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A política não é apenas uma ordenação da experiência da coexistência, porque ela também pretende ordenar o que já existiu, o que ainda não existe e o que não existirá jamais.

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O ideal da política: do jogo das vontades tirânicas obter relações de soberania, ao menos exteriormente.

Melhor voando?

Um pensamento chegou. Quis apanhá-lo de vez. Escapou-me.
Deitar por escrito é um modo de enjaular o pensamento.
Estará melhor voando do que em minhas mãos?
Não estarei, pelo contrário, eu melhor nas suas?

Sem-x

Estamos aí, entre os terráqueos sem-terra, entre os moradores sem-teto, entre os trabalhadores sem-emprego, entre os pios sem-igreja, entre os políticos sem-partido.

Nesse caso, seríamos como uma falta daquilo que define o ser que somos.

Seríamos x sem-x; seríamos nada.

De fato, na real, estamos, mas não somos assim. Pois a propriedade (da terra ou do teto), o emprego, a igreja e o partido, que compõem nossa civilização, são apenas alterações confusas, imaginárias, históricas, artificiais, humanas do mesmo fundo de barbárie.

Vida boa

A vida boa dos gregos não é a nossa vida rica, saudável, branca, segura, gostosa, consumidora. É a vida virtuosa. E a virtude, como diz Spinoza, é potência.

Vida boa é vida de potência, vida essencial, de desdobramentos, vida de cão.

Desejo de ser e dispositivo

O desejo de ser assume uma forma (um objeto) num dispositivo. Pode tornar-se, por exemplo, desejo de saúde, de segurança, de sexualidade, de pureza, de satisfação de carências econômicas, de Deus, conforme o dispositivo.

O dispositivo político, o imperium, é sempre também uma forma de apreensão do desejo de ser, originariamente, indeterminado – mediante sua determinação. No dispositivo, o desejo de ser ganha um objeto (o que não quer dizer que ele seja, na medida em que é indeterminado, subjetivo).

Paráfrases: essência e potência

Buscar entender a essência como potência.

A essência, não como algo inerte (como mancha de tinta num quadro) ou como um modelo ideal.

Essência, como algo a partir do que se desdobram as dobras de um ser, que são as suas propriedades.

Essência, ligada a um querer, a um desejo intrínseco de si. Desdobramentos na existência, a uma oportunidade, a uma situação.

Qualidade de vida e morte

Nossa qualidade de vida é um critério econômico da dignidade da vida. Uma vida digna para nós é aquela vida feliz, aquela vida de contínua satisfação de suas próprias carências.

Para nós, que compreendemos a vida como procissão, desfile, festival de carências (a vida econômica), a vida feliz poderia aparecer, paradoxalmente, como o exercício de um suicídio continuado.

Ao vivermos com qualidade de vida e de maneira feliz satisfazemos e eliminamos, ao menos momentaneamente e parcialmente, as carências que caracterizam a essência, o próprio ser da nossa vida (como existência).

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Chegamos ao ponto de confundir vida boa e qualidade de vida.

Vida de filósofo (ilustre)

Difícil dizer o que vem primeiro: a vida do filósofo ou sua filosofia; se ele adapta sua vida à sua filosofia, ou se, ao contrário, faz sua filosofia com a forma da sua vida.

Proximidades notáveis IV - Liquidez e fundamentalismo

A oposição é sinal de alguma comunidade.

O oposto da experiência da liquidez é o fundamentalismo. Mas a experiência da liquidez, na medida em que se liga a uma vontade, e quer se tornar absoluta, se torna um fundamentalismo.

O fato de haver uma relação conflituosa entre liquidez e fundamento indica uma semelhança, pois aqui também vale o seguinte princípio:

– Duas naturezas que nada têm em comum uma com a outra não se afetam, isto é, uma nada pode fazer à outra, que seja bom ou mau.

Relações entre teoria e prática

Os filósofos, além de pensar, são éticos. O que não quer dizer que sejam moralistas, mas que levam uma vida de filósofo, que colocam sua vida no jogo do seu pensamento, e seu pensamento no jogo de sua vida.

Lanterna na mão: – procura-se o filósofo pelas noites nas praças públicas.

Falas que não se falam

As falas se ordenam segundo registros determinados, matrizes de palavras em sua ordenação recíproca, certas ideias.

De tal modo que, se der falarmos o mesmo do mesmo, mas segundo registros diferentes, registros que não se encaixam, que não se superpõem, uma comunicação termo a termo é impossível.

Na distância dos registros, uma fala não fala à outra. E se, eventualmente, se percebe uma comunidade (percebe-se que se fala o mesmo do mesmo), isso se deve a uma amizade que se impõe, como predisposição que atenua as diferenças.

A amizade, por isso, pode encobrir as idiossincrasias, como as pontes que varam grandes abismos.

Justiça e beleza

O justo, como o belo, numa compreensão remota, refere-se à correspondência de uma proporção, à simetria.

A definição remota de justiça, como atribuição a cada um do que é seu, coloca o jurídico no âmbito da proporção. No justo trata-se de distribuir a coisa a cada um na exata proporção que lhe é devida (imagem da balança).

Na definição remota do belo, por outro lado, encontramos a mesma noção de simetria – alcançar o belo pelo simétrico (em confronto com o remoto, Kant, muito romanticamente, vai dizer que não há uma teoria racional do belo – ou seja, o belo, como o divino, em Kant, tornou-se um limite para a razão).

De modo que, remotamente, o injusto nos repugna como o feio, e o feio como o injusto. Muito facilmente, portanto, passamos do feio ao injusto, do feio ao mal, do feio ao afastamento do que é divino, do que é justo e belo.