Quiasmas

É notável a fixação de Kafka com a ideia de celibato (que é diferente da ideia de solidão). Ele havia anotado em seu diário (24/11/1911) esse aforisma do Talmud: “Um homem sem mulher não é uma criatura humana”*.


De outro lugar**, Michel Foucault, ao falar da exclusão, apresenta as categorias da atividade humana:

1. Produção material econômica;
2. Reprodução da sociedade;
3. Linguagem;
4. Atividades lúdicas e festivas.

Com esta tipologia, pode-se dizer, fica racionalizada a experiência talmúdica: (*+**); do seguinte modo.

– Um ser plenamente socializado ou plenamente humano (se o humano é um ser essencialmente social) se exerce em todos estes tipos de atividade. E deixa de ser humano à medida que – como o celibatário em relação à reprodução social – deixa de exercer plenamente sua ação em uma ou outra destas categorias.



* Conferir: DAVID, Claude. Notices, bibliographies, notes rectificatives aux traductions, notes et variantes. In: KAFKA, Franz. Oeuvres complètes II. Bibliothèque de La Pléiade. Paris: Gallimard, 1980. P. 865.

** FOUCAULT, Michel. La folie et la société. Texto 83 [1970]. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François; LAGRANGE, Jacques (Orgs.). Michel Foucault: Dits et écrits. Vol. I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. P. 996-1003.

Theatrum philosophicum

1. O teatro é filosófico, talvez, porque não seja apenas uma construção do real. Todo real, a própria realidade, a estrutura do real, seria teatral – potências investidas em formas e papéis em parte pré-definidos, embora sempre reinventados em interpretações

2. Por outro lado, a filosofia é teatral, porque, talvez, não se dê sem o investimento dialógico de múltiplos personagens conceituais e sem a sua interpretação (por exemplo: por meio da interpretação do conflito entre a CONSCIÊNCIA MORAL e o AMOR DE SI).

O bom, o útil, o agradável e a vida como ela deve ser

O VULGO: – Que maravilha unir ao útil o agradável.

A CONSCIÊNCIA DO VULGO: – Muito bem, isso pode ser uma maravilha. Mas, para mim, o útil só se une, eventualmente, ao agradável porque são coisas da mesma espécie, que dizem respeito a sujeitos particulares, a você, àquele ali, àquele outro. E o que concerne sujeitos particulares não pode ser exigido de todos. Eu não sou a sua consciência, eu sou a consciência de todos vocês. O que é agradável para você pode não ser agradável para um outro (aliás, saiba que, para mim, que apenas penso, nada é agradável nem desagradável, o que não quer dizer que tudo me seja indiferente). De outra espécie, porém, é o bom. O bom é o que deve valer para todos e para você, em particular. 
O bom não é bom porque se une ao útil e ao agradável, pelo contrário, o bom é bom, justamente, porque é independente do útil e do agradável, porque vale para mim, que sou em você, para lhe indicar o caminho do bem supremo e cada vez que você se afasta dele. E, sendo assim, o bom é bom por si mesmo independentemente de qualquer vantagem ou prazer. Então, no critério de suas boas ações, esqueça-se do útil e do agradável. 

Nós, os moralistas e a vida como ela deve ser


OS MORALISTAS: – não adianta de nada você expor, contra nós, os seus argumentos com base na vida como ela é. Porque nós não tratamos da vida como ela é, mas da vida como ela deve ser. É a vida como ela deve ser que exige o regulamento da vida como ela é, e isso jamais será, por nós, invertido. Nós proibimos, em nome da própria lei da liberdade, o caminho do que é para o que deve ser.

O time deles e a vida como ela é

O time deles tem mil jogadores, o seu, talvez, onze. Como é que você quer jogar bola com eles? Por que pôr o nome do time deles, no placar, versus o nome do seu time?

O temerário é um imprudente. E imprudência não é coragem.

Nós, os moralistas e a vida como ela é

Para os moralistas, o grande inimigo do dever (e do respeito à lei pela lei) é o amor de si, de um si tal como ele é (e, por extensão, o amor da vida tal como ela é).

Agir por dever é elevar-se acima do amor de si próprio no amor da humanidade.

Mas a humanidade, aí, não é composta de “sis”, entes concretos, singulares, que amam a si próprios, e, sim, é a ideia da liberdade de um ser racional. Livre, porque sua vontade é desconectada de qualquer estímulo externo e capaz de se subordinar, querendo-a, à legislação que ele mesmo pensa e profere.

E o amor, aí, não é uma alegria, mas um “amor prático”, ou seja, um respeito, que não é causa do reto querer no sujeito, mas efeito dele.

Surpresa

De repente, eu percebi – depois de usá-lo durante muitos dias, sem pensar nessa eventualidade – que o meu tubo de pasta de dente estava quase no fim.

Memórias de uma pesquisa: Erro para resultado

Às vezes eu percebia um erro de percurso, mas isso, para o meu espanto, não alterava coisa alguma no resultado a que eu havia chegado ao cometer aquele erro.

Como se, num momento intermediário, eu calculasse 2+5 = 9, seguisse adiante, somando e subtraindo outros valores, até chegar a um resultado X, e, mais tarde, percebesse aquele erro, e o corrigisse, sem que isso modificasse, porém, o resultado final X já alcançado.

Agora eu sei que – como aquele raciocínio intermediário, correto ou torto, não alterava em nada minhas conclusões – eu podia me passar dele sem qualquer prejuízo, porque o meu resultado era independente do processo que me havia levado até ele; embora eu saiba, também, que eu, particularmente, não teria chegado àquele resultado sem passar por esse erro.

Quiasma: língua_pensamento VII: A profundidade das reformas ortográficas

Às vezes sinto como se meu espírito fosse constituído de camadas correspondentes aos sucessivos regimes da língua. A cada reforma ortográfica, a cada conjunto de supressões ou acréscimos de letras, de formas de acentuação, de palavras no léxico, uma nova camada se instaura, cobrindo, mas apenas parcialmente, a anterior, sob um novo modo de formatação da fala ou ortofonia.

Puro-impuro II: invenção de uma genealogia

Os predicados puro e impuro são derivados de um uso inicial que era estritamente material. Assim, se distinguiam o “ouro puro” do “ouro impuro”, porque o impuro continha numa mistura outros metais.

À pureza sem mistura e à impureza da mistura logo se vincularam também predicados morais. O ouro puro, por exemplo, entrava no comércio justo entre humanos virtuosos. O ouro impuro, no injusto, entre humanos sem virtude, viciosos e falsificadores.

A ideia da separação entre a alma e o corpo reforçou o uso moral dos predicados puro e impuro. Uma alma pura era aquela que não sucumbia às tentações, inclinações ou apetites do corpo (entendido como a origem dos vícios). Purificar a alma era separar e afastar dela todos os vícios que provinham do corpo.

O bom moralmente puro, então, foi considerado em referência somente à alma purificada e descartava todo tipo de utilidade ou de prazer próprios ao corpo.

Só mais tarde, mas ainda imbuídos do uso moral, os predicados puro e impuro foram aplicados também ao conhecimento. O conhecimento puro foi entendido como aquele estritamente racional e purificado de qualquer influência do corpo, e o impuro, aquele que carregava em si, falsificando-se 
num certo sentido*, também elementos sensuais ou da sensibilidade. 

Nessa medida, a valorização do conhecimento puro sobre o impuro se explica apenas por uma ideia do que seja um comércio virtuoso, aquele no qual a moeda de troca não é falsificada.


(*) No sentido de que se tornava possivelmente falso para muitos casos, isto é, que não atestava uma garantia de verdade para todos os casos.







Não falamos com intenções traduzíveis

Quando um falante do inglês diz: “good morning”, ele não quer dizer: “bom dia”, mas “gud-mor-niin”.

Puro-impuro I: A vida como ela é

“A vida como ela é” é essa superfície mesma em que a vida se exprime imanentemente (isto é, em si mesma).

Para quem assim a concebe (veja, por exemplo, Alberto Caeiro em o Guardador de Rebanhos) é absolutamente ilegítima qualquer tentativa de se colocar acima (elevando-se até o universal) ou abaixo (aprofundando-se até o fundamento) dessa superfície.

Para “a vida como ela é” não há o puro nem o impuro.

Homofonia IV: meta-homofonia

A homofonia em primeiro nível é material:
1) Havia a via.
2) Ouviu ou viu.
3) Contudo, com tudo.
4) Cuidado com a manhã, não com amanhã.

A meta-homofonia se dá num segundo nível.
No alinhamento ritmado por homofonias: (1) + (2) + (3) + (4)...
Havia a via. Ouviu ou viu. Contudo, com tudo. Com a manhã, com amanhã...

Num sentido meta-homofônico, “(1) + (2) + (3) + (4)...” diz o mesmo que “(1) + (1) + (1) + (1)...”:
Havia a via. Havia a via. Havia a via. Havia a via...

Se a homofonia é material, a meta-homofonia é da ordem do ritmo.
E o ritmo é sobrematerial ou formal.

A via

Minha salvação, eu a encontro mais no imperfeito, porque vago, confuso, flexível, do que no perfeito.

Contudo, todas as coisas são perfeitas (omnia perfecta). E eu me salvo, também, com isso.

Quiasma: uma espécie de portal




Um quiasma entre dois regimes de narrativa.
Convergência divergente. Divergência convergente.
Por um quiasma, um regime de narrativa se aproxima de outro, para se afastar novamente. Ou o inverso.
Por um quiasma, enfim, pode-se efetuar o salto de um a outro regime de narrativa.

Devir_futuro

Devir não é o futuro, mas a produção do futuro, a futurização do presente (isto é, a própria presentificação).

Do parafuso, até a alma?





Um parafuso gira num certo sentido. Para fazer um parafuso girar num sentido certo é preciso uma chave de fenda com o giro certo. E, para que a chave gire certo, uma mão que a gire...
Não saltar daqui para a mente.

{Os nervos que contraem os músculos do braço certos.}

Ponta de alfinete


A intensificação do desejo – o fervor – não tem a ver com devir ponto, mas com devir infinito.