Ação e puro movimento

Agimos na intenção de um bem, ou segundo um princípio. Essa é a diferença entre uma teleologia, que se envolve com a investigação desse bem que é fim da ação, e uma deontologia, que investiga princípios da ação aos quais devemos aderir independentemente de qualquer fim.

Mas também nos movemos sem pensar, inconscientemente, necessariamente, como uma pedra que rola montanha abaixo, isto é, guiados simplesmente pelas leis da natureza, enquanto elas não estão sobredeterminadas pelos princípios ou pelos fins que concebemos conscientemente.

Uma ação humana é sempre também um movimento puro, determinado por leis de produção de acontecimentos, das quais somos inconscientes, leis que nos excedem sempre, que são sempre, como um todo, inapreensíveis para nós, mesmo para um olhar retrospectivo. A ação nunca deixa de ser um movimento puro, mas nem todo movimento puro do ser humano é uma ação.

Um movimento puro é também uma ação, quando sobredeterminado por uma lei de produção subjetiva de eventos, ou seja, quando a lei subjetiva da ação coincide com a lei sobrehumana de produção de acontecimentos.

Que uma lei humana seja subjetiva não quer dizer que ela não seja objetiva, positiva, intersubjetiva ou clara para todos. Uma ação humana é sobredeterminada por uma lei humana, quando o agente entende estar determinado ao agir por uma lei posta por ele mesmo ou por um outro.

Pois não é exatamente a lei que é subjetiva, mas a sobredeterminação do agente ao agir.

A soberania absoluta

A soberania eterna é o lápis do qual se desenha, na duração, o desenho da politia. Deus, o Rei, o Povo e, finalmente, o Indivíduo são os soberanos dos diferentes impérios. Deus e a teocracia. O Rei e a monarquia. O Povo e a república. O Indivíduo e a democracia liberal, invenção do Ocidente. No seu sentido mais radical, "cortar a cabeça do Rei" significa romper com a idéia de absoluto.

Para não ser poesia

Para não ser poesia, a profecia precisa acompanhar-se de sinais claros e distintos; a filosofia, de fundamentos claros e distintos.

A verdade absurda

A verdade absurda não se deixa apreender em conceitos. Por isso, a filosofia precisa lidar, até o limite de sua possibilidade, com a vagueza polissêmica da palavra (ou com a linguagem sem semântica). Precisa ir até onde pode, até ali, logo antes de transgredir-se como poesia ou profecia.

[...] o espírito de um mundo sem espírito [...]

Por que nossa época é desespiritualizada?

Primeiro, porque – se contrapomos o corpo ao espírito – vivemos entre corpos e submetidos a eles. Mas, também, porque não temos um conceito de verdade capaz de se estabelecer como um ponto de fuga.

Se estamos num mundo que perdeu a fé em uma verdade absurda, e a verdade absurda é necessária como alvo norteador de uma transformação de si, então, ou não nos transformamos, ou nos transformamos sem orientação, sem alvo, sem norte, isto é, derivamos.

Nossa verdade é a verdade das sensações corporais. É verdadeiro aquilo de que podemos fazer ou reduzir a uma experiência do corpo. É verdadeiro o que, pragmaticamente, funciona, em meio aos corpos, promovendo suas existências. Verdadeiro e real, para nós outros, é o que se insere na performance econômica.

O jogo adequado de necessidades e satisfações, o jogo racionalizado de trocas de bens, visando o uso por nossos corpos e o uso de nossos corpos, é o nosso critério de atitude realista e não absurda.

O que é o sujeito?

Quando nos referimos a seres humanos, uma singularidade agente (simples ou composta, concreta ou abstrata) é dita sujeito de três modos:

(1) sujeito é a forma que toma uma singularidade, quando está inserida numa relação de assujeitamento que é critério para sua ação.

(2) é a forma que toma uma singularidade, quando age de maneira determinada pela compreensão que tem de si mesma.

(3) é o ser humano singular do qual se fala algo de objetivo.

Um exemplo: _O ser humano é um indivíduo empreendedor.

‘Ser humano’ é uma singularidade simples e abstrata, (3) objeto de uma ciência econômica, (2) que age segundo aquilo que considera ser o mais eficaz para a constituição do seu capital próprio, e (1) que vive numa sociedade neoliberal de mercado.

Outro exemplo: _Ana porta o véu.

‘Ana’ é o nome de uma singularidade simples e concreta, (3) da qual se fala algo que poderia e deveria ser constatado por qualquer um; (2) que porta o véu porque se considera muçulmana; (1) porque vive num país islâmico.

Os sentidos de (1, 2 e 3) podem coincidir, em uma espécie de sobredeterminação do sujeito, e ser pertinentes a Ana, enquanto sujeito que porta o véu. Ou podem não coincidir: Ana (3) efetivamente porta o véu, (1) porque vive sob a injunção da lei de Deus, mas (2) não se considera muçulmana. Ou ainda: (1) porque vive em uma república laica, e (2) porta o véu como sinal de resistência.

Sujeito corpo e corpo sujeito

Eu penso perspectivamente (no sentido latino de sentire, ser da opinião; pensar, mas a partir de um ponto de vista, no interior de uma perspectiva) que o sujeito da modernidade é o sujeito de um corpo. O corpo é aquilo a partir do que o ser humano se compreende como sujeito. Como tal, como origem local da subjetivação, o corpo, enquanto se torna objeto desse sujeito, é também o campo onde o sujeito inscreve a sua ação. Pelo corpo e no corpo vivo do ser humano, configuram-se os arranjos complexos das práticas discursivas da saúde, da sexualidade, da raça, da segurança, da economia política.

Reflexões apressadas

A estética moderna não pretende mais alcançar um significado para além dela mesma, isto é, um significado espiritual. É estética da estética. O próprio objeto da estética é o meio que a possibilita: o corpo e suas sensações – a estética da estética permanece nisso, do corpo para o corpo, no corpo e pelo corpo.