Valor, ética e moral


O valor está onde o desejo se investe, não ali onde o desejo deve investir-se. Portanto, o valor é uma questão de ética (uma potência), não de moral (não uma finalidade).


Democracia - 1 = autocracia

Curiosamente, de todos os regimes da vida em comum, o que está mais próximo (e não, como era de se esperar, o mais distante) da democracia é exatamente o seu oposto, a autocracia.

Pois na democracia todos são iguais, e na autocracia todos são iguais menos um (e o mesmo). Uma mínima (em quantidade) distinção.

Qualitativamente, porém, o salto é gigantesco. Já que: a democracia é o regime das diferenças iguais; a autocracia, o regime do mesmo diferente.


Ser e nada, existência e morte


A questão fundamental da metafísica e portanto da filosofia, para Heidegger, a questão leibniziana: “por que há entes e afinal não antes o nada?”, afirma que pensar o nada (apesar de ilógico para o lógico) é uma condição sem a qual não se pode pensar os entes na sua totalidade, o ser da totalidade dos entes, o ser, a realidade do ser. Apenas o nada nos coloca verdadeiramente diante da realidade do ser. Da mesma maneira: pensar a nossa própria morte (e é isso que parece em jogo para cada um de nós) nos coloca a realidade da nossa própria existência. 

Mas, quando experimentamos radicalmente a verdade de que a morte é a realidade da nossa existência, então, mortais, como que nos retiramos de entre os entes em suas relações causais e em sua densa plenitude sem vazio, e a liberdade (essência da verdade) nos toma e nos abre para uma tomada de decisão acerca dos entes.

Para Spinoza, por outro lado, a ideia que exclui a existência do nosso corpo (a ideia de nossa morte do corpo, que é também a ideia da morte de nossa alma), não pode ser dada em nossa mente, mas é contrária a ela (e3p10).

Até posso ter adequadamente a ideia da morte, mas não adequadamente (em verdade) a ideia da minha própria morte.


Inscrições


Tudo começa com um ideal: você quer transformar o mundo, escrever a história e, assim, inscrever-se nela como sujeito. As dificuldades trágicas logo surgem. Inimigos, obstáculos e muros insuperáveis. A história só se escreve pelos vencedores inscritos. Finalmente, então, o desejo de fazer história leva você, tão logo possa, a passar para o outro lado do muro. Não lhe sendo possível escrever a história, você se inscreve sob os vencedores.

Mais uma manifestação do narcisismo ferido, secundário, reacionário.




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O nômade passa por nós, e ficamos com a impressão de que fomos passados para trás.




O que nos resta de Auschwitz?

Auschwitz é um signo para todo evento da história do narcisismo fabricado, a história mortífera da negação identitária do outro. O que nos resta depois desse campo?

Não tanto um jardim (um território), mas uma terra (um elemento): o indefinido riso, o riso não intencional, o riso de nada. Ou será isso, ainda, um retorno, uma reação ainda encoberta do narcisismo?



O narcisismo ontológico e o narcisismo reacionário (o que nos resta?)


O narcisismo (compreendido como o feliz, primário e indefinido afeto de infinitude ou plenitude) é anterior ao afeto do trágico (compreendido como uma disposição do corpo, em geral, melancólica, ligada ao conhecimento de que há uma realidade implacavelmente insubmissa ao nosso desejo, em seu exemplo máximo: a nossa morte absoluta, nossa finitude, nossa descontinuidade).

O trágico, como conhecimento da finitude da nossa própria existência – e é por meio dele que tomamos consciência de nós mesmos e dos outros –, como parte do jogo de todas as outras coisas existentes, assim, vem denegar, ou suspender, o narcisismo primário; porém, talvez, nunca o negue, ou suprima, definitivamente. Apenas, o faz atuar de outros modos, secundários.

Esse narcisismo denegado (redefinição do desejo ontológico indefinido, pleno, ao qual nada falta, como desejo de infinitude ou de reconstituição da continuidade), por exemplo, atua na fabricação de escapatórias fantasiosas ou mágicas para aquele princípio de realidade trágico, entre outras: a moral universal, o além-mundo, os misticismos, as religiões, as fantasias megalomaníacas, as filosofias.

Primeiro, então, o narcisismo ontológico, na base do ser; em seguida, diante da morte, o reconhecimento trágico do real; finalmente, o retorno do narcisismo, como narcisismo ferido, secundário, fabricado.

Esclarecer, enfim, apareceu-nos simplesmente como o desembaraçar-nos dos nós que nos prendem a essas fabricae reacionárias (razão-facão).

Em seu entusiasmo inicial, na luta destruidora contra o narcisismo fabricado, o Esclarecimento (Aufklärung), no entanto, pressupôs uma realidade de fundo – um lugar e uma força que seriam capazes de acolher e conter o seu avanço destruidor. E, assim, mostrou o seu próprio aspecto narcísico: a fé na capacidade da ciência humana e nas verdades eternas ao alcance do humano. O Esclarecimento revelou-se, ele mesmo, como “retorno do reprimido”. Mas o narcisismo secundário é sempre, por definição, reacionário.

A consequência do Esclarecimento, dessa metamorfose do desejo narcísico, na sua megalomania mortífera, foi a própria destruição da sua fantasia e o reconhecimento do perigo do retorno narcísico, na negação identitária do outro. Gulag/Auschwitz/Hiroshima. Reencontramo-nos entregues a nada. 

Desembaraçamo-nos de tudo; e o último Esclarecimento nos conduziu ao niilismo melancólico do trágico. A aceitação do trágico é, com efeito, a solução ao perigo das fantasias narcísicas. Mas, a melancolia, é ela o afeto que nos resta? O que nos resta de Auschwitz?

Veja: o trágico (ideia e afeto) não suprime tudo, ainda há uma ontologia, uma base do ser, aquele desejo primário ao qual nada falta. Será para nós possível partir desse desejo primário, não para reagir ao trágico, mas para suprimir a melancolia? 



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Entre o infinito (o narcisismo) e o finito (o trágico), Spinoza inventou o indefinido. (e3p8)



Razão-facão


Os primeiros Aufklärer tiveram essa ideia “iluminada” de que um complexo supersticioso (fabrica imaginária) encobria a realidade à percepção humana. Para eles, nós, o vulgo, percebemos o real como que através de nuvens, esses vapores intricados da superstição.

Eles pretendiam usar a faculdade humana da razão para limpar a sua via de acesso ao real (como fosse um facão, desbastando-lhes o caminho através das florestas dos seus novíssimos impérios coloniais).

O real, para esses esclarecidos, era como um fundo permanente, sempre ali, acessível ao intelecto corrigido, livre das superstições.

Mas, com efeito, o que é esse real cru? O que é esse fundo permanente de realidade livre de imaginação? O que é essa carne viva? Se desbastamos todas as excrescências imaginárias que obstruem (ou constituem) nosso regime mental, afinal, o que nos resta?

O que aqueles esclarecidos e velhos europeus atingiram ao final de sua empresa de desvelamento da realidade? Não estão eles, ainda, e como todos, intrincados em sua própria fabrica? A realidade não é esse princípio mesmo da fabricação?



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Em relação à filmagem, a fotografia é um ganho de tempo, que perde a duração.



Pensamento e língua II


A filosofia, idealmente, alcança um pensamento que está acima das línguas: o conceito, isto é, um pensamento que pode ser dito em uma ou outra língua sem prejuízo de seu conteúdo e verdade. Se não for assim, trata-se de poesia. Poesia é o pensamento preso a uma língua.

Na poesia, a língua importa. Mais que tudo? Mais que o próprio pensamento?

Bom, há filosofia que se importa com a língua. Ela diz: não é em qualquer língua que a ideia verdadeira se deixa expressar autenticamente! E há quem diga que só se pode filosofar em grego ou em alemão... Ha, ha! Isso me faz rir! O riso é apenas um desdobramento corporal de um afeto de rejeição... mas envolve-desenvolve reflexão...




Pensamento e língua


Poesia é o pensamento preso a uma língua. Ou uma língua que pensa; uma língua, ao pensar.




Entre documentário e filosofia II


O documentário é uma espécie de filosofia empírica, cuja experiência se limita à imagem visual e sonora.




Entre documentário e filosofia


Nossa missão (como documentaristas-filósofos) é a verdade. Isso, frequentemente, porém, é uma submissão.





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Corrupção (essa da qual tanto se fala) é uma contra-ação capaz de obter renda sem dispor de capital.




Viver sem valores


Não desejamos servir aos valores... como servos dos valores estabelecidos.

Viver sem valores, então? Mas isso pode nos levar ao niilismo melancólico (nada vale! snif...).

Viver sem valores (sem o “desejável”, sem o “bom” em si) quer dizer viver sem valores dados, em uma existência-vida afirmativa de seu valor próprio, e no qual se alegra. O valor, de fato, nunca nos é dado, o valor nunca está pronto. O valor é algo que se constitui, se produz, pelo processo do desejo. – O desejo se engana? E nós estamos servos de um valor de fora. – O desejo entende com clareza o seu valor imanente e o que ele constitui como sendo bom? E nos tornamos livres.