas impressões na superfície dos seus objetos.


O que é isso, afinal, a filosofia?

Essa questão do papel do filósofo, dessa sua tarefa, dessa “afinal, para que filósofos?”, Foucault responde assim:
O papel do filósofo de dizer “o que acontece” consiste, talvez, hoje, em demonstrar que a humanidade começa a descobrir que ela pode funcionar sem mitos. O desaparecimento das filosofias e das religiões corresponderia sem dúvida à alguma coisa desse gênero.*
Primeira observação: não tem nada a ver, um com o outro, o filósofo e a filosofia. Filósofos contra a filosofia.

Uma segunda: sem mitos, então, poderíamos dizer, sem tv!



(*) FOUCAULT, Michel. Qui êtes-vous, professeur Foucault?. Texto 50 [1967]. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François; LAGRANGE, Jacques (Orgs.). Michel Foucault: Dits et écrits. Vol. I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001 [1994]. P. 648.

Sempre elogiar o acontecimento IV: aristotelizando...


Para Aristóteles, a atitude (a disposição para o agir de certo modo) não é uma disposição dada, mas uma disposição adquirida, através da formação cultural (paideia) e dos costumes sociais (êthos).

Quando essa disposição é filosófica, isto é, quando tem em vista um grau mais elevado do humano, uma excelência, uma virtude ética (areté ethiké), a atitude filosófica, como disposição, não é simplesmente adquirida, mas é uma tomada de posição e envolve escolha.

Aristóteles nos fala, talvez, de dois tipos de atitude filosófica (hexis, em grego; habitus, em latim), dois tipos de modo de ser e agir adquiridos pela prática refletida, pelo agir orientado pela reta razão (kata orthon logon). A atitude filosófica envolve um oportunismo e um circunstancialismo.

Um circunstancialismo, na medida em que, no agir, o humano filósofo está de tal modo disposto que retira, de quaisquer circunstâncias, o maior proveito*. Afronta o acontecimento cavalar, como Filipe, como amigo do cavalo, e diz: – melhor assim, pois assim... etc.!


Um oportunismo, em segundo lugar, porque, o amigo do acontecimento age oportunamente, isto é, na ocasião apropriada, para com as pessoas apropriadas, com referência às coisas apropriadas, pelo motivo apropriado, e da maneira apropriada(**).

Em que medida estas duas atitudes – (1) fazer de toda circunstância uma oportunidade; (2) agir oportunamente – constituem um único modo de ser e agir?

Na medida em que a atitude filosófica faz de toda circunstância uma oportunidade para agir oportunamente, na medida em que essa tomada de posição percebe, em cada circunstância, a ocasião, os objetos, as pessoas, o motivo e a maneira conveniente do agir.

O humano filósofo jamais deixa de agir, em nenhuma circunstância, mas age sempre oportunamente. 

Portanto, agir sempre não significa se mover sempre, e agir não significa se mover.




(*) Aristóteles. Nic. Eth. 1101a.
(**) Aristóteles. Nic. Eth. 1106b20

Saudades de tudo

Spinoza propôs que o intelecto, com o amadurecimento, fosse ganhando o espaço da imaginação, nas mentes dos que se libertavam. No meu coração nômade e envelhecente, o que ganha espaço, porém, são as saudades. E isso não é nada mal, afinal, sem o sabor das memórias não se pode sequer pensar.


Acerca do múltiplo muito


A intensidade de um império democrático, como múltiplo muito, é diretamente proporcional à sua diversidade. Quanto mais complexo é um corpo, quanto mais ele é capaz de ser afetado e de afetar outros corpos, tão mais potente ele é. 

O desafio dos impérios democráticos, ao contrário do que ocorre nos hierárquicos, é tanto o de evitar a redução da diversidade, como o de manter, sem a obediência, a conveniência das suas partes componentes.

Nosso diálogo não se prolongará

Se você dialogar comigo, você vai dizer que eu sou curto de argumentos. Nesse sentido, pelo menos, eu penso aristotelicamente: não podemos, nas argumentações, recuar ao infinito.

“Tudo é questão de método” – VI

– Você é obrigado a dar a fonte original de tudo o que você repete ou copia.

Se não, tudo o que você afirmar ou negar será atribuído a você mesmo, como a sua fonte original; e de três, uma: (1) ou o que você propõe será absolutamente desprezível, (2) ou será seriamente levado em conta, ou seja, se você não denunciar categoricamente a fonte original, você será culpado de tudo o que enunciar, (3) ou, ainda, você será fatalmente acusado de plágio, sob a hipótese imperativa de que não há nada de novo no mundo.


Insurreição brasileira III – ir multiplamente II

Matar um tirano e colocar outro no lugar. Não é essa a causa eficiente da insurreição. Um é sempre pouco. Ir multiplamente, multiplicando-se.

Insurreição brasileira II – ir multiplamente



O múltiplo muito vai às mentes, aos corpos, às ruas.

O que queremos? Um fim, um objeto? De onde viemos? Por que vamos? De ou por uma causa?

Não podia ser diferente, as reivindicações são, a princípio, múltiplas e, enquanto múltiplas, disparates. Dar um sentido, uma direção, uma interpretação, aos issos que acontecem é reduzir o múltiplo muito ao pouco um. Um é sempre pouco.

Cuidemo-nos, portanto, com as interpretações derradeiras dos objetos, com as finalidades últimas, pois, juntos ao que está diante de nosssos olhos, como um objeto e como um fim, estão sempre o nariz e a própria visão própria. A interpretação objetal derradeira nos tranquiliza, mas apenas na medida em que domina seu objeto e por ele é dominada. A indicação de um fim último nos orienta, porém, nessa orientação, um fim se dá como nosso guia.

E, no agora vai, trata-se de desdominar-se, de desguiar-se, de inventar, de iniciar, de ir. De ir multiplamente. Na potência, não por um poder.

Sem a memória, não poderíamos sequer pensar. Por isso, nosso pensamento requer, como costume, interpretações. Mas, também por isso, a interpretação introduz um passado no presente, quando, no presente que vai, no agora vai, já há também o futuro do ir – o ainda-não-já-presente.

ainda-não-já-presente não é jamais totalmente interpretável. Ele abre, no presente, uma incompletude.

No ir multiplamente, por múltiplas vias, com o múltiplo muito, não se trata de ir a um lugar, mas de sair deste.



“Tudo é questão de método” – V


– Como é possível... ?

Pensamento ensaístico – não resolver o pensamento em proposições verdadeiras (que, sempre, pela mesma razão que se afirmam como verdadeiras, podem ser falsas), mas, por exemplo, deixá-lo no nível da investigação, isto é, das indagações.


“Tudo é questão de método” – IV

Se a ciência é o discurso do verdadeiro e do falso, e a política é o discurso acerca dos comandos de obediência e das atitudes de desobediência, que não são nem verdadeiros nem falsos, como é possível a ciência política?

Insurreição brasileira


Vem-me à mente, nesses dias, a questão da “insurreição brasileira”...

Para saber se estamos diante de uma “espiritualidade política”, como no Irã de 1978-1979, precisamos nos perguntar se, para “mudar o Brasil”, estamos também dispostos a “mudar a nós mesmos”.

Enquanto a insurreição for simplesmente determinada pelo objeto dos afetos, i.e., enquanto a insurreição for contra um objeto considerado exterior ao modo de ser que nos constitui, a nós, os insurretos, ela será certamente política. Mas, só será também espiritual na medida em que envolver o seu contra-objeto em nossa própria subjetividade.


“Tudo é questão de método” – II

– Nada de certo escapa ao método certo.

Se você diz que a essência do mundo é científica, isto é, que o mundo inteiro pode ser expresso por meio de proposições verdadeiras, você oculta a essência política do mundo, expressa por meio de imperativos ou comandos de obediência, que não são nem verdadeiros nem falsos.


“Tudo é questão de método”


Ainda estamos assombrados pelo método (pela via certa).

– Nada de certo escapa ao método certo.

Ainda acreditamos que tudo de certo só nos chega de modo certo. E que o modo certo pode alcançar tudo o que é certo.

Entretanto, não podemos ter muitas vias até a mesma coisa certa? E não podemos nos deparar com coisas certas por acaso ou pela via errada? Não podemos ter em mãos coisas certas, sem conhecermos o modo certo de chegarmos até elas?



Tudo (na sua abertura) são sentimentos de sentimentos

Isso que você me diz, nesse momento, é que não há verdades ou cristalizações. Então, tudo são modificações de modificações, ou seja, o que costumamos chamar de sentimentos.

Diário de Moscou XVI – O dinamismo inapreensível do ser ou a sua insustentável leveza

A caminho de Moscou, tudo em minha mente (e ela mesma inclusive) se descristaliza. Como se estivéssemos incondicionalmente atrelados a uma pérpetua e infinita estação de trem, passando apenas de um a outro cais, trocando de linhas e trilhos, sem qualquer verdadeira destinação ou destino.

É provável que, nessa imagem, eu esteja ainda sob o impacto da colocação dos filósofos: “não se pode cristalizar o ser”. O ser é solúvel em si mesmo (a grande estação ou biblioteca), e não há depósitos sedimentados, sequer características ou padrões de sedimentação, no fundo do ser. Só há trilhos e viagem, nenhuma identidade, nenhuma cidade, onde descer do trem.


A virtude, ao menos, na palavra

A virtude não vem depois da boa ação (uma ação correta, perpendicularmente reta, orientada pelo nosso vínculo comunitário, humano e com a natureza). Não é a ação boa que faz o virtuoso. Esse é o padrão da moral (um modelo dado de ação que, se imitado, é critério da virtude).

A virtude não é um fim a se alcançar mediante um comportamento moral. Mas um princípio, uma arché humana. A virtude é uma potência reta consigo mesma e, como tal, é já uma disposição da qual se seguem as ações boas. É o virtuoso (em sua reta potência) que faz a boa ação.

Ânimo vigoroso, generosidade, força e coragem, prudência, atenção, perspicácia, vinculação, numa palavra: fortitudo*.




(*) e4p73 e escólio. SPINOZA, Benedictus de. Ethica [1675]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677.

Exercício acerca das questões

Qual dessas duas questões é a mais importante filosoficamente?

(1) – A mente existe imaterialmente?

(2) – Precisamos sempre esperar a fome para começar a cozinhar?



Iguais diferenças

– Todas as diferenças são uma única. Ou seja, toda diferença é igual. Assim, retomamos a diferença, profundamente, como igualdade.

Um exemplo deste pensamento enganado: se compreendermos, na sua essência, uma diferença particular, aquela entre “la vie à chaud” e “la vie a chaud”, compreenderemos toda outra diferença.

Na primeira expressão: – “vida” e “quente” são imanentes um  ao outro; na outra: “vida” e “quente” estão contingentemente unidos. Isto é, toda diferença é diferença entre imanência e transcendência.

La vie à chaud


Os hábitos realmente democráticos são passionais, interessados, contingentes, impulsivos, imoderados, intempestivos. Mas não é essa irracionalidade que refuta a democracia real.

Refutam-se os hábitos esfriados de uma democracia acalmada. Ela cheira a hipocrisia. Por baixo dessa impressão de crosta asserenada, vigora sempre a mesma vida acalorada.

A filosofia, a moral e o espelho


Quando se diz que a filosofia não deve ser como um espelho da natureza, por estas tortuosas vielas do dever, que nos fazem dar voltas sobre nossos próprios passos, já estamos a espelhar alguma coisa.

Afinal, a atitude moralizante não faz mais do que exigir de você que você se enxergue no espelho dela.



Ajuda (argumento por autoridade)

A compreensão abre um âmbito de não-compreensão, e se abre por ele.

Deleuze:
– É preciso sempre desconfiar dos filósofos: quando ficamos muito contentes de ter compreendido, é porque isso que compreendemos é uma condição para compreender ainda outra coisa que não compreendemos. Então, quero dizer, são sempre textos de muitos níveis...

Encontre-me, perdendo-me


Para que você não se prenda a uma imagem associada a mim, eu tenho vários nomes – e vários endereços eletrônicos (e-mails). Eu vivo em Moscou (já vivi em Berlim e Paris).

Mesmo assim, um dr-one, ou dois, dr-two, pode me localizar. Se não pode intuir-me, destrua-me.


Diário de Moscou XV – a visita de Bergson



Moscou não é um conceito, mas uma imagem.

Bergson, que encontrei durante sua visita a Moscou, colocou em suspenso, para a filosofia, o conhecimento por conceitos. Para ele, a essência movente do real não pode ser reconstituída a partir de conceitos que são elementos racionais imóveis.

O real (a coisa em si mesma) precisa ser apreendido por intuição imediata, num “esforço da imaginação”* e não da razão, que conhece mediante conceitos. Pois, os conceitos racionais são sempre derivados das propriedades que uma coisa compartilha com outras. O conceito conhece propriedades comuns e não a essência da coisa, que é sempre singular.

Essa intuição, essa “simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único”**, é um ato simples que não comporta mediações simbólicas. E se a filosofia, enquanto metafísica, tem, no conhecimento do real, por procedimento intelectual (considerando aqui o esforço de imaginação um ato intelectual), a intuição, então a metafísica “é a ciência que pretende passar-se de símbolos”***. A metafísica, portanto, não pode falar do que, em si mesmo, é inexprimível.

Minha vida (e, particularmente, minha vida em Moscou), como objeto, é inexprimível. Só pode ser conhecida pela simpatia de um filósofo (que seja também o meu leitor).

Dessa vida minha posso oferecer ao leitor conceitos e imagens, mas nenhum dos dois pode representá-la, nem pode substituir a intuição que o conhecimento absoluto dela requer.

Conceitos são abstratos e só alcançam as propriedades comuns. As imagens, porém, têm a vantagem de serem concretas ou de “nos manter no concreto”****, pois permanecemos, com a imagem, ligados ao singular, apesar do distanciamento do símbolo.

Para fazer conhecer a minha vida (e particularmente em Moscou), segundo Bergson, eu deveria me valer de muitas imagens díspares, para que nenhuma delas possa “usurpar o lugar da intuição”*****.

Entretanto, eu uso apenas a imagem de Moscou. E Moscou-imagem toma o lugar da sua (e da minha própria) intuição de minha vida.

Ao menos, Moscou não é um conceito.








(*) BERGSON, Henri. Introdução à metafísica [1903]. In: O pensamento e o movente: Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P. 184.
(**) Ibid. P. 187.
(***) Ibid. P. 188.
(****) Ibid. P. 192.
(*****) Ibid. P. 192.

Modificações modificadas e modificantes


Modos de ser (esqueçam-se, momentaneamente, como em latim, artigos de “os modos do ser”, em função individualizante)... modos de ser são modificações modificadas (mas não apenas) e modificantes. Não se modificam sem modificar.

– Modificações de quê?

Ora, resposta exige reintrodução de artigo. E está excluída de jogo.

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Não há modos que se modifiquem sem modificar, porque são partes de natureza e não como impérios dentro de impérios.


Reflexão e gestualidade

A premente questão dos afetos e da afetabilidade não advém apenas do fato de que somos seres sensíveis, afetáveis (entes ou modos de ser modificáveis), como também do fato de que somos seres produtores de afetos (entes ou modos de ser modificantes). E isto levanta a questão do gesto.

O gesto bem-refletido só pode colocar a produção de modificações (em nós mesmos e no que nos circunda, modos de ser humanos e não-humanos) no âmbito estratégico da generosidade.



Amor de si, senhor de nós

Vive em nós, em nossa mente ou espírito, um modo de ser perverso: o amor de si.

Perverso, porque, sem ele, talvez não possamos viver, e, por isso, encontramo-nos dispostos a amá-lo e a cultuá-lo.

Além disso, acreditamos que ele nos ama – pensamos que aquele “si”, no seu nome, se refere a nós –, mas, se percebemos bem, ele só ama a si mesmo, como um modo existencial distinto e autônomo.

Tudo o que ele faz, o faz para si, para se enaltecer, para se expandir e se intensificar, em nós e por nossos meios. Usa-nos para isso.

Mecanismos afetivos XVIII – jogos de linguagem e afetos


A mãe recente de idade avançada se alegra ao revelar aos outros a novidade do seu filho. Quando fala dele, o chama de “meu bebê” (mesmo quando ele já completou três anos). A seus ouvidos, isto a rejuvenesce.

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É preciso, para contar uma vida, contar a história inteira e não somente uma parte dela.


Diário de Moscou XIV


Procuro desprender-me, um instante, da imagem de Berlim, e perceber sem influências a Moscou invariável. Isso, porém, parece impossível.

Não apenas varia a minha percepção de uma vida em Moscou, mas varia também a própria variação.

Então, como julgar a respeito de uma vida em Moscou?

Não sei ainda se Moscou é uma só cidade ou tantas quantas são as minhas impressões variantes. Nem se há de fato uma vida em Moscou.

Os meus hábitos de pensamento e de afetos, no entanto, exigem que eu julgue. Eles imperam: – julgue, porque uma vida está em jogo!

Quando, como atitude filosófica, o correto seria cultivar o desprendimento do desejo em relação ao desejo de julgar e a suspensão momentânea de todo juízo a respeito de uma vida.

Esclareço, ao final dessa página de diário, o que pode não estar claro: uma vida não é uma vida individual, mas um gesto engajado em múltiplas relações.


Nós, os espíritos cativos


No início de um espírito livre está a afirmação impetuosa e ingovernável:

“Melhor morrer do que viver aqui.”*

Como, para nós, no início de nossa catividade, no pânico, impera a afirmação contrária:

– Melhor viver aqui do que morrer.








(*) NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878]. Prólogo 3 [1886]. P. 9.


Solidão e responsabilidade, culpa

Meu sentimento de solidão aumenta à medida que aumenta a minha consciência de que a minha solidão envolve e determina, responsabilizando-me, a ausência de certos outros (não de uma alteridade indeterminada). Assim, sentindo-me só, estou, ao máximo, com certos outros em mente.

A solidão responsável aproxima-se do sentimento de culpa.



Semicompreensão metafísica III: intelecto e cérebro

Isso que define (ou seja, limita) a capacidade de penetração de um intelecto humano é a capacidade de refrigeração do cérebro.

Quando um cérebro esquenta, ele impede o pleno desdobramento (ou penetração) do intelecto.

Semicompreensão metafísica II: a linguagem ao infinito


Aumenta-se consideravelmente (isto é, ao infinito) o âmbito da linguagem ao tomar os signos, não mais como representações das coisas, mas como suas expressões ou manifestações imediatas.

A linguagem deixa de ser um meio, para se tornar o modo infinito imediato.

Semicompreensão metafísica



Com os anos (e o embate da reflexão que vem de fora, reflexão que é como as ondas insistentemente agentes sobre o hermetismo das pedras), aquilo que representava o vazio do objeto (ou a incapacidade de sua representação completa) tornou-se o próprio objeto (não a sua representação). Mas não há nisso, verdadeiramente, nenhuma transformação. Pois o objeto em si equivale à representação do vazio que há nele.


Tonalidades de mundo

Para o desgraçado, todo elogio (não aquele que lhe é feito, mas aquele que é feito à situação que o desgraça) é tomado como uma palavra de consolo.

A fórmula do ensinar



Ou

(1) sabe-se, antes, o que é o ENSINAR e compreende-se a fórmula,

ou

(2) compreende-se, antes, a fórmula e, então, compreende-se o que é ENSINAR.


Dos ameríndios ao luxo


Ameríndios, agricultores em floresta. Imagem que combate a necessidade do agrotóxico em ambiente tropical (cheio de vermes).

– Mas, sem o veneno, não se produz tanto.

“Tanto” é o plus que se produz além do necessário e do suficiente, talvez, para a troca (a qual, se necessária, não requer “tanto”). E “tanto-tanto” é o mais-que-plus, que o luxo exige.


O autodidata e o conhecimento de si

Aquele que aprende ao se conhecer aprende porque faz de si um outro, um desconhecido. O conhecimento de si envolve, assim, no perigo, essa abertura em si de um outro.

O aprendizado e o outro


Se eu acredito no autodidatismo?

Num certo sentido, não. Porque só aprendemos se, em alguma medida, nos tornamos um outro.

Assim, à capacidade de aprender corresponde uma capacidade de “se outrar”. O aprendizado, portanto, envolve a alteridade (como faz, aliás, a relação de comando-obediência).

Isso não quer dizer, entretanto, que é preciso a pessoa (o corpo, a fala e o olhar) de um mestre, se há, por exemplo, um livro. Basta o livro, se o aprendiz está na capacidade de tomá-lo como um outro (isto é, como algo que remeta à não-compreensão).

A alteridade é uma condição necessária do aprendizado, embora não suficiente (precisaríamos falar no desejo).

Pichação preta e demão de tinta branca


Para Kant, assim como os objetos das inclinações,
As inclinações elas próprias, porém, enquanto fontes da necessidade, têm tão-pouco um valor absoluto para que as desejemos elas mesmas que, antes pelo contrário, ficar inteiramente livre disso tem de ser o desejo universal de todo ser racional.*
Mas, se, a partir disso, eu digo que um traço marcante da moral kantiana é que ela tem horror às inclinações humanas, na medida em que o humano é um ser racional (visando, idealmente, a um espaço de liberdade vazio delas), como a natureza tem horror ao vácuo (preenchendo, porém, por necessidade, o espaço), certamente, alguém imediatamente se manifestará (quase indignado) para tornar menos marcante o que digo.

Fariam-me ler que, de fato,
As inclinações são, consideradas em si mesmas, boas, isto é, irrepreensíveis, e querer extirpá-las seria não apenas em vão, mas também nocivo e censurável; muito pelo contrário, temos tão-somente de domá-las, de tal sorte que elas não se desgastem umas às outras, mas, em vez disso, se deixem harmonizar em um todo ao qual se dá o nome de “felicidade”.**
Assim, para os eruditos escolados, o refinamento da leitura de um texto exige sempre a leitura de um outro texto e assim por diante. De modo que cada leitura, como uma demão de tinta branca que atenua um pouco a força de uma pichação preta sobre um muro, atenua um pouco a marca própria de uma outra leitura do pensamento. Com isso, a erudição escolada tende a tornar todos filósofos em figuras sem tatuagens.





(*) KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial : Barcarolla, 2009 [1785]. Segunda Seção. P. 241. Grifo meu.

(**) KANT (“A religião nos limites...”) apud ALMEIDA, Guido Antônio de. Introdução e notas. In: KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso Editorial : Barcarolla, 2009 [1785]. P. 328, nota 328.